O uso dos conceitos: uma abordagem interdisciplinar | José D’ Assunção Barros

Em épocas de negacionismos, cada vez mais produções sólidas necessitam entrar em pauta para desenvolver o conhecimento histórico e consequentemente o científico. Nesse sentido, que a obra O uso dos conceitos: uma abordagem interdisciplinar de autoria de José D’ Assunção Barros e publicada no ano passado pela editora Vozes se evidencia. Ela que possui como proposta discutir como os conceitos são relevantes para as pesquisas interdisciplinares é dividida em duas partes. Na primeira parte, discute a articulação dos conceitos e a relevância da interdisciplinaridade; e na segunda, demonstra sua articulação com a área de música. Leia Mais

No Enxame: perspectivas do digital | Byung-Chul Han

Manuel Castells, em sua clássica obra Sociedade em Rede, afirmou que no final do segundo milênio da era cristão, “uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação, começou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado” (2000, p. 39). O sociólogo não pode prever que, mais do que modificar e “remodelar a base material”, iriamos ser arrastados para estes meios tecnológicos, em uma velocidade que ultrapassou o limite do material, chegando ao imaterial. Dessa forma, vivemos hoje um momento de dúvida, crise, instabilidade, sem sabermos para onde vamos.

Devido a este cenário, a obra de Han se apresenta como necessária aos estudos das humanidades, e, também, diretamente à historiografia. Afinal, muito destas transformações afetam diretamente o trabalho do/a historiador/a. Leia Mais

A irresponsabilidade médica | Philippe Meyer || Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas | Paulo Henrique Martins

No último século, a medicina sofreu profundas transformações, fruto da incorporação de recursos diagnósticos e terapêuticos inimagináveis ao final do século XIX. Da eletrocardiografia à tomografia computadorizada, da descoberta da penicilina aos modernos marcapassos cardíacos, muitas das melhorias foram aplicações diretas da física, da química e da biologia ao ato médico de cuidar dos enfermos. A medicina adquiriu status de ciência e, antes de tudo, alcançou uma eficácia anteriormente imprevista na capacidade de curar, aumentar o tempo de vida e fazer viver melhor.

Com sucesso variável, cada nação desenvolveu seus esforços de universalização do acesso da população a tais recursos, cada vez mais caros e eficazes. Formou-se, assim, um mercado consumidor de produtos farmacêuticos, médico-hospitalares e serviços de saúde, movimentando hoje gigantescos orçamentos públicos e privados. O ato médico passou a ser objeto de interesses econômicos e, por que não dizer, ditado também por uma dinâmica de mercado. O conhecimento de como funciona a medicina e, principalmente, a definição de como ela deve funcionar deixou de ser interesse da classe médica e passou a ser objeto de atenção de toda a sociedade. Leia Mais

História da Igreja: Notas introdutórias | Ney Souza

A segunda edição da coleção Iniciação à Teologia da Editora Vozes está lançando diversos volumes sobre as disciplinas e áreas da Teologia com um conteúdo introdutório para aqueles (as) que desejam conhecer melhor os fundamentos da ciência teológica, suas áreas e a sua relação com os demais saberes.

O volume referente à História da Igreja é de autoria do Prof. Dr. Ney de Souza, professor da Faculdade de Teologia da nossa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), cujo diploma de Doutorado em História foi registrado na Universidade de São Paulo. Professor Ney é um historiador renomado, centrando suas linhas de pesquisas em catolicismo na América Latina no que se refere à piedade popular, ditaduras militares, e a recepção e desdobramentos do Concílio Vaticano II no continente, promovendo através de publicações diversas, congressos e grupos de pesquisas a História da Teologia. Leia Mais

Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder | Erivaldo Fagundes Neves (R)

Desde a superação da fase ensaísta do pensamento social brasileiro e sua substituição por uma fase acadêmica, disciplinar, aumentou muito a exigência para uma síntese de história do Brasil que fosse, ao mesmo tempo, interessante para o debate público e que contemplasse a produção crescente de especialidade de áreas e sub-áreas. Conhecimento de fontes de períodos distintos da história do Brasil, especialmente colônia e império, trânsito em diferentes campos de pesquisa como história econômica, história da escravidão, história cultural, história territorial e historiografia, são atendidos por Formação social do Brasil do historiador baiano Erivaldo Fagundes Neves, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.

Neves é uma referência em campos como história agrária, história da escravidão e história regional e local dos sertões da Bahia. Mobilizando sua experiência, produziu uma interpretação da história do Brasil à partir das categorias de etnia, cultura e poder. A obra serve ao estudioso, por seu embasamento teórico e empírico, ao mesmo tempo em que interessa ao debate público pois discute hierarquias raciais, desigualdade, estrutura do Estado e persistência de instituições de privilégio. Mesclando narrativa e análise objetiva, Neves defende a tese de que o Brasil conserva do antigo regime português comportamentos e relações de poder marcadas pelo regime de mercês e privilégios, ao mesmo tempo em que possuiria uma cultura popular exuberante marcada pela diversidade e autonomia. Essa resenha do livro Formação social do Brasil descreve seu conteúdo e destaca lacunas e pontos de força.

Nos quatro primeiros capítulos, o autor trata de temas que podem ser considerados os “antecedentes” do país. Trata de história pré-colonial do Brasil, faz uma ampla revisão das teses arqueológicas sobre povoamento do Brasil, relativizando a teoria de migração via estreito de Bering e afirmando a plausibilidade da hipótese das múltiplas migrações, via África, Polinésia e Extremo Oriente, para a América, bem como das grandes migrações internas no continente sul-americano. Trata de sambaquis litorâneos, aldeias de pescadores, ceramistas e agricultores ribeirinhos no interior do país. Analisa a formação das nações indígenas no período colonial. Discute a formação de Portugal, desde a hegemonia mourisca do território, do Estado português no medievo e do contexto de tensões políticas entre estados cristãos e muçulmanos no Mediterrâneo ocidental, analisa a presença de povos roms, chamados callí na península ibérica. Debate a história dos povos africanos que tinham relação mais próxima com a história do Brasil pelas mediações do tráfico humano e do comércio. Há estatísticas do tráfico e discussão das construção das nações coloniais africanas, como banto, haussá, nagô, jeje ou mina, a serviço do colonizador ibérico.

Não faltam os temas clássicos de presença francesa e flamenga na colônia, o pacto colonial-mercantil e as resistências indígenas e quilombolas. A novidade é a incorporação de uma tendência da historiografia colonial que destaca o caráter não-linear e efêmero da conquista, recuos e resistências, especialmente nos dois primeiros séculos. Neves destaca que a história do século XVII não é só da destruição de Palmares, mas também das 37 vitórias que o quilombo obteve frente às expedições da Coroa. Há uma análise densa dos dispositivos jurídicos-políticos e socioculturais da colonização, a adaptação no transplante para a América, descrições do aparato administrativo da colonização, as instâncias judiciárias e o aparelho militar. Um dos pontos fortes do livro que enriqueceria as atuais discussões públicas sobre direitos e privilégios no país é o tratamento da economia de mercês, com privilégios e suas hierarquizações complexas no modo de organizar a república no Antigo Regime e sua transplantação. Sobre a dimensão cultural, Neves debate o Barroco como um gênero que se apropriou das inovações técnicas do Renascimento e as extrapolou para criar alegorias à partir de signos, o papel da religião na vida cultural e artística da colônia, as academias literárias surgidas no século XVIII como expressão da ilustração colonial e a completa autonomia da música, que conservou o cantochão nos templos, não desenvolveu a música de câmara europeia e promoveu uma imensa riqueza em termos de música popular de rua. Também trata dos aspectos econômicos. Para Neves, é insuficiente compreender a colônia brasileira apenas como exportadora de gêneros para o comércio mundial, mas também perceber o mercado interno. Destaca o papel da pecuária na ocupação dos sertões, da mineração do adensamento demográfico do interior e na mudança de gravidade econômica da colônia e o mito do bandeirante é analisado em sua construção no final do século XIX. O autor destaca os aspectos ideológicos dos protestos anticoloniais, o iluminismo entre os grupos sociais abastados e médios e o haitianismo dos setores subalternos, além dos aspectos políticos da transferência da corte para o Brasil em 1808.

Entre os capítulos 10 e 13, o autor trata da formação do Estado pós-independente. Aborda o papel dos poderes oligárquicos regionais, as continuidades do absolutismo português no poder moderador da constituição outorgada, a formação da burocracia, das forças armadas e de uma elite aristocrática homogênea em torno de Pedro II como estratégia de governança. Para o autor houve duas grandes tendências nas tensões políticas do país, a de centralização do poder e o federalismo das oligarquias rurais, comerciantes e mineradoras regionais. Essa dualidade foi investigada no capítulo sobre as regências, com análise da configuração política partidária do país, dos conflitos federalistas e das guerras civis generalizadas, inclusive as de recorte social e racial. Com o golpe da maioridade, Neves narra a construção da estabilidade monárquica, o reformismo que perpetuava o escravismo e o projeto de embranquecimento do país com a imigração. O segundo reinado, para Neves, é marcado por conservadorismo, resquícios do absolutismo, reformas realizadas quando havia grande pressão, manutenção da estrutura de latifúndio e das características econômicas rurais do país.

Neves analisa a exclusão da quase totalidade da população do letramento e consequentemente uma minúscula elite letrada. Oito em cada 10 brasileiros eram analfabetos no século XIX. Os alfabetizados em geral possuíam rudimentos de leitura e escrita, as quatro operações básicas de aritmética e noção de juros simples e compostos, o suficiente para assinar documentos, não possuir o estigma de analfabeto, negociar, votar, talvez ler livros religiosos, livros agrícolas e, depois de 1890, folhetos com romances em versos. Isso se refletiu em uma literatura brasileira que mimetizava estilos europeus, como o neoclassicismo, o romantismo, o simbolismo e o parnasianismo. A ruptura ocorreu com a industrialização, urbanização e formação de uma sociedade dividida em classes. Neves também trata da formação de uma identidade nacional à partir da historiografia no século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil estabeleceu uma história pátria na qual a nação se desdobrava da história colonial, com protagonismo português, sendo indígenas e africanos coadjuvantes. As expressões dessa historiografia eram von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil e os volumes de Vanhargen.

Nos capítulos 13 e 14 Neves trata da transição para a modernidade nos aspectos econômicos, políticos e urbanos. A nova infraestrutura de transportes a vapor e a crescente urbanização, especialmente em Rio de Janeiro e São Paulo, se identificavam com um modelo de civilidade que excluía os mais pobres e pretos. Neves narra a exaustão do escravismo e o colapso da monarquia, derrubada por uma parada militar, após uma longa crise política, sucedida por uma ditadura de marechais até a transição para os governos civis que representavam as oligarquias regionais mais poderosas. A república foi seguida de decepção, manifesta furiosamente em lutas sociais como as revoltas da armada, da vacina e da chibata, o tenentismo, o cangaço e os movimentos milenaristas. Trata do processo de consolidação territorial e dos tratados sobre as fronteiras do país, destacando os conflitos com Paraguai e Bolívia. A seguir, o autor discute o colapso da república oligárquica e o processo de modernização pós-revolução de 30. Além da narrativa dos principais acontecimentos que levaram ao fim do regime liberal, destacando o colapso do modelo agroexportador e a recomposição política construída à partir do declínio da hegemonia ruralista, Neves analisa as condições mais estruturais da modernidade e a sua implantação no Brasil, uma sociedade herdeira do escravismo que continuava as formas mais perversas de racismo, exclusão sócio-racial, analfabetismo generalizado e permanência das estruturas de mercê e privilégios. Em que pesem as rupturas em termos de estética, moda e expressão cultural, a moderna sociedade conservava uma série de suas características e mazelas, nos sertões e nas capitais.

