História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso | Jean-Jacques Courtine e CArlos Piovezani

A fala pública foi, no decorrer da história, um lugar privilegiado do exercício da autoridade e influência sobre as mais diversas sociedades. Seguindo a premissa proposta por Michel Foucault – de que o discurso não é tão somente o veículo, mas sim o objeto do desejo, aquilo pelo que se luta2 – os autores Carlos Piovezani, da Universidade Federal de São Carlos, e JeanJacques Courtine, das Universidades de Auckland, da Califórnia e da Sorbonne Nouvelle, organizaram o livro “História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso.”

Trata-se de uma obra coletiva com uma proposta ambiciosa que, como indicamos nas páginas abaixo, esbarra em limitações práticas. O livro é dividido em onze capítulos (contando-se a introdução escrita pelos dois organizadores) e três partes que definem os recortes temporais trabalhados. A obra reúne textos de dez autores, sendo três deles professores de universidades brasileiras e os demais atuantes no exterior. O livro opta por uma abordagem interdisciplinar, pelo aporte dos estudos históricos, linguísticos e literários.

Na introdução, Courtine e Piovezani afirmam que a história da fala pública é marcada por um duplo apagamento. Um deles de sua própria história e memória, e o outro suscitado pelas novas tecnologias de comunicação, que ganham força na virada para o século XX, e que erodem as bases da eloquência tradicional, criando uma distância paradoxal entre locutor e interlocutor. Neste capítulo os organizadores estabelecem as pretensões da obra: se propõe uma dupla tarefa: “arqueológica” e “genealógica”.3 Pela primeira pretendem reconstituir os universos singulares da fala pública de outros tempos e lugares, e pela segunda objetivam se distanciar de uma abordagem linear, considerando que o ato de falar em público possui singularidade histórica e se modifica de acordo com seu lugar no tempo, no espaço, e das relações sociais que o permeiam. A fala pública é assim entendida como um fato social, como uma materialização das lutas no interior de uma sociedade. Destas duas tarefas os autores derivam que o livro tem uma dimensão comparada (entre Brasil e Europa) e que se inscreve na perspectiva de uma “possível história global”.4

O segundo capítulo, escrito por Silvia Montiglio (Johns Hopkins University), é intitulado “falar em público e ficar em silêncio na Grécia Clássica”. O texto se debruça sobre o lugar da fala e do silêncio no âmbito das assembleias atenienses dos séculos IV e V a.E.C., que assume um caráter complexo nos debates entre Demóstenes e Esquines, onde se opõe a “fala útil” ao “silêncio útil”. A autora explora um amplo leque de documentos, mas se detém na análise dos embates entre os dois oradores mencionados. O texto se divide em três partes: i) de início, examina o valor atribuído pelos oradores à fala e ao silêncio; ii) em seguida, apresenta algumas estratégias retóricas como a preterição, pela qual se fala de algo fingindo não querer fazê-lo, e o silêncio anunciado, que permite distinguir entre o “vazio de fala” e o silêncio eloquente; e iii) por fim, se volta para o lugar da audiência.

O livro realiza então um salto temporal de cerca de dezessete séculos, passando no terceiro capítulo a abordar a Baixa Idade Média através de um texto de Hervé Martin (Université de Rennes), intitulado “A tribuna, a pregação e a construção do público cristão na Idade Média”. O autor, evocando o próprio título, se propõe a falar de um gênero discursivo (pregação), de um lugar de fala (a tribuna) e de um público (população cristã) durante o período baixo medieval, e para tanto recorre num primeiro momento à documentação iconográfica, e em seguida aos chamados sermões ad status – pelos quais os pregadores discriminavam e situavam os diferentes grupos que compunham sua audiência. A análise segue na direção de apresentar: a) como se organizava o ambiente material em que a pregação ocorria; b) a partir de quando a cátedra passa a ocupar um espaço central; c) como a pregação era materializada na forma de sermões; d) como a pregação refletia as mudanças políticas ocorrendo em seu entorno; e e) como os pregadores construíam seu público, suas estratégias para fazê-lo e quais eram seus principais alvos.

“Entre Proteu e Prometeu: a retórica no humanismo do renascimento europeu” é o título do quarto capítulo, cujo autor é Belmiro Fernandes Pereira (Universidade do Porto). Este afirma que a eloquência foi um dos elementos centrais da cultura renascentista, e se dedica num primeiro momento a discorrer sobre o avanço do humanismo em Portugal, apontando para o modo como a gramática humanista se conformou aos fins da retórica, coligando assim a arte de bem falar e de bem escrever, indo de encontro aos escritos de Quintiliano. Em seguida, se volta para o uso das figuras de Proteu e Prometeu nas discussões a respeito do caráter da retórica e da imitatio – este encarna a imagem da retórica como dádiva divina, como fator de civilização, enquanto aquele é associado à necessidade de imitar os antigos oradores.

