Hayden White: reflexões contemporâneas | ArtCultura | 2018

Poucos autores foram paradoxalmente tão mal lidos e tão necessários para a historiografia quanto Hayden White (1928-2018). O norte-americano, durante sua carreira de mais de cinco décadas, soube, talvez como ninguém, provocar intelectualmente os historiadores e historiadoras de modos diversos: de suas asseverações sobre o caráter ficcional do discurso historiográfico às suas críticas ao que ele chamou de “anodinia ideológica” da disciplina, passando por suas teorizações seminais sobre os eventos modernistas de nossa era, White fez da polêmica uma arte; não a controvérsia vazia, contudo, que visa somente fechar discussões, mas a provocação como uma forma de armar a imaginação e o intelecto contra as diversas forças que nos dominam, consciente e inconscientemente. Para ele, as disparadas incisivas contra a historiografia disciplinada não eram mais do que uma maneira de se tentar chamar a atenção de seus colegas aos “problemas peculiares de seu tempo” e à possibilidade de que, em nossa modernidade tardia, a história havia se transformado mais em um problema do que uma solução – o pesadelo do qual já nos falava Joyce e de que, ao fim e ao cabo, desejamos escapar.

Não é de estranhar, portanto, que sua recepção entre os historiadores e historiadoras disciplinados, como já demonstraram Nancy Partner, Richard Vann e Fábio Franzini, tenha variado da frieza à violência. Quem não se lembra das acusações de Carlo Ginzburg, o autodeclarado protetor do conhecimento histórico diante dos assaltos dos relativistas céticos, contra White ou, aqui em terras brasileiras, das invectivas de Ciro Flamarion Car – doso contra o famigerado “pós-modernismo” do estadunidense? Quem não viu expressões de desgosto à menção do nome de White ou ouviu injunções contra sua obra, supostamente “relativista”, “negacionista” e “reacionária” (escolham seu xingamento!)? As reações desmesuradas apenas serviam de comprovação àquilo que White afirmava: antes de se preocupar com o mundo da vida, de onde deveria retirar inspiração e poder, a disciplina, já na segunda metade do século XX, parecia muito mais concernida com seus limites e fronteiras do que com a abertura de novas imaginações radicais para as mulheres e homens de nosso (triste) tempo.

Nesse sentido, este minidossiê visa não necessariamente corrigir as más leituras ou os equívocos que abundam sobre o corpus whiteano – que os convictos mantenham suas convicções, se tão importantes são! O que almejamos nessa coleção de textos é usar a obra de White como ponto de partida para reflexões sobre nossa condição presente, nossa disciplina e nossos diversos dilemas teóricos e historiográficos, mesmo que eles nem sempre sejam explicitamente nomeados pela doxa. Assim, pretendemos respeitar aquela que talvez tenha sido a mais relevante lição de White: não nos conformarmos a tradições pré-estabelecidas, não aceitarmos certezas fornecidas pelos certos de sempre, não reduzirmos o poder da imaginação ao possível, não aceitar que nossa história seja construída por outros – enfim, não tomarmos nada como dado, especialmente o que já foi transformado em segunda natureza pelos poderes dominantes. Só desse modo poderemos, se é que poderemos, reorientar os estudos históricos em direção à radicalidade necessária a contextos em que antigos espectros violentos voltam a ganhar carne e em que novas ameaças à existência mesma da espécie humana ganham forma cotidianamente. A reflexão teórica, nessa conjuntura, não substitui a ação política, mas a suplementa como algo fundamental para que possamos conceber, como já disse Eduardo Grüner, razões críticas sobre, para e contra o mundo e o tempo em que nos coube viver. Embora modesto, pensamos que este minidossiê pode contribuir com esta (quem sabe, desmedida?) meta.

O conjunto de textos abre com uma tradução, inédita em português, de um dos últimos, porém seminais, ensaios de White, “O passado prático”, realizada por Felipe Krüger, Mario Marcello Neto e Arthur Lima de Avila – mantendo, pois, a tradição da ArtCultura em publicar traduções fundamentais para o debate teórico contemporâneo. Seguem-se a contribuição de Arthur Lima de Avila sobre a importância da teoria da história, pensada de maneira crítica com o auxílio da obra de White, para nossos tempos de exceção; as ponderações de Alexandre Avelar sobre o debate em torno do trabalho de White nas páginas da revista History & Theory; e, finalmente, a releitura de Raízes do Brasil por Julio Bentivoglio a partir da teoria tropológica whiteana. Como se vê, temos uma variedade de temas e objetos, o que possivelmente fosse do gosto do próprio White, um historiador cujo intelecto e interesses fizeram dele uma avis rara em uma conjuntura de hiperespecializações, nichos e provincianismos intelectuais de toda a sorte.

Adendo: um pouco antes de batermos o martelo neste minidossiê, recebemos a notícia da morte de White, que deixa um espaço insubstituível nas Ciências Humanas e que talvez marque o fim daquele grande momento teórico iniciado nos anos 1960, especialmente nesta conjuntura de neorrealismos e neompirismos pobres de imaginação e inspiração. Não queremos, contudo, que estes textos sejam lidos como elegias ou com tristeza, pelo contrário; em tributo à memória deste rebelde perene, cuja generosidade e alegria ímpares foram sentidas por todos e todas que tiveram a oportunidade de conviver, mesmo que brevemente, com ele, queremos que nossas contribuições façam jus às palavras que Hayden White proferiu ao final de sua fala no simpósio de comemoração aos quarenta anos do Metahistória, ocorrido em 2013 na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes): make trouble!. Só assim, acreditamos, a história voltará a estar à altura de suas melhores, e ainda válidas, aspirações. Criemos problemas, portanto!


Organizador

Arthur Lima de Avila – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da (UFRGS). Co-organizador do livro Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Letra e Vida/Suliani, 2009. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

AVILA, Arthur Lima de. Make trouble!: Hayden White e a historia. ArtCultura. Uberlândia, v. 20, n. 37, p. 7-8,  jul./dez. 2018.  Acessar publicação original [DR]

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