No capítulo 15, Neves apresenta vários pensadores do Brasil, desde Antonil, seguido por von Martius, Vanhargen, chegando a Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manoel Bomfim, Oliveira Lima, Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Para Neves, o Brasil se caracterizaria por sua alegria, sociabilidade e generosidade, com aspectos do burlesco, do chistoso e do manhoso. Manifestos por uma minoria, haveria a astúcia, a vadiagem e a ilicitude, já destacadas por intérpretes do país como uma das características do brasileiro, mas segundo Neves, seriam aspectos marginais da população e expressão de suas estruturas perversas de concentração de terra, propriedade e poder. A escravidão, o genocídio, o latifúndio, a política baseada na mercê e nos privilégios, característica do antigo regime ibérico, teriam engendrado estruturas que persistem na organização do país. A história brasileira se caracterizaria, assim, por tendências opostas, como o centralismo e o federalismo, o latifúndio e a minifundização da propriedade, a opressão na forma de escravismo, jaguncismo, coronelismo e políticas excludentes dos oligarcas e a adaptação, burla, resistência e revolta permanentes.

Formação Social do Brasil mescla análise estrutural de longa duração, com destaque para aspectos econômicos, étnicos e políticos, mas há momentos narrativos, especialmente após a independência. O recorte cronológico vai até a revolução de 30. A ditadura civil-militar de 1964 está ausente, mas é tentador para o leitor pensar o período recente da história do país à partir das teses do autor de persistência de elementos do antigo regime na modernidade brasileira, como o sistema de mercês e privilégios e as reformas feitas sob pressão por regimes autocráticos. Algumas lacunas são as lutas sociais do movimento operário, já com destaque nas cidades nos anos 1910, e o banditismo rural, exceto por um tratamento mais atencioso ao cangaço. Como ficam os conflitos armados do império e da república de grande escala, como os que envolveram Militão Plácido da França Antunes nos anos 1840 e Horácio de Matos nos anos 1910, ainda ausentes em livros síntese de história do Brasil, dentro das das teses do autor sobre oligarquias fardadas? Formação é mais um livro de história econômica do que de história social, trata mais de estrutura que de conflito, embora destaque que a tensão e a revolta são permanentes.

O leitor que desejar conhecer com mais vagar os aspectos étnicos da formação do povo brasileiro, encontrará uma material amplo que trata de Portugal, África e América, pré-colonial e colonial, que permite uma visão panorâmica dos povos que formaram o Brasil. Além da diversidade étnica de indígenas e africanos traficados para a América, há destaque à diversidade étnica de Portugal, onde mouros, judeus e ciganos faziam parte da população que atravessou o Atlântico.

Uma última observação é que sua estruturação em capítulos pode ser desmontada e remontada. É possível fazer a leitura dos capítulos sobre etnia ou sobre economia, como também há capítulos de temas de cultura ou de política. Outras ordens podem ser feitas pelo leitor, sem prejuízo de sentido, devido à riqueza bibliográfica com qual cada tópico é construído. Nesse sentido, a profusão da bibliografia pode servir de guia de leituras para entender o Brasil. Em outros sentidos, o livro oferece ao leitor bastante autonomia, já que ele pode usá-lo como guia de leituras de aprofundamento, graças à bibliografia ampla e como cardápio de hipóteses extraídas do período colonial, imperial e primo-republicano para pensar questões recentes do país.

A novidade do livro é a proposta de uma história das estruturas econômicas e políticas do país que, não sendo concentrada no sudeste, seja territorialista. As obras escritas por Neves sobre os sertões baianos, tendo por objeto a conquista, o escravismo, a estrutura fundiária, a rede comercial e a cultura, permitiram que ele diferenciasse o território da sociedade, tentação em que caem muitos dos historiadores que pretendem se afastar de uma história dos centros administrativos do litoral. Não há “um sertão do Brasil”, mas sociedades, economias e oligarquias sertanejas, fundamentais para a estruturação do Estado e das hierarquias, políticas, sociais e raciais. Num momento em que a regionalização apressada vem ganhando espaço nas análises sobre política do país, onde abundam expressões como “o eleitor nordestino”, o “o voto dos grotões”, a “divisão regional”, é valiosa uma obra que não reifica o sertão, ao mesmo tempo em que não cai no caminho mais óbvio da historiografia brasileira de síntese que pensa o Brasil, para além de seus centros urbanos de expressão econômica ou administrativa, como território.

Flávio Dantas Martins – Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Atualmente é doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás e professor do Centro das Humanidades da Universidade Federal do Oeste da Bahia. E-mail: flaviusdantas@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5275-5761.


NEVES, Erivaldo Fagundes. Formação social do Brasil. Etnia, cultura e poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2019. Resenha de: MARTINS, Flávio Dantas. A persistência do privilégio: uma história das estruturas e das hierarquias do Brasil. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.39, n.1, p.508-513, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África | Jean-Loup Amselle e Elikia M’Bokolo

O livro No centro da etnia: etnias, tribalismo e Estado na África, organizado pelo antropólogo francês Jean-Loup Amselle e pelo historiador congolês Elikia M’Bokolo, foi publicado originalmente em 1985. Trata-se de uma referência para os interessados nos estudos sobre populações africanas e, especialmente, nos estudos relativos às identidades étnicas e às identidades nacionais em contextos africanos. Está entre os estudos desenvolvidos por historiadores da África, nos anos de 1980, sobre a “invenção da tradição na África colonial” (Ranger, 1997 [1983]) e sobre a “invenção da etnicidade” e a “criação do tribalismo” (Vail, 1989). Com relação aos autores, J.-L. Amselle não possui livros ou artigos publicados em português, talvez seu livro mais conhecido seja Mestizo Logics (Amselle, 1998); já E. M’Bokolo é conhecido pelos dois volumes do livro África negra: história e civilizações (M’Bokolo, 2009; 2011) que foram publicados no Brasil.

No primeiro capítulo, intitulado Etnias e espaços: por uma antropologia topológica (pp. 29-73), J.-L. Amselle busca desconstruir a própria noção de etnia presente em diversos estudos antropológicos. Segundo ele, o pensamento antropológico seria marcado por doutrinas essencialmente a-históricas; somente com a contribuição da corrente dinamista ligada aos nomes de G. Balandier (1976; 2014), M. Gluckman e P. Mercier, entre outros, é que a antropologia teria dado primazia à história, algo que possibilitou a reflexão sobre os contextos políticos e o início das críticas ou desconstruções das definições de etnia. Leia Mais

Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea | David Le Breton

A obra analisada é: “Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea” sendo ela constituída por 223 páginas, e encontra-se dividida em 6 capítulos. David Le Breton é um professor de sociologia na Universidade de Strasbourg II e membro do laboratório “Culturas e sociedades na Europa”, do Instituto Universitário da França e do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Strasbourg. É um dos autores contemporâneos mais conhecidos por sua série de obras publicadas na França, como também por sua especialização em representações do corpo humano. Seu trabalho é sempre constituído por uma busca pessoal com raízes na adolescência, portanto, o autor tem grande influência nos estudos sobre o corpo e corporeidade (SOUZA, 2009).

Acredita-se que a obra de Le Breton a qual é tratada na presente discussão pode ser pensada na questão do indivíduo como um ser sem perspectiva e, portanto, fora dos movimentos de vínculos sociais. Isto é, o autor oferece uma compreensão do por que necessitamos do “desaparecer de si” temporariamente, para assim surgir a vontade de continuar viver, assim como desenvolvemos uma “paixão pela ausência”. Portanto, ao longo dessa resenha é perceptível uma referência as diversas formas do desaparecimento de si, perante a falta de desejos e da perca de perspectiva, isto é, as tentativas de fuga da realidade. Leia Mais

Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas – RUST (PL)

Leandro Duarte Rust é um medievalista em ascensão no Brasil. Professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) é dono de uma crescente bibliografia, iniciada com a publicação de Colunas de São Pedro: a política papal na idade média central (Annablume, 2011), seguida por A reforma papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história (EdUFMT, 2013) e Mitos papais: política e imaginação na história (Vozes, 2015). Basta olhar para os títulos de suas obras para compreender porque Rust vem se consagrando como um historiador do papado.

Entretanto, seu quarto livro, Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas, recém-publicado pela editora Vozes, vai além. Seguindo a história de Cádalo, entronizado como o “antipapa” Honório II, o autor realiza uma profunda análise sobre as relações entre a violência e o sagrado na Península Itálica nos séculos X e XI. Leia Mais

O Peregrino e o Convertido: a religião em movimento | Danièle Hervieu-Léger

A obra o Peregrino e o convertido foi publicada pela primeira vez no ano de 1999, tendo posteriormente traduções para várias línguas, como o português, italiano e alemão. Dentre outras publicações importantes da autora estão: Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental (1986); De l’émotion en religion (1990); La religion pour mémoire (1993); Sociologies et religion: Aproches classiques en sciences sociales des religions (2001); La religion en miettes ou la question des sectes (2001); Catholicisme français: la fin dun monde (2003); Quest-ce mourir? (2003) (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 07).

A autora demonstra uma vasta experiência nos estudos da religião desde a década de 70, tornando-se uma referência no estudo da modernidade, memória e tradição religiosa. A socióloga é presidente da École de Hautes Études de Sciences Sociales (Paris) e diretora da revista Archives des Sciences Sociales des Religions. A apresentação da segunda edição da obra é de autoria do professor Faustino Teixeira da PPCIR / UFJF, que realiza uma descrição do currículo da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger. Leia Mais

Peregrinos e peregrinação na Idade Média | Susani França, Renata Nascimento e Marcelo Lima

As peregrinações na Idade Média tiveram, enquanto fenômeno religioso, diversas dimensões, ou seja, políticas, econômicas e também sociais. E assim, enquanto fenômeno histórico e produto, portanto, das práticas e experiências humanas, as peregrinações no Ocidente medieval não foram, no entanto, homogêneas.

A concepção medieval de que o cristão era, por excelência, um homo viator, estava correlacionada à crença no destino após a morte. Enquanto uma viagem terrena aos santos sepulcros localizados no Ocidente, como os de Roma e de Compostela e, no Oriente Próximo, em Jerusalém, a Terra Prometida, as peregrinações eram percebidas também como uma passagem entre este mundo e aquele imaginado pelos fieis, o mundo celeste. O historiador Jacques Le Goff (1989) argumentou em um de seus livros que todas as pessoas na Idade Média eram peregrinos, seja no sentido mais factual de realização de uma viagem ou peregrinos potenciais. A noção de homo viator refere-se, assim, à cosmovisão que os medievais compartilhavam a respeito da vida neste mundo enquanto um ritual, algo provisório, em contraste com aquele destino eterno associado ao Além. Leia Mais

História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica – MALERBA (PL)

Em História e narrativa: a ciência e a arte na escrita histórica, Jurandir Malerba, professor da UFRGS, reúne textos de importantes pesquisadores, filiados a diferentes áreas das Ciências Humanas, cuja temática nos convida a refletir em que medida a história se aproxima de um discurso científico e/ou artístico.

Resultado de uma disciplina ofertada no Programa de Pós-graduação em História da PUC-RS, o livro tem o mérito de trazer ao público que compartilha a língua portuguesa a tradução de estudos seminais para o campo da narrativa histórica, além de textos inéditos ou reeditados que evidenciam o reconhecimento e a competência de pesquisas produzidas por brasileiros no campo da teoria da história. Leia Mais

História, espaço, geografia: diálogos interdisciplinares | José D’Assunção Barros

A produção de trabalhos de História Regional são reveladoras de diversas situações históricas, culturais, sociais, econômicas e políticas que muitas vezes só podem ser percebidas quando estabelecemos um recorte espacial. Por isso, podemos considera-la como uma alternativa dentro da produção historiográfica brasileira que permite observarmos a atuação de diversos sujeitos muitas vezes anônimos se considerarmos a história escrita, ou almejada, de âmbito nacional.

Durval Muniz Albuquerque Júnior, porém, nos alerta para o risco de estabelecermos uma produção historiográfica hierarquizada na qual a História Regional seria secundária em relação à História Nacional. Albuquerque Júnior questiona a falta de crítica do lugar da produção do saber historiográfico por parte de quem faz a História Regional ao ponto de que esses historiadores estariam participando de uma divisão entre História Nacional e História Regional e, consequentemente, hierarquizando os espaços no campo historiográfico (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 39-40). Tal crítica nos permite refletir o fazer a História Regional não como resultado de uma série de operações limitadas territorialmente e desconectadas espacialmente de outras áreas, mas como uma abordagem interdisciplinar dialogando com a Geografia, Sociologia, Antropologia, Ciência Política entre outras. Leia Mais

Ética e subjetividade – CESCON (Ph)

CESCON, Everaldo (Org). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: DALSOTTO, Lucas Mateus. Philósophos, Goiânia, v. 23, n. 1, p.171-177, jan./jun., 2018.

