Hegel e a liberdade dos modernos | Domenico Losurdo

LOSURDO D Hegel e a liberdade dos modernos
Domenico Losurdo| Foto: Kyan Shokoui Dios

LOSURDO D Hegel e a liberdade Hegel e a liberdade dos modernosIntrodução

A despeito das piadas jocosas que encontramos em páginas de social medias relacionadas à filosofia, é inegável que Hegel continua sendo um autor que desperta respeito, ou, no mínimo, curiosidade para uma leitura. Disso, é difícil encontrar hoje alguém disposto a comentar sua obra. O italiano Domenico Losurdo (1941-2018) tomou consciência de tal empreendimento. Porém, não se absteve de contribuir com algumas ideias. O trabalho de anos de pesquisa e publicações diversas (LOSURDO, 2019, pp. 19-20), resultou no livro intitulado Hegel e a liberdade dos modernos. O foco de sua obra direciona-se ao Hegel sujeito-político, inserido no contexto de sua época. No entanto, Losurdo deu um passo adiante ao confrontar o estudo dos escritos de Hegel com a fortuna crítica coeva e hodierna de sua obra; é dessa relação entre escritos filosóficos e fortuna crítica que se pretende dar atenção nessa resenha crítica.

A importância da historiação dos escritos filosóficos

À primeira vista, Losurdo dá atenção à biografia intelectual como uma maneira de escapar de trabalhos historicista-jornalísticos e das obras que versam a comentários a partir de Hegel. Essa premissa pode parecer estranha àqueles que, acostumados com leituras de autores e autoras já consagrados, acabam por não questionar os cortes produzidos em torno do sujeito, separando, por vezes, a vida pessoal dos escritos publicados, como se não houvesse relação nenhuma entre eles (LUKÁCS, 2018, p. 44).

A singularidade de Losurdo reside exatamente nessa historiação dos escritos de Hegel não apenas na relação “texto-contexto”, mas inclusive na inserção da obra de Hegel no universo de sua fortuna crítica (isto é, o conjunto de textos acadêmicos cujos propósitos consistem na análise em relação a obra de um autor). A importância da fortuna crítica para Losurdo é seminal e sua linha de raciocínio é algo que devemos tomar em consideração:

A compreensão da história completamente política da fortuna crítica de Hegel nos permite fazer esclarecimentos e, nesse ponto, pode-se e deve-se retornar ao texto. No entanto, retornar ao texto não como se fôssemos miraculosamente catapultados de volta ao ponto zero da história das interpretações, mas sim com a riqueza e a multiplicidade de indicações que brotam da reconstrução da história das interpretações (LOSURDO, 2019, p. 60, grifo do autor).

É nessa “fortuna crítica” historicizada que Losurdo pretende dialogar com/contra, tomando como centro do debate a problematização do que poderíamos chamar “usos e abusos” das leituras e caracterizações de Hegel e dos textos hegelianos.

A crítica da fortuna crítica liberal hodierna

Acredita-se que, para inserir o leitor à proposta do livro, vale ressaltar uma alerta interessante de Losurdo: “os capítulos I-IV remetem a Hegel, Marx e la tradizione liberale. Libertà, uguaglianza e Stato, publicado por Editori Riuniti em 1988”. O título de Losurdo, nesse caso, é autoexplicativo e trabalha por duas vias: o filósofo pretendia travar um diálogo amistoso-crítico com as leituras que os liberais empreenderam à Hegel e Marx no século XX, e da herança liberal que moldou pensamentos e críticas dos dois filósofos alemães em seus contextos históricos no século XIX.

Nesse ínterim, o capítulo 4 merece atenção especial (LOSURDO, 2019, pp. 115-147), que consiste em uma resposta de Losurdo às posições de Norberto Bobbio acerca de Hegel, onde Bobbio tentou enquadrar o filósofo alemão ou como liberal ou como conservador/reacionário, mas utilizando formalismos próprios para os padrões do século XX. A proposta de Losurdo foi empreender não apenas uma defesa de Hegel contra as posições de Bobbio, mas criticar sua metodologia anacrônica enquanto problemática – e não problematizante – da riqueza do pensamento de Hegel. O próprio título do capítulo é provocativo nesse sentido: Conservador ou Liberal? Um falso dilema (idem, p. 115).

A ciência da história de Losurdo, por essa via de raciocínio, adentra na própria pesquisa e análise dos escritos de Hegel a temas caros ao liberalismo e ao conservadorismo de finais do século XVIII e início do XIX, sendo esse um caminho mais profícuo para o estudo do sujeito históricopolítico de Hegel. Em conjunto, Losurdo aproveita para inserir as noções de Bobbio sobre liberalismo e conservadorismo dentro da própria concepção totalizante do que era ser “liberal” e “conservador”. A conclusão foi que não seria apenas a tentativa de Bobbio em caracterizar Hegel numa missão fadada ao fracasso e sim que as próprias caracterizações de Bobbio já eram originalmente “erradas”.

