História Antiga e Usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944) – SILVA (RMA)

SILVA, Glaydson José da. História Antiga e Usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. 222p. Resenha de: SANTOS, Leonardo Soares dos. Revista Mundo Antigo, v.01, n. 02, dez., 2012.

As constantes referências de governantes a emblemas e personagens do passado demonstram o quanto ainda se mantém viva a inclinação dos homens do poder em buscar na História elementos fundamentais de legitimação de seu domínio. Vide os exemplos de Hugo Chávez com Simon Bolívar, Cristina Kirchner com Juan e Eva Perón, e de alguns segmentos da “esquerda” brasileira com Getúlio Vargas. E como não lembrar do exemplo da classe política norte-americana, contumaz na sua referência aos “Pais Fundadores”? Como não mencionar o turbulento e intricado exemplo dos conflitos envolvendo árabes e judeus no Oriente Médio, onde a alusão aos Tempos dos Patriarcas, Reis e Profetas se faz constante? Tais figuras buscam assim constituir – bem ou mal – uma linha de continuidade entre os personagens de hoje e de ontem. Ou seja, trata-se de uma História construída, elaborada, às vezes meticulosamente escrita. Não temos aqui uma História estática, enterrada sob os escombros do passado à espera de um lance de sorte ou de um historiador/arqueólogo que a ache em suas escavações fortuitas. Esse “resgate” do passado implica, portanto, na produção de uma certa História, ou para sermos mais preciso, num certo discurso sobre a História. Temos sim um determinado enquadramento dos fatos, a apreensão seletiva de aspectos do passado.

A constituição dessa linha de continuidade por meio da História é o que motiva o historiador Glaydson José da Silva a escrever o seu belo livro intitulado “História Antiga e usos do Passado”. Ele parte de um pressuposto básico: a de que passado e presente são elaborações dos historiadores: “O saber histórico é tomado mais como um espaço de desconstruções que de construções e reconstruções”(p. 17). Com isso, o autor demonstra como o passado gaulês, romano e galo-romano é reformulado sob o Regime de Vichy (1940-1944) com vistas a justificar “a dominação alemã e o colaboracionismo do governo francês com os alemães”(p. 18). A análise desse período ganha novo contorno no Capítulo 3, no qual o foco recai sobre a atuação particular de um intelectual específico, o historiador da Antiguidade Jérôme Carcopino, que viria a ser ministro do Regime de Vichy. Aqui encontramos uma reflexão mais detida sobre o papel dos intelectuais na sua interface com o desenvolvimento de funções burocráticas junto aos governos e instituições.

Mas Glaydson não para por aí. Faz questão esse historiador de inserir o exemplo francês num contexto mais amplo, o europeu. Incluindo em sua análise a leitura do passado clássico grego e romano por parte dos regimes nazista e fascista.

Outra situação estudada, bem mais recente, é a que se refere à instrumentalização do passado indo-europeu, grego, romano e gaulês por grupos franceses da órbita da _ouvelle Droite francesa (Front _ational, GRECE e Terre et Peuple). Advoga o autor que “tanto nesses grupos quanto naqueles nos quais se encontra o seu gérmen, a radicalização política que propugnam, assentada na exclusão social, com base nas origens, encontra-se fortemente respaldada pela leitura que fazem do mundo antigo” (p.21). E aqui reside um mérito importantíssimo do trabalho: a percepção das distinções entre os diferentes grupos de uma corrente política e ideológica que só na aparência é homogênea. Assim, o autor capta, com extrema argúcia, que “contrariamente ao GRECE, cuja instrumentalidade do mundo antigo, em defesa da existência de uma Europa unida, é feita com o respaldo de sua leitura dos indo-europeus, o F.N.

fundamenta suas políticas xenofóbicas e segregacionistas na ideia de uma certa individualidade das nações, especificamente, no caso, da nação francesa. Isso lhe confere uma leitura muito específica dos próprios mitos de origem franceses e, principalmente, da Gália e dos gauleses” (p.176). Ou seja, temos aqui não um trabalho de História Antiga, ou de História Contemporânea ou do Tempo-Presente. A instigante reflexão de Glaydson se destina fundamentalmente a quem se interessa pelas “apropriações do mundo antigo e de seus usos no fabrico das construções identitárias”, tanto ontem como hoje. Como bem sublinha o autor o “saber sobre o passado, sua escrita e suas leituras é um poder e gera poderes”(p. 193). Daí o grande interesse das extremas direitas francesas pelo tema da Antiguidade, tal como se via por parte dos devotos do Nacional Socialismo da época de Hitler. Aspectos remotíssimos da História Antiga têm sido acionados e operados para legitimar propostas de segregação, recusa e exclusão de grupos étnicos.

Em pensar que num debate de fins da década de 1990, o festejado sociólogo Pierre Bourdieu, ao comparar a Sociologia e a História, destacava – com sua habitual empáfia – que enquanto a primeira lidava com processos e personagens em ação e no calor dos conflitos, a segunda tratava de objetos “mortos”. Estudar História Antiga deveria ser então – na visão distorcida desse intelectual – um exercício de erudição por si mesma, uma frugalidade indiferente a qualquer questão política do presente. Uma pena que Bourdieu não tenha vivido o bastante para ler o trabalho de Glaydson da Silva e se dar conta de como estava redondamente enganado.

Leonardo Soares dos Santos – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, pós-doutor pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano(IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo de Estudos em História Antiga e Medieval (NEHMAAT) e Professor Adjunto II do Curso de História do Polo Universitário da UFF de Campos dos Goytacazes. E-mail: [email protected]

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