Para todos aqueles que anseiam aprofundar seus conhecimentos a respeito da fenomenologia e, em especial, da relação desta com a ética, há pouco tempo foi publicado no Brasil um livro de imprescindível leitura, a saber: Ética e Subjetividade, organizado pelo competente e destacado professor Everaldo Cescon (Vozes, 2016, 314 p.). Note-se que a força e relevância do texto não decorrem apenas do fato dele fornecer uma ampla e apropriada abordagem a respeito da fenomenologia e, por conseguinte, de alguns de seus principais teóricos, tais como Edmund Husserl, Emmanuel Levinas, Edith Stein, Michel Henry, entre outros, mas especialmente por chamar a atenção do leitor a temas fenomenológicos que nos permitem falar diretamente da ética. Ainda que a obra resguarde uma homogeneidade no que diz respeito ao estilo e à forma de como cada autor estabelece sua discussão, isto não exclui em nada a riqueza de ca da um dos textos. Em linguagem acessível e com interpretações e análises acuradas, o livro conta com a contribuição de uma vasta gama de reconhecidos especialistas brasileiros e internacionais (i.e., Argentina, Colômbia, Portugal, Espanha e Itália) na área.

Ao considerar que a ética contemporânea desenvolve-se num vazio de sentido, na medida em que as bases ontológicas e metafísicas para a reflexão desta foram removidas, o escopo do presente livro reside em apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir. O trabalho de fundamentação de nossas escolhas morais continua sendo um problema fundamental e indispensável no domínio da ética, o qual não se restringe em ser um problema meramente teórico, mas, tanto mais, um problema prático. Assim, é somente reivindicando a exigência do valor e refundando as crenças morais que será possível enfrentar uma sociedade cada vez mais atrelada à necessidade, à instrumentalidade e à utilidade do valor.

A fim de levar a cabo tal proposta, Ética e Subjetividade está dividida em cinco seções, cada uma delas cumprindo uma função especial no objetivo geral da obra. Partindo do processo metodológico de constituição da fenomenologia e perpassando pelo pensamento ético husserliano, as análises dirigem-se às mais variadas abordagens e desenvolvimentos éticos que surgiram a partir dessa corrente teórica. Estas seções são ainda precedidas por uma breve e oportuna introdução, a qual, nas palavras de Cescon, visa apresentar a eminente necessidade de repensarmos a ética no sentido de “permitir ao indivíduo constituir-se enquanto pessoa autor-responsável, livre, solidária e aberta” (p. 9).

Considerando o fato de que Husserl era entendido como um filósofo teórico e que, portanto, a ética sempre foi um dos temas que menos recebeu atenção por parte de seus estudiosos, a primeira seção do texto tem por finalidade principal expor a concepção de racionalidade prática que parece emergir de sua fenomenologia. Neste contexto, são apresentadas duas fases principais da obra husserliana no tocante à reflexão ética, uma de tipo lógico centrada na crítica e na teoria do conhecimento, e outra centrada na subjetividade humana e na noção de dever no sentido da vocação/missão. Na sequência, defende-se que em ambas as fases o objetivo de toda a fundamentação fenomenológica de Husserl foi sempre salvaguardar a objetividade, tanto das proposições teóricas quanto dos valores e das proposições éticas. Então, busca-se analisar o excurso Natur und Geist nas Lições de Ética, de 1920 a 1924, a fim de esclarecer o “âmbito do humano espiritual para, assim, saber ao que exatamente a ética se refere” (p. 68). Por fim, é avaliado se a ética de Husserl obtém sucesso em reivindicar que juízos de valor possuem uma validade que independe das particularidade dos agentes que os emitem e em defender que há alguma coisa como uma obrigação moral absoluta que vincula incondicionalmente a vontade dos agentes à ação.

Diferentemente da primeira seção, onde a reflexão estava centrada na noção de racionalidade prática e de objetividade moral na ética husserliana, a segunda seção visa discutir a questão da subjetividade ética e mostrar a influência de Husserl sobre outros autores. Partindo deste último, inicialmente é mostrado que a intencionalidade da consciência permite aos agentes perceber que os valores lhes são dados do mesmo modo como os objetos da intuição sensível o são e que, desse modo, a esfera afetiva – subjetiva – dos agentes faz parte do âmbito da moralidade. Num segundo momento, busca-se evidenciar a herança de Husserl na antropologia de Edith Stein, especialmente no que diz respeito ao método, uma vez que esta última incorpora integralmente em sua proposta a ideia de epoché daquele. No que se segue, discute-se a transcendência ética em Levinas no sentido de que a razão é incapaz de captar o outro sem reduzi-lo ou objetificá-lo e que, por isso, ela é incapaz de reconhecer a radicalidade do chamado do outro. A resposta a este chamado produz um “transbordamento da intencionalidade” (p. 156), o qual é impossível de ser capturado pela consciência intencional do agente.

Em continuidade à anterior, a terceira seção aborda a questão da subjetividade ética e o problema do corpo a partir da contribuição de alguns autores filiados – de alguma forma – à tradição fenomenológica. Primeiramente, avalia-se a possibilidade de uma fenomenologia da individuação a partir do conceito de encarnação de Michel Henry. O ponto central é que aquilo a que fazemos referência – noema – em nossa experiência intencional, dando-lhe sentido – noesis –, implica, em alguma medida, torná-lo carne, especificamente “carne de minha carne” (p. 164). Em seguida, o pensamento de Michael Henry é apresentado como estando vinculado a um tipo de fenomenologia do corpo – da subjetividade – segundo o qual a ética se dá no cuidado da vida e, nesse caso, na não-instrumentalização do corpo de cada indivíduo. Ao final dessa seção é exposta a posição Nicolai Hartmann, que, pensando a partir da fenomenologia, realizou uma vigorosa crítica à metafísica, tanto antiga quanto moderna, no sentido de chamar atenção à pluralidade e complexidade dos valores que afetam a vida dos agentes.

Na quarta seção, a questão da subjetividade ética ainda permanece no foco das discussões, mas agora atrelada ao problema da ação e sob o viés de outros autores. O ponto de partida de Ética e Subjetividade aqui é mostrar o esforço de Paul Ricouer em conciliar a teleologia aristotélica e a deontologia kantiana e, ao mesmo tempo, eliminar o problema – atinente a ambas as teorias – da exclusão da alteridade e da reciprocidade nas relações interpessoais. Posteriormente, expõe-se a teoria de Xavier Zubiri com vistas a sugerir que a reflexão moral não é uma questão de descobrir a que normas se está obrigado a cumprir, mas, ao contrário, de descobrir quais são as estruturas e características próprias de organização, solidariedade e corporeidade do ser humano. Finalizando a seção, o fenômeno da hospitalidade é analisado como uma forma de agir passivo em que há, nos termos de Levinas, um ‘transbordamento’ – as bordas de um fenômeno transbordado nunca poderão ser evidentes –, o qual, por sua vez, torna a apreciação conceitual uma tarefa delicada e complexa. A impossibilidade de tal apreciação deve converter a hospitalidade numa espécie de transgressão cujo resultado será a acolhida do hóspede, do estrangeiro ou de qualquer um outro.

Na última seção, as análises concentram-se na compreensão da relação existente entre subjetividade pessoal e comunidade ética. Num primeiro momento, o trabalho de Edith Stein é tomado em questão para evidenciar que a realização do ser humano como pessoa reside no encontro deste com o outro no interior de uma comunidade, onde esta comunidade é fonte de força vital e espiritual para os agen-tes na medida em que ela gera um sentido de pertença entre todos eles. A seguir, retorna-se a Husserl para mostrar que, embora a personalidade dos agentes seja regida por normas racionais que se ajustam ao telos próprio de cada um deles, é impossível imaginar que o ideal ético pessoal seja realizável sem abertura aos outros. Por fim, faz-se uma interpretação do fato da irrupção dos pobres – termo cunhado pelo teólogo Gustavo Gutiérrez ao se referir ao crescente número de marginalizados existentes nas grandes e pequenas cidades – na América Latina a partir do conceito de Jean-Luc Marion de fenômeno saturado – fenômeno que ultrapassa todas as significações conceituais e horizontes prévios de compreensão.

Para concluir, é importante chamar atenção para o fato de que, além de muito bem escrito, Ética e Subjetividade oferece uma segura síntese a respeito do atual estado da arte entre fenomenologia e ética. Apesar de toda a complexidade dos temas e análises realizadas nos textos, o livro é de fácil e acessível leitura, mesmo para aqueles que não estão familiarizados com os autores ou com os principais tópicos da discussão. Ainda que alguns temas pareçam carecer de maiores explicitações e, talvez, merecessem até uma exposição mais detida e minuciosa, é possível afirmar que o livro cumpre plenamente sua função, a saber: apresentar a fenomenologia como sendo capaz de fornecer princípios para um novo agir ético. Portanto, Ética e Subjetividade é uma das mais importantes contribuições editoriais no domínio da fenomenologia realizadas no Brasil nos últimos anos e, por conseguinte, é imprescindível sua leitura e discussão nos mais diversos ambientes da academia filosófica de nosso país.

Referências

CESCON, Everaldo (Org.). Ética e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2016.

Lucas Mateus Dalsotto – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:  lmdalsotto@hotmail.com

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História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso | Jean-Jacques Courtine e CArlos Piovezani

A fala pública foi, no decorrer da história, um lugar privilegiado do exercício da autoridade e influência sobre as mais diversas sociedades. Seguindo a premissa proposta por Michel Foucault – de que o discurso não é tão somente o veículo, mas sim o objeto do desejo, aquilo pelo que se luta2 – os autores Carlos Piovezani, da Universidade Federal de São Carlos, e JeanJacques Courtine, das Universidades de Auckland, da Califórnia e da Sorbonne Nouvelle, organizaram o livro “História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso.”

Trata-se de uma obra coletiva com uma proposta ambiciosa que, como indicamos nas páginas abaixo, esbarra em limitações práticas. O livro é dividido em onze capítulos (contando-se a introdução escrita pelos dois organizadores) e três partes que definem os recortes temporais trabalhados. A obra reúne textos de dez autores, sendo três deles professores de universidades brasileiras e os demais atuantes no exterior. O livro opta por uma abordagem interdisciplinar, pelo aporte dos estudos históricos, linguísticos e literários. Leia Mais

Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval | Andréia Silva, C. L. Frazão da

Diferentes perspectivas, abordagens e aspectos da santidade na Idade Média

O livro é uma iniciativa de vários professores doutores ligados ao Programa de Estudos Medievais da UFRJ, organizado por Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva e Leila Rodrigues da Silva. Após o prefácio que apresenta a obra, escrito pelo Prof. Dr. Ronaldo Amaral da UFMS, seguem cinco capítulos, cada um com de cerca de 30 páginas, que abordam por diferentes perspectivas e recortes espaço-temporais a temática da santidade na Idade Média. Ainda estão inclusas as Referências, informações sobre a Documentação consultada, Sugestões de Leitura e dados sobre a trajetória intelectual dos Autores do livro.

O capítulo inicial do livro, “Mártires na Antiguidade e na Idade Média”, escrito por Valtair Afonso Miranda, tem como questão central o fenômeno histórico do martírio, pensando para quem os relatos foram produzidos e a que interesses atendiam com essas representações do sofrimento e da morte. Para dar conta desse questionamento, o autor analisou a tradição cristã do martírio em suas diferentes manifestações nas comunidades cristãs antigas e medievais.

Desde sua origem etimológica, afirmou Miranda, o “mártir” era tanto aquele que deveria ser lembrado quanto quem possuía o conhecimento de algo e poderia apresentar seu testemunho. Nesse sentido, um dos primeiros documentos do cristianismo a descrever a morte de um cristão foi o “Martírio de Policarpo”. Segundo o autor, o texto já apresentava o “mártir” como a própria testemunha que morria em grande sofrimento. Para o segundo século, o termo já indicava sofrimento e/ou a morte de alguém que era, especificamente, seguidor do movimento de Jesus.