Apesar de Bobbio ter recebido um capítulo exclusivo, Losurdo não deixa de lado outros comentadores do liberalismo contemporâneo, como Hayek, Popper e Habermas. De igual maneira, não se pretende aqui dar spoiler sobre quem era o “Hegel político” para Losurdo. Para isso, o leitor terá que seguir a linha de raciocínio em sua leitura.

Hegel e a tradição liberal e conservadora coeva

Apesar da importância do capítulo-resposta a Bobbio, vale ressaltar que o livro de Losurdo é composto por 13 capítulos, abrangendo um trabalho filosófico-histórico de interpretação de fôlego acerca de ideias que tomaram atenção de Hegel e que foram criticadas constantemente em seu tempo histórico.

É na seara do estudo das críticas coevas a Hegel em que Domenico Losurdo promove sua segunda análise metodológica de história com a crítica à fortuna crítica. A partir de leituras dos clássicos do liberalismo e do conservadorismo de John Locke a Friedrich Nietzsche, Domenico Losurdo dispõe de uma prévia do que será no futuro seu tour de force materializado na obra Contra-história do liberalismo [1].

Id est, ao estudar os temas de interesse a Hegel na esfera política (estado, propriedade privada, violência, despotismo, burocracia, escravidão, trabalho, riqueza, escola, religião e clericalismo, etc.), Losurdo os contrapõe exatamente aos liberais e conservadores de época para, assim, evidenciar tanto o falso e inócuo debate de enquadramento de Hegel como liberal ou conservador, quanto promover ao leitor um estudo mais crítico no âmbito da filosofia mesclada à história.

Nesse sentido, Hegel é caracterizado enquanto fruto de seu tempo, em constante relação dialética com seus pares e sua história. Para Losurdo, Hegel incomodava em demasia tanto os liberais quanto os conservadores, fazendo o sólido edifício de tantos intelectuais do século XX uma empreitada quixotesca que facilmente se desmancha no ar a partir de uma análise mais rigorosa que abarca a pesquisa histórica e a crítica filosófica.

A falta de uma fortuna crítica marxista

Vale ressaltar que, a despeito da estimulante crítica à fortuna crítica sobre Hegel, acredita-se que a falta de alguns comentários a marxistas modernos é um dos pontos cegos do livro. Losurdo em uma curta passagem dá atenção às leituras de Lenin e Gramsci acerca da famosa e polêmica expressão sobre “o real é racional” (LOSURDO, 2019, pp. 66-67). Theodor Adorno e Mao Zedong (citado como Tsé-Tung no livro) recebem alusões laterais. Outros autores mais contemporâneos como István Mészáros e Slavoj Žižek sequer recebem referência.

O único marxista que recebeu atenção mais crítica foi György Lukács, visto que Losurdo pretendia “corrigir” a interpretação do filósofo húngaro acerca da relação entre Hegel e o “jacobinismo plebeu” (LUKÁCS, 2018, p. 77); para Losurdo, Hegel era mais simpático às posições plebeias radicais advindas da Revolução Francesa, enquanto que Lukács considerava Hegel um filósofo de atitude mais “hostil” (LOSURDO, 2019, pp. 267-270).

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Por fim, o livro de Domenico Losurdo é instigante. O primeiro é o de sua posição em sair do Hegel “dos livros” e entregar ao leitor um Hegel político-social que bebeu das tradições rebeldes para formular linhas de pensamento que incomodavam os liberais e os conservadores. A impressão que fica com a obra de Losurdo é que, na passagem do século e enquanto Hegel estava vivo, liberais e conservadores tinham mais em comum do que é comumente ensinado pela “hagiografia liberal” (expressão de LOSURDO, 2006). Um segundo ponto a retornar é a hábil utilização de Losurdo da história e da filosofia em torno de um autor consagrado, ao considerar seus contextos próprios e a relação dialética com seus pares. Da mesma feita, para o que Losurdo chamou de “História das Interpretações”, vale ressaltar mais uma vez que sua posição de respeitar e dar atenção à fortuna crítica de um autor que se almeja trabalhar é posição sine qua non de honestidade intelectual no momento de sua crítica própria.

Nota

1. Livro publicado originalmente em 2005, com edição brasileira em 2006, v. LOSURDO, 2006.

Referências

LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal: liberdade, igualdade e estado. – São Paulo: Editora Unesp, 2001.

LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. – Aparecida: SP, Ideias & Letras, 2006.

LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. – São Paulo: Boitempo, 2018.


Resenhista

Alex Rolim Machado –  Doutor em História Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]


Referências desta resenha

LOSURDO, Domenico. Hegel e a liberdade dos modernos. Trad. Ana Maria Chiarini, Diego Silveira Coelho Ferreira. São Paulo: Boitempo, 2019. Resenha de: MACHADO, Alex Rolim. Hegel entre liberais e conservadores: o estudo histórico-filosófico de Domenico Losurdo. Temporalidades. Belo Horizonte, v.13, n.1, p.918-922, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR].

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