O quinto capítulo, escrito por Marc Fumaroli (Collège de France), tem como título “O corpo eloquente: actio e pronuntiatio rethorica no século XVII”. O autor parte de uma oposição de duas perspectivas a respeito da eloquência corporal: de um lado, Montaigne, defensor da ideia de que se tratava de uma linguagem natural, comum a todos os homens e que remetia à época dos poetas pagãos; em contraponto, coloca o padre Louis de Cressoles, que em sua obra Vacationes Autumnales Sive De Perfecta Oratoris Actione et Pronuntiatione (1620) argumenta que o corpo eloquente é fruto da disciplina retórica. Ao longo do capítulo o autor apresenta como o padre de Cressoles abordou as questões da actio e da pronuntiatio, determinando como deveriam ser os gestos, a postura e a voz do orador versado na única eloquência verdadeira: a eloquência sacra.

O sexto capítulo da obra tem como autor João Adolfo Hansen (Universidade de São Paulo) e é intitulado “Política católica, instituição retórica e oratória sacra no Brasil Colonial”. Nele o autor se propõe a analisar os condicionamentos institucionais das letras coloniais e, em seguida, se voltar de maneira mais específica para a figura de Antônio Vieira e seu Sermão da Sexagésima (1655). Hansen argumenta contra o uso da noção de “literatura” no estudo do período colonial e aponta como a política contrarreformista sistematizada no Concílio de Trento foi o fio orientador da produção letrada da época. O texto segue com apontamentos sobre o ensino jesuítico no Brasil, sobre como Vieira deve ser considerado como um tipo social inserido na hierarquia da sociedade imperial portuguesa; por fim, aborda as críticas à oratória dominicana presentes no Sermão da Sexagésima.

No sétimo capítulo, “Falas democráticas e poderes intermediários durante a Revolução Francesa”, Jacques Guillaumou (École Normale Supérieure de Lyon) propõe uma análise do desenvolvimento de espaços públicos de reciprocidade no contexto da Revolução Francesa, entre os anos de 1789 e 1795. Faz uma distinção entre um “discurso de assembleia”, que emanaria dos centros legislativos desse processo, e um “discurso republicano” originado num espaço público de reciprocidade em que o poder é engendrado comunicativamente, de maneira fluida, sem se organizar em torno de um centro institucional permanente. No decorrer do texto o autor se preocupa em demonstrar como a população participou do processo revolucionário através de centros de opinião externos ao espaço parlamentar, e dá grande destaque à figura do porta-voz, que é colocado como o “poder intermediário” e mediador entre o poder constituído e o “povo”.

O oitavo capítulo, cujo autor é Roberto Acizelo de Souza (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tem como título “A retórica no Brasil do século XIX: dos anos de glória à perdição” e analisa a posição da instituição retórica no Brasil a partir de dois eixos: o ensino de retórica e a literatura. Para o primeiro eixo estuda os livros-texto usados nas escolas e os programas escolares do Colégio Pedro II (referentes aos anos 1850-1900). O autor observa um momento inicial de predomínio (1850-1857), seguido de uma progressiva perda de espaço, primeiro com a adição da poética (1858), e sobretudo com a adição da literatura nacional (1860). A retórica se conserva no currículo até 1885, e desaparece a partir de 1892.

A respeito da literatura, o autor indica que esta demonstrou crescente hostilidade em relação à retórica, usando como exemplos obras de Aluísio Azevedo, Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis. Apesar de parte da literatura brasileira assimilar preceitos da retórica (como no exemplo de José de Alencar), o autor conclui que a tendência que prevaleceu foi a da rejeição, que resultou em um deslocamento semântico da palavra “retórica”, que em lugar de significar “arte de falar bem”, passa a se referir um discurso ou escrito palavroso, mas pobre em ideias.

No nono capítulo, “‘A eloquência da tribuna livrava-se de seu silêncio e falava…’ – A renovação da fala pública na Europa do século XIX”, Françoise Douay (Université de Provence/Aix-Marseille) apresenta que no século em questão, em razão de diversas transformações científicas, técnicas, econômicas, políticas e sociais, a fala pública se transforma e passa a abarcar novos tipos de eloquência. Assim, a autora contrasta os três tipos de eloquência da retórica clássica (jurídico, deliberativo e demonstrativo) com aqueles que extrai de sua análise da França Oitocentista: a eloquência militar, a religiosa, a universitária (ou acadêmica), a jurídica, a parlamentar e, por fim, a eloquência popular.