Miranda retomou diversas referências anteriores ao martírio cristão para demonstrar que, tanto no judaísmo quanto no Império Romano, a imagem de morte por um ideal já estava bem consolidada. Associada a isso, a própria morte de Jesus foi uma referência essencial para a construção do conceito de martírio, motivado pelas expectativas messiânicas, que atrelavam o perdão da humanidade a uma morte dolorosa e violenta do salvador. Uma terceira referência foi construída pelo Apocalipse de João, que promoveu a ideia de martírio como etapa necessária para o Juízo Final. Dessa forma, um dos modos dos fieis participarem da instauração do reino messiânico era por meio da morte violenta. “As mortes cristãs, quando ritualizadas segundo o modelo do mártir, eram eficientes instrumentos de propaganda para o cristianismo numa sociedade que aprendera a respeitar quem sabia morrer” (p. 42).

Após o fim das perseguições aos cristãos, não eram mais encontradas essas formas de morrer em nome da crença. O autor ressaltou, então, os aspectos principais do martírio espiritual, que assumiu o lugar do sofrimento pela tortura e a morte violenta dos períodos anteriores. Esse martírio poderia ser qualquer situação de desconforto, inclusive físico, praticado de forma voluntária e que não levava a morte. Poderiam ser realizados em casas religiosas, dentro do matrimônio, em solidão ou no exílio. Os monges comumente passaram a ser vistos como os “novos heróis” do cristianismo. De modo geral, o “martírio espiritual” era um conceito fluído, que se adaptou para explicar situações diferentes de sofrimento.

Contudo, durante a Idade Média Central, por conta de uma nova onda de propagação de heresias, martírios – no sentido inicial da concepção cristã – voltam a ocorrer e novos mártires – como Tomás Becket e os cinco franciscanos mortos no Marrocos – rapidamente passam a ser cultuados com fervor. Em vista disso, Miranda afirmou, nas suas conclusões, que era de suma importância para a construção das novas comunidades religiosas definir quem era o seu herói. Isto era “um exercício de poder, poder esse que define limites identitários, esclarece alteridade, reforças práticas e crenças religiosas, gera papéis sociais, legitima governos, socializa visões de mundo” (p. 54).

No segundo capítulo “Monges e literatura hagiográfica no Início da Idade Média”, Leila Rodrigues da Silva desenvolveu sua análise com dois objetivos principais. No primeiro, tratou da História do monacato desde suas origens orientais até os seus desdobramentos nos reinos romano-germânicos, ou seja, a partir do século IV e com especial atenção aos séculos VI e VII. No segundo, a autora associou a apresentação da tipologia documental das hagiografias com a análise dos estudos de caso de monges de três regiões, a saber: Bento de Núrsia da Península Itálica, Frutuoso de Braga da Península Hispânica e Amando de Maastricht das Gálias. Os relatos hagiográficos dos três monges expressavam o anseio geral de cristianização dos seus períodos e manifestavam a importância da construção e multiplicação de comunidades monásticas para a efetivação destas ambições.

A respeito do monacato, Rodrigues da Silva apresentou as principais hipóteses produzidas sobre a motivação inicial para tal movimento ascético no contexto do Império Romano do Oriente. Essas proposições se resumiam na ideia de que para entender a complexidade do fenômeno era necessário considerar tanto o anacoretismo como uma atitude de protesto – seja em relação ao aspecto religioso ou político – quanto uma decisão pessoal e moral do asceta. As duas formas principais de monacato que se originaram nesse contexto, o eremitismo e o cenobitismo, chegaram ao Ocidente sem que houvesse descontinuidade em relação à sua motivação original. Além disso, se associaram às formas ascéticas já praticadas localmente. Entre os séculos IV e VII, o movimento monástico foi vinculado ao episcopado, que se preocupou com a produção de regras comunitárias, normativas conciliares e a expansão da cristianização com atuação de monges nas áreas rurais.

A segunda preocupação de Rodrigues da Silva estava pautada em como a experiência monástica se expressava nos textos hagiográficos, buscando comparativamente as semelhanças e as especificidades nos três contextos eleitos. O primeiro monge analisado, Bento de Núrsia, ficou conhecido pela perspectiva de seu hagiógrafo, Gregório Magno. Segundo a narrativa, Bento teria origem em família abastada, com acesso à educação em Roma. Sua experiência religiosa incluiu um período de isolamento, disputas com os demônios, destruição de ídolos, construção de doze mosteiros, produção de uma regra e preparação de outros monges – destacando nessas obras o papel das virtudes da obediência e da humildade. O segundo hagiografado, Frutuoso de Braga, foi apresentado por um anônimo. Seu narrador indicou uma intensa participação eclesiástica e política: ele teria produzido duas regras monásticas, participado de concílios, trocado correspondências com reis e bispos e assumido duas dioceses. O monge-bispo seria totalmente dedicado à vida monástica, valorizando suas características ascéticas orientais – como o desejo pela peregrinação e a necessidade de isolamento -, fundando novas casas e promovendo o monacato de modo geral. O terceiro e último monge anunciado por uma hagiografia, Amando de Maastricht, foi relatado anonimamente. Além dessa narrativa, esteve referenciado em cartas trocadas com Martinho I, bispo de Roma. Após um período de isolamento ascético de quinze anos, sua característica monástica mais marcante foi a atividade missionária desempenhada em diversas regiões dos reinos merovíngios. Também foi sagrado bispo por sua associação com a monarquia e o episcopado local.

A autora concluiu que, comparativamente, o monacato ocidental visto a partir das narrativas hagiográficas dos reinos romano-germânicos não configurou uma contestação veemente à instituição eclesiástica. A perspectiva eremítica marcou a trajetória inicial dos monges destacados da hierarquia eclesiástica, se concretizando como um “ideal desejado”.

Passando ao terceiro capítulo “Santos e episcopado na Península Ibérica”, Paulo Duarte Silva partiu das proposições historiográficas de Peter Brown, que superou a dicotomia estabelecida sobre as documentações hagiográficas – reforçando ou rejeitando a santidade dos protagonistas – e permitiu o estudo do contato dos “eclesiásticos seculares” com outros grupos religiosos. Segundo Duarte Silva, estudiosos recentes contestaram as fronteiras entre os cuidados episcopais e o pretenso isolamento monástico. O episcopado se desenvolveu como função eclesiástica, desde o século I até as mudanças na organização e na estrutura promovidas pela aproximação do Império Romano e a ecclesia. Do ponto de vista Ocidental, o autor chamou atenção de que gradualmente as aspirações aristocráticas aos cargos eclesiásticos se aprofundaram, sendo acompanhadas pelo interesse de adesão ao monasticismo. Na Alta Idade Média, predominava o monacato beneditino. Como consequência, a partir dos séculos X e XII, consolidaram-se as ordens beneditinas de Cluny e Cister. Para a Idade Média Central surgiram novas demandas de religiosidade, que deram grande destaque às ordens mendicantes – de franciscanos e dominicanos.

Duarte Silva teve por objetivo analisar as relações entre o cursus episcopal e as ordens religiosas de bispos-santos cristãos. Partindo do recorte temporal da Alta Idade Média até a Idade Média Central, dedicou-se a análise de bispos e cônegos, especificamente que tivessem atuado na Península Ibérica. Para viabilizar a comparação, o especialista estabeleceu eixos de análise como: a trajetória institucional na fundação de mosteiros e conventos, a participação de concílios e as relações assumidas com as autoridades monárquicas. Para tanto, elegeu oito figuras de bispos considerados santos e dentro dessas especificações: Martinho de Braga (520-580); Isidoro de Sevilha (560-636); Rosendo de Celanova (907-977); Ato de Oda/Valpuesta (m. 1044); Olegário de Tarragona (1060-1137); Bernardo Calvo (1180-1243); Agno de Saragoça (1190-1260), e; Berengário de Peralta (1200-1256).

O terceiro capítulo apresentou como conclusão que, desde a Alta Idade Média, a grandiosidade dedicada à memória dos clérigos oriundos do monacato demonstrou o interesse eclesiástico em organizar, adequar e submeter a vida monástica às decisões episcopais e conciliares. Nesse sentido, surgiram novas possibilidades de consagração pública, promovendo e organizando a santidade ibérica. Com o passar dos séculos foi possível observar um processo de expansão do modelo monástico beneditino, a partir do Norte da Península Ibérica em detrimento da tradição visigótica. Gradativamente, a santidade também foi atribuída a bispos relacionados aos cônegos e aos mendicantes. Em suma, Duarte Silva afirmou que as trajetórias dos bispos santos peninsulares possuíam diversos eixos de continuidade – origem nobiliárquica, estadia em mosteiros ou em conventos, apoio das monarquias e participação dos personagens em concílios – enquanto simultaneamente era permeado por características de ruptura. Ou seja, “a santidade é histórica, e por isso, embora admita elementos comuns, deve der associada a diferentes contextos políticos e religiosos” (p. 113).

Em “As ordens mendicantes e a santidade na Idade Média”, o quarto capítulo do livro, a autora Carolina Coelho Fortes traça a relação entre os fenômenos da santidade e do surgimento das ordens mendicantes, surgidas a partir do século XIII. Para isso, o capítulo foi dividido em cinco partes: a santidade no Medievo, surgimento e formação das ordens mendicantes, a santidade mendicante, Francisco de Assis e Domingo de Gusmão.

Na primeira parte, de maneira muito densa e completa, foi apontado o que era necessário para ser considerado santo na Idade Média e quais os perfis de pessoas cultuadas conforme o Medievo avançava. Assim, embora as hagiografias apontassem que seria impossível tornar-se santo – porque a santidade começava a se manifestar desde a mais tenra idade e continuamente ao longo da vida e após a morte – a autora demonstrou o contrário. Ela destacou que é possível considerar as múltiplas dimensões da temática e abordá-la nas perspectivas espiritual, teológica, religiosa, social, institucional e política. A visibilidade, a materialidade, a corporeidade, o serviço prestado à comunidade, os sacríficos, dores e renúncias, o combate ao mal, os milagres e a esperança de redenção trazida para a comunidade, tudo isso está na lista de topoi hagiográficos que ao mesmo tempo promovia a difusão e o reconhecimento (eclesiástico ou não) da santidade, segundo Fortes. E por isso, a santidade deveria ser entendida como “uma construção social, um ideal que se desenvolveu historicamente” porque “tipos diferentes de pessoas eram percebidos como santos pelas comunidades cristãs durante períodos distintos” (p. 102).

Ainda na Antiguidade, o primeiro tipo teria sido composto por mártires e, sem que seu culto fosse eclipsado pelos modelos posteriores, durante a Idade Média juntaram-se a eles: os bispos, os ascetas, os nobres que conseguiam altos cargos na hierarquia eclesiástica, os leigos nas cidades, os mendicantes, os penitentes, a Virgem Maria e, finalmente, os leigos. A autora fez considerações que relacionam os elementos da tipologia já descrita com os diferentes contextos históricos – da Antiguidade Tardia até a fins do Medievo, passando pela Alta Idade Média e Idade Média Central – ou seja, uma duração de aproximadamente 1000 anos. Neste interim, Fortes destacou o impacto da criação dos processos de canonização, no século XIII, no controle da santidade pelo papado, bem como isto contribuiu para a “humanização” ou “popularização” da santidade. Este último fator fez das personagens santas cada vez mais conhecidas, familiares e inspiradoras de uma devoção mais afetuosa do que referencial (p. 125).

Ao tratar das ordens mendicantes, a autora fez uma síntese de como as transformações ocorridas no Ocidente, desde o século XI, possibilitaram o seu surgimento. E então, o texto abordou alguns pontos entrecruzados a este respeito principalmente da Ordem dos Frades Menores – franciscanos – e da Ordem dos Pregadores – dominicanos, a saber: como normatizar as ordens mendicantes foi útil para a consolidação da cúria papal; como franciscanos e dominicanos lidaram com o delicado e controverso voto de pobreza; como a produção hagiográfica sobre Francisco de Assis e Domingos de Gusmão promoveu ao mesmo tempo o culto destes fundadores, a institucionalização de ambas as ordens e estabilizou as relações das mesmas com Roma, além de criar modelos de frades e freiras a serem seguidos. As diferenças entre as duas ordens também ficam claras porque a autora as apresentou comparativamente. Embora a pobreza, a pregação, a obediência, os estudos, a presença de leigos e de clérigos nos quadros das ordens e o combate aos inimigos da fé fossem questões importantes para ambas, a ênfase dada a cada uma destas temáticas foi bem distinta e pautada pelos objetivos dos fundadores – e dos seus sucessores – e os ambientes onde cada uma delas atuava.

Nas partes que se seguem do capítulo, Fortes analisou e demonstrou, mais uma vez por meio das comparações entre as ordens e seus fundadores, como os processos de canonização estavam intrinsecamente conectados com a santidade mendicante e, portanto, com o culto a Francisco de Assis e a Domingos de Gusmão. Foram levantados argumentos quantitativos e relações com o contexto histórico, bem como exemplificações constantes de como funcionava uma canonização no século XIII, e como os casos de Francisco e Domingos são excepcionais, principalmente por causa da sua celeridade e impulso papal direto. Contudo, nas considerações finais, Fortes fez questão de frisar que a compreensão do fenômeno da santidade encontra-se situada em algum lugar entre as aspirações centralizadoras papais e as demandas da religiosidade leiga do período, que seguiam a efervescência filosófica, educacional, econômica e social do século XIII.

No quinto e último capítulo, “Mulheres e santidade na Idade Média”, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva estabeleceu como objetivo “destacar, a partir das singularidades da biografia e culto das personagens, a sobrevivência e a complexidade do fenômeno da santidade feminina por todo o Medievo” (p. 150). Deste modo, as personagens referidas são mulheres que viveram entre os séculos V e XIII e que receberam variadas formas de reconhecimento público de santidade.

As motivações da autora para tal empresa foram duas ressalvas e dois pressupostos. A primeira ressalva inicia o capítulo, pois segundo Sofia Boesch Gajano, em um verbete do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, o número de mulheres consideradas santas teria aumentado no século XIII. Porém, Frazão da Silva apontou que é necessário não superestimar este crescimento. A autora citou como base de sustentação os dados das pesquisas clássicas de André Vauchez sobre o tema e ainda os resultados do projeto coletivo de pesquisa Hagiografia e História: um estudo comparativo da santidade, desenvolvido no âmbito do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. A segunda ressalva é que o fenômeno da santidade feminina se tornou mais diversificado e expressivo na Idade Média Central. Porém não foi uma inovação do período, já que uma quantidade significativa de santas cultuadas pelos medievais já eram veneradas desde a Antiguidade.

Os pressupostos da autora são de caráter historiográfico. A autora adverte que a sua concepção de santidade não é essencialista e que ela leva em conta também as expectativas e interesses daqueles que promovem os cultos. Mais importante para o entendimento do capítulo é a conceituação de biografia que ela apresenta: “um exercício que busca compreender os laços, nem sempre diretos ou simples, que ligam uma pessoa ao momento histórico em que viveu” (p. 150).

Assim, após as observações introdutórias, segue uma lista, em ordem cronológica, de pequenas biografias de mulheres consideradas santas – com ou sem reconhecimento de Roma. Em cada uma delas, a autora faz questão de mencionar como o culto de uma santa foi retomado na Idade Média, no caso das santas da Antiguidade, ou como o culto perdurou para além do Medievo, no caso das devoções iniciadas neste período. E ainda, quais são as fontes escritas que nos informam sobre as personagens, tendo elas sendo produzidas pelas próprias ou por terceiros. A lista é longa e fica evidente que o intuito da autora é apresentar personagens as mais diversas possíveis entre si, apesar das muitas semelhanças entre elas.

Santa Escolástica, monja exemplar da Península Itálica, que teria vivido entre os séculos V e VI, e irmã de São Bento, o criador da regra de vida beneditina para os monges. Santa Radegunda, uma rainha piedosa de ascendência germânica da Alta Idade Média, que se recolheu a um mosteiro. Santa Valpurga, outra dama da nobreza e abadessa que viveu nas Ilhas Britânicas, no século VIII. Santa Oria, jovem que tinha sonhos e visões e foi “emparedada” (modalidade de religiosa totalmente reclusa), em Castela, no século XI. A próxima da lista é mais famosa ainda pelas suas visões, pela sua trajetória institucional eclesiástica e pelos seus escritos. Considerada doutora da Igreja, viveu na região da atual Alemanha, no século XI, trata-se de Santa Hildegarda de Bingen. Santa Clara de Assis, filha de nobres da cidade de Úmbria, na Itália, do século XIII, a primeira franciscana e fundadora do ramo feminino da Ordem dos Frades Menores. E, por fim, Santa Guglielma, nascida na Boêmia, no século XIII, possivelmente também uma princesa, que faleceu na Itália próxima a abadia de Chiaravalle. O caso de Guglielma é um dos mais singulares, porque inicialmente ela foi cultuada por um grupo local de seguidores, mas posteriormente foi condenada pela Inquisição.

Nas considerações finais do capítulo, a autora nos apresenta uma lista muito maior de nomes que poderiam ter sido citados, o que nos permite ter uma dimensão da sua primeira conclusão: mesmo que a mulher fosse vista como débil em vários sentidos no pensamento hegemônico medieval, isto não impediu que houvesse um grande número de personagens femininas consideradas dignas de devoção pelos medievais. Também não seria possível traçar um perfil único para a santidade feminina medieval. Novos tipos de personagens vão sendo incorporadas ao rol das veneradas e, apesar da constância da vida religiosa na biografia de todas, cada uma delas seguiu passos bem diferentes nestes caminhos. Sendo assim, mais uma vez fica claro como o fenômeno da santidade não é estático, é histórico e profundamente conectado com as conjunturas, anseios sociais e relações de poder (p. 181).

Destacam-se a clareza da redação ao longo de todo o livro e a preocupação em explicitar os objetivos e metodologias das pesquisas realizadas – bem como a coerência de se manter fiel ao que foi proposto. Os capítulos dialogam entre si e evitam repetições, porém sem deixar de mencionar o que for importante para o entendimento das questões analisadas. Desta forma, o livro cumpre duas funções. Apresentar um trabalho amplo e atualizado para aqueles que desejam iniciar o estudo do culto aos santos no Ocidente Medieval, podendo assim fazer bom uso da leitura completa do livro. Ou ainda, para aqueles que já se estão se aprofundando em alguma das temáticas específicas, ler um dos capítulos possibilita o conhecimento de abordagens novas, variadas e críticas.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: julianaraffaeli@hotmail.com

Thalles Braga Rezende Lins da Silva – Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada, UFRJ. E-mail: thalles1107@gmail.com


SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues da Silva. Mártires, confessores e virgens. O culto aos santos no Ocidente Medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado; SILVA, Thalles Braga Rezende Lins da. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.1, p. 255- 261, 2017. Acessar publicação original [DR]

10 Lições sobre Gadamer – KAHLMEYER­-MERTENS (ARF)

KAHLMEYER­-MERTENS, Roberto S. 10 Lições sobre Gadamer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2017. Resenha de: SILVA, Claudinei Aparecido de Freitas da. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.4, n.1, p.187-­192, jan./jun. 2017.

Não é tarefa simples rastrear um percurso filosófico, sobretudo, quando suas sendas, uma vez abertas, conduzem o leitor floresta adentro no intuito contingente de enredar­-se em seus mistérios. Tal é a experiência de pensamento que uma obra do porte da de Hans­- Georg Gadamer (1900­-2002) lega a seu intérprete. É, pois, assumindo, um peculiar exercício hermenêutico que10 Lições sobre Gadamerbrinda o público de língua portuguesa na já consagrada Coleção 10 Lições da Vozes. O autor, Roberto S. Kahlmeyer-­Mertens, que assinara pela mesma série,10 Lições sobre Heidegger (2015), novamente leva a bom termo tal projeto. Afinal, quais seriam, em seu quadro geral, as Lições perseguidas por esse pioneiro e notável estudo introdutório sobre Gadamer?

Na Primeira Lição, “Quem é Gadamer?”, Mertens sumariza a gênese do pensamento gadameriano, destacando suas influências de formação, bem como sua fecundidade intelectual. Gadamer é revivido desde a juventude quando, acercado por Paul Natorp, travaria contato, já no início dos anos 1920, com Heidegger. Malgrado os encontros e desencontros com o autor de Ser e Tempo 1927), fato é que Gadamer jamais deixará de reconhecer a força inspiradora desse projeto acalentado na segunda década. Quer dizer: o magnetismo da fenomenologia e, particularmente, a estreita verve hermenêutica do programa heideggeriano exercerá, de maneira intrépida, uma atração distintiva no itinerário gadameriano. Como avalia Mertens (p. 28), “a vocação hermenêutica de Gadamer, inicialmente, cultivada por Heidegger é algo que se reaviva”. Outro aspecto, porém, não se perde de vista no curso dessa primeira lição: a posição política do jovem filósofo. É o que se pode avaliar por conta da ascensão do partido social nacionalista, nos anos 1930, na Alemanha. É certo que Gadamer buscou resguardar-­se em relação a isso, adotando uma postura mais prudencial, tanto no sentido de não colaborar com o regime quanto em não resistir como um “intelectual engajado”. Ele, antes, preferiu recolher­se, dedicando­-se, exclusivamente, ao magistério, em que pese, à época, os ossos do ofício. Vale, contudo, observar, mostra Mertens (p. 32), que, “em Leipzig, Gadamer desenvolveu até seminários sobre Husserl (desobedecendo à proibição oficial de estudar autores de origem semita), sem que fosse incomodado pelo patrulhamento ideológico do partido”. De todo modo, o que chama atenção é o fato de que, malgrado tais tempos bicudos, Gadamer se envolve em inúmeros projetos acadêmicos: em 1953, funda, com Helmuth Kuhn, a Revista Philosophische Rundschau. Ele também presidirá a Sociedade Alemã de Filosofia além de tornar­se, membro da Academia de Ciências de Heidelberg. Nos anos cinquenta e sessenta, o filósofo edita sua magnum opus:Verdade e Método (I e II)na qual advoga a tese de que “a hermenêutica nasce da práxisdialógica” (Gadamer apud Mertens, p. 39).

A fim de melhor situar esse princípio nuclear faz-­se necessário que passemos às lições seguintes. Na Segunda Lição,“Hermenêutica como a ‘coisa de Gadamer’”, Mertens restitui o estatuto proeminentemente hermenêutico da obra gadameriana. Para tanto, lembra que existem vários modelos hermenêuticos como o da escola de Schleiermacher, passando por Dilthey até chegar Heidegger. É notável que o movimento hermenêutico iniciado no século XIX é regido sob o signo da filologia como um instrumento de exegese que atraíra, inclusive, historiadores, juristas e teólogos. Dilthey, p.ex., encontrara nesse expediente metódico, uma ocasião oportuna para pensar o projeto de fundamentação das ciências do homem então emergentes. Mais que um simples filólogo, ele se via como um “teórico do método” como bem repara Gadamer; método esse fundado na distinção entre “explicar” (específico das ciências naturais) e “compreender” (próprio das ciências do espírito”). Não obstante, essa “arte da compreensão” permanece restrita, ainda, a um tradicional ofício filológico. Por isso, o salto vigorosamente filosófico tem ­se início com a fenomenologia. A figura de Heidegger, sob esse prisma, se torna, de fato, programática, à medida que, como diz Mertens (p. 48): “O autor de Ser e Tempo está circunspectamente comprometido com a questão do sentido do ser; não seria, portanto, em outro âmbito que a hermenêutica compareceria […]Com a hermenêutica da facticidade, nosso fenomenólogo se apropria da ideia de compreensão, enraizando-­a na vida fática enquanto contraposição a uma atividade abstrata e teórica”. Apesar de a compreensão exprimir, em termos heideggerianos, um existencial revestindo­-se de um caráter ontológico radicado na pergunta pelo sentido, o que temos é uma “filosofia hermenêutica, uma hermenêutica fenomenológica, mas que ainda não preenche a qualificação de uma hermenêutica filosófica propriamente dita” (p. 50). Esse alcance só sedará, efetivamente, com Gadamer que “tem em vista o acontecimento da compreensão e o horizonte de possibilidade da interpretação que apenas é possível a partir de tal acontecer” (p. 53). Ora, é precisamente tal aspecto agora visado que diferencia a hermenêutica de Gadamer como uma “coisa” peculiarmente sua, conforme a expressão de Heidegger. Com isso, é possível, enfim, compreender o elemento dialógico da hermenêutica. Com a palavra, Mertens (p. 53­54): “Uma hermenêutica filosófica, assim é distinta das outras, pois, tendo descoberto a linguagem como o terreno da experiência ontológica fundamental, se lastreia nessa experiência linguística ­viva desde a qual o ser­ no ­mundo compreende a si mesmo”. Como observaria Heidegger, a propósito: “esse traço filosófico se tornou um bom contrapeso à filosofia analítica e à linguística” (Heidegger, apud Mertens, p. 43). A visada de Gadamer se projeta, precisamente, aí: ele reconhece no fenômeno da linguagem (e, portanto, do diálogo) uma dinâmica onde reside a dimensão ontológica mais profunda de todo compreender.