Douay considera que, entre 1815 e 1848 houve na França uma idade de ouro da eloquência, seguida de um período em que a retórica burguesa perde espaço e autonomia diante do peso da propaganda revolucionária, somada às transformações na própria política burguesa. A conclusão da autora é a de que mesmo antes do fim do século essa eloquência popular começa a se erodir – um processo que é potencializado pelo desenvolvimento de novas tecnologias de linguagem que suscitaram um rompimento entre a eloquência do século XIX e a do século seguinte.

No décimo capítulo, “A voz do povo: a fala pública, a multidão e as emoções na aurora da era das massas”, Jean-Jacques Courtine examina as transformações da fala pública no contexto do surgimento das chamadas sociedades de massa, marcadas pelas grandes aglomerações populares geradas pelas revoluções dos séculos anteriores.

O texto se orienta por três eixos: i) inicialmente, discorre sobre o surgimento da “multidão” como acontecimento e como objeto de pensamento – a emergência da imagem da massa desordenada carente de um guia, de um líder carismático; ii) na sequência, se volta para os desenvolvimentos teóricos da psicologia das multidões, colocada como uma espécie de reação conservadora diante do poder das massas. Courtine enfoca na obra de Gustave Le Bon, cujo objetivo afirma ter sido o de compor manual de domesticação das massas; e iii) por último, analisa exemplos de uma “eloquência proletária” que extrai de um romance de Emile Zola, intitulado Germinal.

O autor enfatiza que, apesar de se tratar de uma obra literária, o romance em questão é um documento válido, composto com um cuidado “quase etnográfico”.5 Dito isso, observa em um dos personagens fictícios alguns traços dessa eloquência, como a fala factual e técnica, o uso de gestos não moderados e um certo ar de brutalidade que rompem com a eloquência aristocrática ou burguesa.

No último capítulo, “Falar em público na política contemporânea: a eloquência pop e popular brasileira na Idade da Mídia”, Carlos Piovezani fala contra o senso comum de que a emergência de novas tecnologias de comunicação gerou um declínio da eloquência: em lugar disso, se propõe a pensar no surgimento de uma eloquência contemporânea, cuja principal característica é o saber falar em público como se falando em uma conversa privada – falar para todos como se falasse exclusivamente com cada um. Seguindo esta premissa o autor apresenta a dinâmica em torno de três dispositivos da fala pública (o palanque, o rádio e a televisão), aborda as transformações no uso da voz, que passa a privilegiar a casualidade e dispensar a eloquência pomposa do discurso aristocrático. Por fim, o autor se volta para a figura de Luiz Inácio Lula da Silva, analisando trechos de um debate entre o então candidato à presidência com jornalistas da tevê Bandeirantes, no ano de 2002. Piovezani analisa as estratégias usadas por Lula, a fala coloquial, o tom de voz, os gestos e forma de abordar o ouvinte. Busca esmiuçá-lo enquanto figura carismática, não só dotado de um carisma weberiano, mas também de um carisma pop, de uma oratória que carrega as marcas do povo pobre brasileiro.

Considerando as duas tarefas propostas em sua introdução – uma arqueologia e uma genealogia do discurso –, cabe perguntar: o livro as cumpre? Sim, mas apenas parcialmente. O capítulo introdutório estabelece grandes objetivos que se mostram timidamente no decorrer da obra. O conteúdo escrito do livro, seus capítulos individuais, por certo não é o problema: os textos têm densidade e lidam com temas interessantes, definem bem os objetos com que trabalham e oferecem bons panoramas dos “universos singulares” que circundaram a fala pública em diferentes tempos e lugares – eis aí a tarefa arqueológica.

Contudo, um livro é mais do que a soma de suas partes individuais. Os capítulos pouco dialogam entre si, e alguns sequer foram escritos para a obra em questão – especificamente os capítulos 2, 3, 5 e 7, que são traduções de artigos franceses dos anos de 1981 e 1994 (dentre os quais três foram extraídos do mesmo periódico). Isso não tira a qualidade dos textos, mas a disparidade entre a data de publicação dos artigos e da obra em questão deixa a impressão de que não se trata do que há de mais atualizado na produção sobre a história da fala pública. Para além disso, a discrepância entre os recortes temporais dos capítulos 2 e 3 ignora dezessete séculos de história e passa a impressão de que os dois textos têm caráter acessório.