É assim que a Terceira Lição reorienta o debate. Intitulando-­se,“Método, compreensão e acontecimento”, Mertens ressalta que essa nova “hermenêutica” é bem mais que uma simples metodologia aplicável; ela,rigorosamente,seinstituicomouma“doutrina­do­compreender”,transfigurando, por meio da linguagem, sua fundação ontológica originária. É preciso ver que Gadamer não desconsidera jamais a importância do método. Tanto é que ele próprio situa sua hermenêutica como uma teoria, uma doutrina, fazendo notar que “a verdade (que sustenta o fenômeno da compreensão e aideia das ciências humanas) não é apenas questão de método” (p. 61). A ideia de método difere, substancialmente, da acepção naturalista, clássica, por definição desvelando que o “acontecer é operante em toda compreensão”. Um dos melhores exemplos disso vem à luz na Quarta Lição.

Nessa, intitulada “Jogo da arte, jogo da compreensão”, Mertens discute um ponto de pauta na nova agenda hermenêutica: o fenômeno da arte e do jogo (Spiel). Com qual intenção Gadamer recorre à arte? “Para evidenciar o caráter de acontecimento da verdade do compreender” (p. 67). É que a arte não se dobra à racionalidade científicatout courttal como Merleau-­Ponty precisara em O Olho e o Espírito. Diferentemente do cientista que “manipula”, nota o fenomenólogo francês, o artista “habita” o mundo, se lançando num “lençol desentido bruto”, num “há prévio”, sem nenhum dever de apreciação. Ele vive, habita o acontecimento! Gadamer parece não só estar cônscio disso, mas, sem qualquer pretensão de elaborar uma teoria estética, quer pensar, em sua estrutura íntima, a experiência da obra de arte como uma dimensão sui generis. É nesse sentido que o jogo passa a exercer um papel especial. O hermeneuta alemão compreende que entre arte e jogo há uma relação recíproca. Há todo um movimento de vaivém, ou se, quiser, dialético no fenômeno lúdico, desconstruindo, pois, toda relação de conhecimento do tipo clássico: sujeito/objeto. A compreensão da verdade nesse acontecimento único “só se cumpre quando o jogador se abandona completamente ao jogar” já que “todo jogar é um jogado” (p. 72). É essa dinâmica, aquém e além de todo subjetivismo ou objetivismo que torna o jogo uma forma especial de arte, imprimindo o ritmo de uma significação sempre aberta, dado o seu caráter imprevisível. Sob esse espectro, impossível não ver, em tais formulações, presenças impactantes não só de Huizinga em seu Homo Ludens, mas tambémde F. J. J. Buytendijk, em Essência e sentido do Jogo, Wittgenstein em Investigações Filosófica se Eugen Fink, em O Jogo como Símbolo do Mundo. Este último considera, portanto, que o “homem que joga não pensa e o homem que pensa não joga” (p. 73).

A Quinta Lição, “Preconceitos, autoridade, tradição”, situa outra temática cara ao pensador alemão. Ele pretende melhor delinear o movimento hermenêutico resguardando a autoridade da tradição e o recurso prévio dos pressupostos ou preconceitos que a funda. Eliminando qualquer depreciação de cunho moral, tais preconceitos são inerentes a um contexto específico no qual toda compreensão se anuncia. O que significa que dependemos sempre de uma “pré­compreensão” quando se trata de se situar “num terreno aberto pelo projeto do ser que somos ao ‘aí’ do mundo” (p. 78). É nesse “espaço de jogo” que se transfigura o horizonte hermenêutico propriamente dito. Observa Gadamer (ApudMertens, p. 85): “sempre intervém, em nossa compreensão, pressupostos que não podem ser eliminados […]. A compreensão é algo mais que a aplicação artificial de uma capacidade. É sempre também o atingimento de uma autocompreensão mais ampla e profunda. Isso, porém, significa que a hermenêutica é filosófica e, enquanto filosofia, filosofia prática”. Ademais, Gadamer se reporta à noção de autoridade removendo nela toda conotação, à primeira vista, moralmente impositiva ou conservadora. Trata­-se de reconhecera autoridade de saberes e de tradições (como a retórica, filosofia prática, hermenêuticas jurídica e teológica) que se engendram a partir desses preconceitos na contramão, p. ex., do racionalismo esclarecido do séc. XVIII.

Uma vez postos esses elementos estruturantes, Mertens revisita outra categoria- chave para pensar, em termos gadamerianos, o projeto hermenêutico. É o que aborda aSexta Lição,“A história das repercussões e sua consciência”. Trata­-se da assim denominada Wirkungsgeschichte, isto é, a história das repercussões. Do uso desse conceito, Gadamer entende que, em regra, “as compreensões, ao serem transmitidas, contam com preconceitos fáticos que (por serem também históricos) exercem seus influxos sobre novas compreensões e interpretações” (p. 94). Afinal, que “história” seria essa? “Uma história das posições e dos caminhos que as compreensões assumem no horizonte da tradição e da maneira como elas, uma vez interpretadas, logram sua posteridade” (p. 94). Não há, fundamentalmente, como ignorar a história e seu trabalho tácito no seio da tradição: a história é, a um só tempo, um horizonte aberto. Por isso, a verdadeira consciência histórica como exigência hermenêutica, inscreve Gadamer (Apud Mertens, p. 98), “é algo distinto da investigação da história”. O que mostra que inexiste imparcialidade nesse processo uma vez que “toda e qualquer compreensão sempre acontece embebida na história” (p. 100). O fato último é o de que nossa consciência histórica é, desde sempre, circunstanciada, lançada na finitude como acontecimento.

A Sétima Lição, “Circularidade, fusionalidade e dialogicidade” reúne três outros aspectos fundantes desse projeto filosófico. O primeiro é a noção de “círculo hermenêutico” que, como esboça Gadamer, consiste num “movimento de compreensão que se dá no conjunto para a parte e, novamente, para o conjunto” (Gadamer Apud Mertens, p. 106). O que se revela aí é um processo global de sentido; processo esse que leva em conta a experiência existencial do tempo. Tal como em Heidegger, o tempo é o que funda todo acontecimento descortinando uma “fusão de horizontes”. Este é o segundo aspecto. Como explicita Mertens (p. 111): “horizonte é a estrutura de base que, consolidada na chave de posições, visadas e conceptualidades prévias, se alarga e se refina significativamente em cada novo projeto compreensivo”. Em razão disso, “todo compreender se dá como fusão de horizontes” (p. 112). O terceiro aspecto é o diálogo. Gadamer reconhece na dialética do perguntar e do responder o caráter essencial da linguagem compreendida via a dinâmica peculiar do jogo como arte. É essa espécie de um “logos compartilhado” que se anuncia como componente ontológico e, portanto, originário do experimento hermenêutico.

A Oitava Lição, “Hermenêutica e ontologia da linguagem” se destina a aprofundar o sentido e alcance desse logos. Para tanto, Mertens reconstitui, a partir de Verdade e Método, duas teses capilares: a primeira, de que “não há compreensão fora da linguagem” (p. 126). Para além, pois, de todo nominalismo, essencialismo ou positivismo lógico, a obra de Gadamer acentua o caráter originário da linguagem como inseparável de uma experiência hermenêutica. A alusão à metáfora de que vivemos na linguagem assim como o peixe na água em muito lembra a experiência sentida pelo escritor, seja ele romancista ou poeta. É por meio desse gesto que Clarice Lispector pressentira o caráter contingencial ou indigente da linguagem visto por certa tradição canônica como algo desprovido de qualquer brio ontológico. A segunda tese, complementar à anterior, é a de que “o próprio objeto da compreensão é linguístico” (p. 129). Compreensão e linguagem se mesclam numa só experiência. Ao postular esse princípio parece claro que Gadamer se afasta, consideravelmente, de uma crítica que se tornou lugar comum, qual seja, a de advogar um idealismo linguístico, já que “não é o ser da totalidade que interessa a Gadamer, mas o ser do que pode ser compreendido na linguagem”(p. 132).

Em “Filosofia prática e hermenêutica”, o leitor é conduzido à Nona Lição. Neste instrutivo estudo, percebemos o interesse gadameriano com a filosofia prática tendo, em Aristóteles, uma fonte digna de interpretação. A prioridade da práxis, tão bem acentuada por Gadamer, sugere um passo a mais que o estágio de uma consciência ético ­política, situando-­se, na verdade, num nível decididamente hermenêutico. Como corrobora o pensador alemão, trata-­se “de uma atitude teórica frente a práxis da interpretação, da interpretação de textos; porém, também das experiências interpretadas neles e nas orientações domundo” (Gadamer, Apud Mertens, p. 147).

Na Décima Lição, “Em campo contra Gadamer”, Mertens contextualiza algumas críticas de que fora alvo nosso pensador alemão. Uma das mais conhecidas é a provinda de Habermas que teria diagnosticado em Verdade e Método certo “conservadorismo” ou, ainda, uma boa dose de “relativismo”. O ponto nevrálgico da hermenêutica gadameriana residiria no reconhecimento da tradição e no argumento da autoridade como sinais incontestes de uma forma de filosofia que permanece arraigada ao racionalismo oitocentista. Trata-­se de um dogmatismo canônico em que Gadamer não teria inteiramente se libertado. Ao mesmo tempo, em sua réplica, Gadamer jamai sabre mão da atividade crítica, tão fortemente cobrada por Habermas. A hermenêutica não faz apologia à tradição em favor de preconceitos ilegítimos. Ela apenas parte do pressuposto de que não há subjetivismo e que toda compreensão não existe sem preconceitos, desde que estes sejam, é claro, legitimáveis.

Enfim, o livro encerra com um oportuno balanço não só sobre as lições precedentes, mas acerca de um espectro mais amplo em torno desse insigne mestre que é Gadamer, cuja obra impacta, indelevelmente, o cenário contemporâneo das ideias. Aqui, o leitor menos familiarizado terá, especialmente, em primeira mão, um retrato vivo e pujante de um dos projetos filosóficos mais densos e fecundos que tem justo na figura de Hermes uma fonte da mais alta inspiração helênica.

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva – Professor dos Cursos de Graduação e de Pós­Graduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE – Campus Toledo com Estágio Pós­Doutoral pela Université Paris 1 – Panthéon­Sorbonne (2011/2012). Escreveu “A carnalidade da reflexão: ipseidade e alteridade em Merleau­Ponty” (São Leopoldo, RS, Nova Harmonia, 2009) e “A natureza primordial: Merleau­Ponty e o ‘logos do mundo estético’” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2010). Organizou “Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel, 40 anos depois” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2013), “Merleau­Ponty em Florianópolis” (Porto Alegre, FI, 2015), “Kurt Goldstein: psiquiatria e fenomenologia” (Cascavel, PR, Edunioeste, 2015) e Festschrift aos 20 anos do Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da UNIOESTE (Cascavel, PR, Edunioeste, 2016). E-mail: cafsilva@uol.com.br

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[DR]

A filosofia e o cuidado da vida – BUZZI (C)

BUZZI, Arcângelo R. A filosofia e o cuidado da vida. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 1, p. 181-186, jan/abr, 2017.

A linguagem utilizada na obra não pretende esgotar o significado do que seja esse tal cuidado da vida, já anunciado no título, mas antes fazer notar a relevância de tal tema para a elaboração da própria tarefa fundamental do pensamento – pensar a vida –, também expressa no título sob o nome de filosofia. Nesse sentido, Buzzi não conceitua propriamente nem o que seja cuidado e nem o que seja filosofia, mas convida o leitor a traçar um caminho no qual ambos os termos estão conjugados. O modo de utilizar a linguagem, então, é fundamental, pois se trata de indicar sem determinar.

Além disso, a maneira simples com que são colocadas as palavras e as citações permite uma intimidade com a obra, realizando, de fato, a proposta de viabilizar um caminho. Engana-se, porém, o leitor que acreditar que na obra há uma linguagem simplista: a simplicidade da obra está em sua essencial preocupação com o fundamental de cada questão levantada, sendo o autor, dessa forma, objetivo e preciso em suas assertivas. Além do mais, o próprio autor se utiliza de grandes expoentes do pensamento, mostrando-os como vias possíveis para pensar os vários desdobramentos do cuidado da vida. Não há equívoco em afirmar: a obra serve tanto para aqueles que já são iniciados nessa dinâmica própria do filosofar quanto para introduzir, nessa tarefa, tantos outros que dela se aproximarem. Por isso, pode-se dizer que o autor é capaz de continuar um caminho, pois escreve àqueles que já estão inseridos na própria filosofia, bem como é capaz de convidar a esse caminho, viabilizando-o pela linguagem simples, fundamental e, acima de tudo, por permitir ao próprio leitor a tarefa de pensar. Leia Mais

Mitos Papais: política e imaginação na história – RUST (RBH)

RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais: política e imaginação na história. Petrópolis: Vozes, 2015. 248p. Resenha de: BOVO, Claudia Regina. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017. 

Eis uma obra provocativa. Essa é a primeira constatação sobre Mitos Papais, trabalho que articula a análise histórico-historiográfica do poder pontifício com suas interpretações “mitológicas”, intepretações estas que ainda sustentam calorosos debates sobre qual deve ser o papel político do papado. Ah, a política! Sim, mais uma vez a política. Essa arte da negociação, área tão negativamente avaliada nos nossos dias, é o campo sobre o qual Leandro Duarte Rust se debruça para trazer a um público não acadêmico a construção histórica dos mitos em torno da atuação papal. A abertura do texto já marca o tom desafiador da proposta: “Mito ou realidade?”. Ao superar a dicotomia rasa que definiu vulgarmente o mito e as mitologias como a falsificação do real, Rust marca a abertura do seu texto reconhecendo outro modo de defini-los. Inspirado por Joseph Campbell, para quem a mitologia soava como poesia, Rust define os mitos como meio de se conhecer as relações políticas, forma de interpretar a política e também como maneira de expressá-la.

Essas experiências de significado são, nada mais nada menos, do que pistas para descortinar as potencialidades humanas, rastros da experiência humana no tempo, algo que se aplica ao que somos e explica como somos. Não há lugar para invenção, não há lugar para a desrazão, os mitos nos envolvem porque são um mecanismo de interpretação da experiência humana. Portanto, a ideia do livro não é simplesmente desconstruí-los, mas aprender com eles. Tirar deles o conhecimento que nos qualifica enquanto seres políticos. É importante reiterar que o objeto de análise aqui não está restrito ao papado, mas é extensivo à política e às suas diversas formas de negociação, conflito e acordo. Os Mitos Papais não poderiam ser melhor substância para exemplificar o exercício de análise proposto.

Com narrativa envolvente e cadenciada, o livro apresenta cinco mitos que ajudaram a estabelecer e a manter o papado romano no centro dos debates políticos da Contemporaneidade. Chamamos de contemporânea a leitura sobre a experiência política pontifícia do final do século XIX até os dias atuais. Desde a busca pela ossada de seu fundador – Pedro – ao silêncio pontifical durante o genocídio judaico promovido pelos nazistas, os mitos escolhidos por Leandro Rust aguçam a curiosidade de qualquer leitor ávido por história e, principalmente, ensinam como a historização das narrativas pode ajudar a instrumentalizar as consciências históricas contemporâneas. Um caminho investigativo que ajuda a nos aventurarmos pela complexidade das experiências históricas papais.

Interessado em aprender com os mitos, com a leitura histórica que eles fomentam, Leandro Rust trata no primeiro capítulo da empresa incentivada pelo papa Pio XII para encontrar, sob o solo da basílica de São João de Latrão, os restos mortais do apóstolo Pedro. Rust se pergunta “por que, a certa altura da vida contemporânea, a tradição religiosa deixou de saciar a certeza a respeito da realidade histórica do fundador da Igreja Romana?” (p.67). Em outras palavras, por que justamente durante os conturbados anos da década de 1940 houve o impulso a essa saga arqueológica para provar a existência das relíquias e da tumba de Pedro? A resposta segue esta lógica: só o discurso de fé não era mais suficiente. Era preciso uma prova material, com atestado científico, para legitimar a saga fundadora de Pedro. A narrativa do autor nos leva a atestar o papel dos mitos na política e a condição indelével do apelo à renovação cristã – Renovatio Christiana.

A saga lançada por Pio XII em busca da tumba de Pedro atuou como remédio para as políticas de secularização que havia algumas décadas esvaziavam as fileiras dos bancos católicos, resultando na atualização do discurso católico às demandas racionais da modernidade. Por meio da verificação científica de sua materialidade santa – o encontro com a tumba de Pedro – o catolicismo demonstrava sua base inequívoca. Conforme apresenta o autor, “o reencontro com o primeiro papa seria a prova de que o Vaticano tinha saída para superar os abismos que os homens cavam entre si e uni-los em uma harmonia palpável. Poucas instituições poderiam oferecer uma resposta tão contundente para populações mergulhadas em traumas e incertezas” (p.72).

Não é por acaso que o mesmo Pio XII que abre com destaque os Mitos Papais seja o mesmo personagem discutido no último capítulo do livro. Visto por alguns como o estandarte da modernização da Igreja Apostólica Romana e por outros como o “papa de Hitler”, a disputa pela memória coletiva de sua atuação pontifícia ainda está aberta. Santo dos católicos e algoz dos semitas, essa emblemática dicotomia sobrevive como mitos políticos de uma mesma experiência humana. Herói e vilão são interpretações conflitantes que figuram lado a lado quando se fala sobre a atuação política do papa Pio XII. Daí nossa insistência em definir a proposta deste livro como provocativa e desafiadora. Como demostra Rust, a luta pela memória a ser preservada sobre Pio XII tem início logo depois de sua morte. De peça de teatro que o ridicularizava ao boom literário dos anos 1990 que ora o criticou ora o valorizou, Pio XII representa o fardo dos Mitos Políticos. Ao mesmo tempo que se opõem, ambas versões se complementam. Dito de outra forma, ambas versões são expressões do modo de se pensar e se fazer política contemporaneamente, elas estão embasadas na premissa da divisão dicotômica das disputas políticas, da divisão partidária da vida social. Aventurar-se por esses mitos que envolvem a figura de Pio XII é ter a mais clara exposição das nossas relações políticas e de como não estamos alheios a elas.

Em tempos de impeachment, de estandartes e histerias coletivas que atribuem à política as mazelas do mundo, o mito aparece como meio de descortinar nossas práticas políticas, de compreendê-las. Enquanto meio de interpretação legítimo para conhecer as relações políticas o mito tira do senso comum, ou melhor, devolve a ele a necessidade de avaliação constante das expressões narrativas com as quais compactuamos, dessas razões práticas às quais, enquanto grupos sociais, recorremos “para justificar e legitimar nossos interesses”. Sim, nós fazemos isso; conscientemente ou não, fazemos.

Portanto, como bem advoga Rust, o mito político não é uma inverdade, mas uma narrativa que idealiza o passado para legitimar ou desacreditar um regime de poder. Uma chave de leitura do mundo que nos orienta a tomar posicionamentos – políticos, por sinal – nas disputas pelo poder. Cientes do que a leitura deste livro pode provocar, é preciso reconhecer: não há melhor maneira de escancarar a utilidade do conhecimento histórico e político. Ainda mais em tempos nos quais se dão amplas discussões da política pública educacional, cujo cerne é a ideia já batida de renovação: a Base Nacional Curricular Comum, a Base Comum para Formação Docente, a PEC da Escola sem Partido, a Medida Provisória do Ensino Médio. Nesse sentido, o livro de Leandro Duarte Rust nos desafia a olhar para dentro de nós mesmos, para aquilo que usamos como definição das coisas, e nos força a reavaliar, a reconhecer a historicidade de nossas razões práticas. A História, a Política, o Papado e a Idade Média não soam como perfumaria curricular. Pelo contrário, desses imaginários diversos, dessas mitologias pseudodespretensiosas, retiramos muitas interpretações que ainda respondem aos nossos interesses mais vorazes. Contextualizá-las ainda se faz necessário. Falar sobre elas é mais urgente do que nunca!

Claudia Regina Bovo – Departamento de História, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Uberaba, MG, Brasil. E-mail: claudia@historia.uftm.edu.br.

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História da República Romana | Henrique Modanez Sant’Anna

Ao analisar a obra The Cambridge Ancient History: The Last Age of the Roman Republic, 146–43 B.C. (BOWMAN; CHAMPLIN; LINTOTT, 1992), uma das obras mais influentes sobre o período, e que lida apenas com os acontecimentos da segunda metade do período da República Romana (509 a.C. – 31 ou 27 a.C.), fica claro a qualquer leitor bem informado que ele estará diante de uma cadeia quase interminável de acontecimentos importantes que não só serão importantes para a compreensão do mundo romano, mas também para todas as reinterpretações históricas decorrentes destes eventos. Afinal, este período abrange acontecimentos diversos e muito complexos, como as guerras entre Roma e Cartago pela hegemonia mediterrânica, os processos de lutas sociais pela aquisição da cidadania pelas populações da Itália, a questão agrária defendida pelos irmãos Graco, a revolta de Espártaco, a expansão do Império romano e a consequente corrupção nos tribunais para controlar o envio de magistrados que iriam extorquir as províncias, Pompeu e os piratas no Oriente, César e a Gália no Ocidente, os triunviratos e, por fim, as guerras civis entre César e Pompeu, mas também aquelas que tiveram lugar com Otávio e Antônio, entre eles, mas também contra Brutus e Cássio, além da guerra contra o filho de Pompeu. Isso somente para enumerar alguns dos acontecimentos que possivelmente serão lembrados por qualquer curioso sobre o período que venha a ter contato com esse imenso compêndio. Leia Mais

Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática – SCHWARTZ (C)

SCHWARTZ, Suzana. Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 660-665, set/dez, 2016.

O ponto de partida para a elaboração da obra de Suzana Schwartz incluiu uma pesquisa realizada no início de seu doutorado, a qual apurou este resultado: 75% dos 200 respondentes a um questionário, todos professores-alfabetizadores, declararam ser a “falta de motivação para aprender” a razão para a não aprendizagem de seus alunos. A autora afirma que há estudos que revelam decréscimo de motivação para a aprendizagem entre o início da Educação Básica e o quinto ou sexto ano. Na obra, a autora ocupa-se de questões que a inquietam intelectualmente, como: O que leva os alunos ao interesse e esforço para aprender, e em que medida isso depende deles ou do ambiente que os cerca, incluindo a sala de aula e o professor, em especial? Quais são as consequências da ausência de motivação, ou, ainda, da desmotivação, para a aprendizagem? De que maneira a motivação se relaciona com o trabalho docente?

A definição geral de motivação mais destacada pela autora considera que, inicialmente, há motivos ou metas que as pessoas definem (como, por exemplo, a busca de qualificação profissional), enquanto motivação é o processo através do qual os motivos surgem, se desenvolvem e mobilizam comportamentos. É aquilo que produz energia inerente às ações e aos meios de executá-las, e é afetado por fatores cognitivos e afetivos, tendo-se em vista experiências anteriores dos sujeitos, crenças e valores e aspectos contextuais (alguns desses sob controle do professor). Leia Mais

Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente | Jacques Le Goff

Jacques Le Goff, um dos historiadores mais influentes do século XX, trouxe com seus mais de 40 livros, novos olhares sobre a Idade Média, não só no meio acadêmico mas entre aqueles interessados em outras perspectivas sobre o Medievo, além de tratar da religiosidade e das tendências econômicas, usou a Antropologia Histórica no Ocidente Medieval, além da Sociologia e Psicanálise, buscou a cultura e a mentalidade do homem do Medievo, visitando o imaginário não somente das grandes personalidades, mas também daqueles que faziam parte do cotidiano desse período.