E quanto à pretensão de uma história comparada da fala pública no Brasil e na Europa, e a de uma presumida “história global”, esta não é efetivamente articulada. Os capítulos sobre o Brasil e sobre a Europa não se comunicam, e a suposta “globalidade” parece se limitar ao Brasil e à França – com as tímidas exceções dos capítulos sobre Grécia e Portugal.

A respeito do recorte temático do livro, temos críticas negativas e positivas. Os organizadores propõem que uma história da fala pública não pode se limitar a uma história da retórica ou a uma análise do conteúdo dos discursos, devendo-se atentar para: a) os dispositivos materiais em torno da fala; b) o corpo, a voz e os gestos dos oradores; c) as falas e os silêncios dos mesmos; e d) os diversos públicos, dotados de seus próprios regimes de atenção e escuta.

Essas considerações são pertinentes, e ressaltam uma preocupação central para os estudos relativos ao tema.6 Contudo, ao proporem este amplo recorte temático os organizadores, na prática, enumeraram os diferentes enfoques adotados nos capítulos individuais – não uma preocupação geral da obra. Esse traço do livro consiste tanto em um defeito quanto em uma virtude. O contato com perspectivas variadas é importante para a formação acadêmica, mas algumas das colocações da introdução dão ao leitor uma expectativa que não se cumpre plenamente, ou ao menos não uniformemente.

O que faltou no livro foi um capítulo de conclusão que retomasse considerações feitas ao longo do mesmo. Isso colaboraria para sua coesão, indicando ao leitor como, na visão dos organizadores da obra, as perspectivas dos diversos autores se encaixam nas propostas apresentadas na introdução. Em outras palavras, o que falta não é densidade no conteúdo trabalhado, mas sim o diálogo dos capítulos uns com os outros, e um uso mais explícito do aporte teórico-metodológico proposto que, à primeira vista, parece se limitar a duas notas de rodapé na introdução. Também fazem falta prefácios para cada uma das três partes do livro, que poderiam clarificar como cada elemento individual se conecta com a proposta mais ampla da história da fala pública que pretenderam compor.

Em conclusão, o livro tem a virtude de promover um diálogo estreito entre os estudos históricos, linguísticos e literários, além de disponibilizar ao público brasileiro boas traduções de trabalhos produzidos em língua francesa. A obra também pode ser útil àqueles que se interessem pelo tema da fala pública sem fins específicos de pesquisa – embora a linguagem utilizada em alguns capítulos possa ser hostil ao público não acadêmico. Ao leitor na fase de graduação o livro pode fornecer novas referências bibliográficas, embora muitos dos capítulos citem artigos e livros em francês. Finalmente, a amplitude da obra e a menção a diversos documentos pode servir como ponto de partida para a busca de temas de pesquisa, oferecendo um bom primeiro contato.

Notas

2 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2014, p. 9-10.

3 COURTINE, Jean-Jacques; PIOVEZANI, Carlos. Introdução – por uma arqueologia dos poderes e perigos da fala pública. In.: _____.;______. (Org.). História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 11, 14.

4 Op. cit., p. 16.

5 COURTINE, Jean-Jacques. A voz do povo: fala pública, a multidão e as emoções na aurora da era das massas. In.: ______.; PIOVEZANI, Carlos. op. cit. p. 264.

6 Para um exemplo de abordagem orientada por esses preceitos com ênfase no período medieval, além de um panorama da chamada teoria da performance, cf.: KIENZLE, Beverly M. Medieval sermons and their performance: theory and record. In: MUESSIG, Carolyn (Ed.). Preacher, Sermon and Audience in the Middle Ages. Leiden: Brill, 2002. p. 89-124.

Referências

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 2014.

KIENZLE, Beverly M. Medieval sermons and their performance. In.: MUESSIG, Carolyn (Ed.). Preacher, sermon and audience in the Middle Ages. Leiden: Brill, 2002, p. 89-124.


Resenhista

João Victor Machado Da Silva – Graduando em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista PIBIC no Programa de Estudos Medievais (PEM-UFRJ). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

COURTINE, Jean-Jacques; PIOVEZANI, Carlos (Orgs.). História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso. Petrópolis: Vozes, 2015. Resenha de: DA SILVA, João Victor Machado. “Por uma arqueologia dos poderes e perigos da fala pública”: o lugar da eloquência na história.  Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 199 – 205, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

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