Vemos, em sua trajetória nessa seara de possibilidades, a análise do Medievo em várias frentes, desde a econômica em sua primeira obra de 1956, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, e A Bolsa e a Vida, de 1997, à religiosidade em O Nascimento do Purgatório, de 1981 e São Francisco de Assis, de 2001, passando pelo imaginário na obra O Imaginário Medieval, de 1985, chegando a aspectos como trabalho, cultura e o tempo. Leia Mais

O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval – SCHMITT (FC)

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: BORGONGINO, Bruno Uchoa. Uma abordagem antropolítica da Idade Média. Faces da História, Assis, v.2, n.2, p.198-201, jul./dez., 2015.

Jean-Claude Schmitt, proeminente discípulo de Jacques Le Goff, dedica-se aos estudos medievais desde a década de 1970. Ao decorrer de sua carreira, acumulou distinções honoríficas, como chevallier da Ordre des Palmes Academiques (2002) e da Légion honneur (2005) e doutor honoris causa da Universidade de Münster (2003), além de exercer o cargo de diretor da École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) desde 1983.

Em suas pesquisas, o historiador francês emprega métodos e referências teóricas da antropologia para compreender a sociedade e a cultura do Ocidente medieval, empreendendo, em livros e artigos, investigações sobre vários aspectos socioculturais como: a juventude; o suicídio; os gestos; o aniversário; entre outros. Dentre livros que escreveu, foram traduzidos para o português: O corpo das imagens, Os vivos e os mortos na sociedade medieval, História das superstições, História dos jovens,2 Dicionário temático do Ocidente medieval3 e, mais recentemente, O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval, que ora resenho.

Le corps, le rites, les rêves, le temps: essais anthropologie médiévale foi originalmente publicado em 2001 pela editora Gallimard, contudo, foi oferecido ao mercado brasileiro somente em 2014.4 Este atraso de treze anos pela versão nacional não faz jus à importância deste material, pois considera-se que nele constam dezessete artigos de Schmitt, selecionados pelo próprio autor, os quais representam a multiplicidade de suas contribuições aos estudos medievais. Tais artigos permaneceram sem uma versão traduzida oficialmente para a língua portuguesa, embora não fossem inéditos na época da primeira edição em francês e já constassem como referência clássica em determinados campos investigativos.

Cabe salientar que os textos compreendidos no livro, publicados ao decorrer de trinta anos da carreira do medievalista, não foram organizados de maneira cronológica, mas agrupados em quatro unidades – a serem ainda apresentadas mais adiante –, constituindo, cada uma delas, um eixo temático. Se, por um lado, a opção por agrupar os artigos em blocos de assuntos afins facilita a consulta pelo leitor a conjunto tão heterogêneo; por outro, a alternância de textos do início da sua trajetória acadêmica com reflexões mais recentes5 dificulta a percepção do processo de amadurecimento intelectual de Schmitt.

Pode-se constatar, ainda, que o material compilado foi originalmente vinculado em meios diversos, cada qual com suas orientações editoriais próprias e seu públicoalvo pretendido: alguns dos textos eram artigos de periódicos acadêmicos, outros, capítulos em livros. Por isso, há certa discrepância quanto ao tamanho dos escritos, assim como no nível de aprofundamento na abordagem.

Os artigos foram precedidos por um prefácio redigido pelo próprio Schmitt, no qual o autor relaciona sua formação intelectual aos debates acadêmicos mais populares durante o início de sua carreira; assim como aos cursos de renomados pesquisadores – como Georges Duby e Michel Mollat –, aos quais pôde assistir; e às leituras por ele realizadas. Além do diálogo com diversos campos da Antropologia, Schmitt destaca a relevância do comparatismo proposto por Marc Bloch e, depois, por Jean-Pierre Vernant, no qual o exercício de confrontação entre sociedades díspares ajuda a revelar as especificidades de cada uma. Logo, o livro é iniciado por um texto em que o autor contextualiza sua inserção como historiador e esclarece suas principais referências.

A exposição das influências acadêmicas feita pelo próprio Schmitt explicita a formação e atuação do autor em consonância com as propostas da Nova História. Peter Burke demonstrou como a terceira geração da Escola dos Annales, que surgiu após 1968, privilegiou a História das Mentalidades, a análise de fenômenos culturais e a aproximação com a Antropologia (BURKE, 1997, p. 79-107). Essas novas orientações para a pesquisa histórica propiciaram a emergência de novos problemas, novos objetos e novas abordagens.

Ao lado de pesquisadores consagrados como Jacques Le Goff e Georges Duby, Jean-Claude Schmitt contribuiu para a incorporação da Nova História aos estudos medievais ao se atentar para as dimensões simbólicas das representações e das práticas sociais na Idade Média e investigar temas outrora não contemplados pela historiografia, tais como o “corpo” ou o “futuro”.

O primeiro bloco temático, intitulado Sobre crenças e ritos, reúne reflexões sobre aspectos da religião medieval em cinco capítulos. Os artigos É possível uma história religiosa da Idade Média?, A noção de sagrado e sua aplicação à história do cristianismo medieval e Problemas do mito no Ocidente medieval pretendem problematizar os conceitos de “religião”, “sagrado” e “mito” respectivamente, a fim de apresentar as precauções metodológicas na aplicação de tais categorias na pesquisa em História Medieval. Em A crença na Idade Média e Sobre o bom uso do Credo, Jean- Claude Schmitt analisa os sistemas de classificação e os modos de produção e difusão das crenças legítimas, destacando a posição da Igreja nesses processos.

A segunda parte, Tradições folclóricas e cultura erudita, é composta por quatro textos. O capítulo inicial desse bloco, As tradições folclóricas na cultura medieval, apresenta as principais abordagens nos estudos sobre o “folclore” para, em seguida, delimitar os problemas e os princípios de análise para investigações a respeito do tema na sociedade feudal. Os três artigos subsequentes consideram tradições folclóricas medievais diversas.

O sujeito e seus sonhos é o título do terceiro bloco, que abarca três escritos. No primeiro, A “descoberta do indivíduo”: uma ficção historiográfica?, Schmitt parte de uma revisão historiográfica da tese do “nascimento do indivíduo” no século XII para compreender o conceito medieval de “pessoa”. Os dois capítulos seguintes, Os sonhos de Guibert de Nogent e O sujeito do sonho, têm como objeto as atitudes e teorias medievais a respeito do sonho.

A quarta e última parte do livro, O corpo e o tempo, reúne cinco capítulos. Em O corpo doente, corpo possuído, aborda as concepções medievais a respeito do corpo doente. O corpo na Cristandade também debate questões concernentes à corporeidade, considerando três aspectos: o corpo do homem individual, o corpo divino e o corpo social. No artigo Tempo, folclore e política no século XII, Schmitt relaciona as representações do tempo e ideologia a partir da obra do clérigo Walter Map. No capítulo seguinte, Da espera à errância: gênese medieval da Lenda do Judeu Errante, o medievalista francês aborda o tema literário moderno de um judeu que perambula o mundo desde que testemunhou a crucificação, argumentando que sua origem remonta a lendas do século XII. O texto que encerra o volume, A apropriação do futuro, estuda a maneira como os medievais percebiam o seu futuro.

A partir da leitura dos artigos de O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo, constatase o compromisso de Jean-Claude Schmitt com o rigor teórico-metodológico ao estudar a cultura medieval, independentemente do objeto que proponha.

Tanto nas abordagens de recorte espaço-temporal mais abrangentes, quanto nas análises de corpus documentais mais restritos, o autor tenta delimitar com a maior precisão possível o campo conceitual. Dessa forma, demonstra a relatividade das categorias que compõem nossa própria percepção do mundo, apresentando como na Idade Média elementos como o corpo, o sonho ou mesmo o futuro eram concebidos de outra maneira.

Esse esforço é empreendido recorrendo principalmente à Antropologia, tal como anunciado no subtítulo e no prefácio. Sendo o livro ora resenhado uma compilação de parcela considerável da produção de Jean-Claude Schmitt, sua publicação em português consiste numa oportunidade ímpar para que os medievalistas brasileiros possam aprofundar seu contato com a obra do autor.

Notas

2 Escrito em parceria com Giovanni Levi.

3 Em dois volumes. Organizado em parceria com Jacques Le Goff.

4 Apesar da editora informar em seu site oficial que o livro foi lançado em 2015, na ficha catalográfica indica 2014 como ano de publicação.

5 O artigo mais antigo data de 1976 e o mais novo, 2000. No total, dois textos foram escritos na década de 1970, oito na década de 1980, cinco na de 1990 e dois em 2000.

Referências BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia.

São Paulo: UNESP, 1997.

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval. Petrópolis: Vozes, 2014.

Bruno Uchoa Borgongino – Doutorando – Programa de Pós-Graduação em História Comparada – Instituto de Historia –  Universidade Federal do Rio de Janeiro – Largo de São Francisco de Paula, 1, CEP: 20051-070, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. Professor e pesquisador – Universidade Estácio de Sá, campus Cabo Frio – Rod. Gen. Alfredo Bruno Gomes Martins, s/n, lote 19, CEP: 28909-800, Cabo Frio, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: uchoa88@gmail.com.

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Teoria da História (v.1) Princípios e conceitos | José D’Assunção Barros

Pode um historiador ser considerado culto e competente sem nenhuma preparação teórico-metodológica? Pode um professor, mesmo dos Ensinos Fundamental e Médio, ensinar sem nenhuma bagagem teórico-metodológico? A epistemologia deve ficar restrita à alguns pequenos círculos ou deve envolver todos os membros da comunidade de historiadores?1 São sobre tais questionamentos que o livro “Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais”, de José D’Assunção Barros, se propõe a discutir. Na obra, o autor apresenta explicações fundamentais para a compreensão da História como campo de conhecimento, com suas próprias peculiaridades teóricas e metodológicas. Leia Mais

A Expansão da História – BARROS (TH)

BARROS, José D’Assunção. A Expansão da História. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2013. Resenha de: FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. Será possível fazer de outros modos? Configurações e práticas da disciplina história segundo algumas de suas teorias. Tempos Históricos, v.18, p.404 – 409, 1º Semestre de 2014.

De início, ao leitor poderá parecer que o livro A Expansão da História é mais um livro de textos panorâmicos sobre Teoria da História em aspectos gerais que renovaram a disciplina no século XX, mas seus seis textos fazem mais, verticalizando discussões. Com um pano de fundo diagnosticado como de interdisciplinaridade e risco de hiperespecialização da disciplina História, discutem-se conceitos históricos e fragmentação disciplinar num contexto de multidiversidade temática e de abordagens. O autor propõe analogias e metáforas pouco convencionais para se pensar a História e os historiadores. Conceitos como “dialogismo” e “polifonia” articulados à Teoria dos discursos e à Teoria musical são base para análises originais. Recorrentes nos textos, a polifonia e a música explicam-se: o autor é formado em História, mas também em Música, do que se aproveita bem, fazendo interdisciplinaridade. O livro compila seis conferências feitas entre 2009 e 2012 e, como na está na Apresentação da obra, o “tema comum a todas é a História – mais especificamente nos seus aspectos teórico, metodológico, historiográfico”. (p.7)  O capítulo 1, A Expansão da História, é panorâmico mesmo, da “rica diversidade e sobre a crescente complexidade da historiografia contemporânea” (p.15). Se o século XIX foi o “século da História” e constituiu acervos e arquivos que trouxeram a disciplina História para o primeiro plano, foi no século XX que houve “novas revoluções (…) agora direcionadas para uma reconfiguração do próprio campo de saber histórico, de seus métodos, aportes teóricos, temas de estudo” (p.14). O raciocínio sobre a expansão presume a “reconfiguração da História” presidida por “três grandes forças: (…) a tendência à especialização, a chamada ‘crise do paradigma único’ e as aberturas oferecidas pela interdisciplinaridade” (p.18). O autor problematiza a multidiversidade das “inúmeras subdivisões historiográficas” (p.26) surgidas do cruzamento dos fatores “hiperespecializacao”, “multiplicação de paradigmas” e “interdisciplinaridade” que atingiram a História no decorrer do século XX. E desenvolve argumento em torno da ausência de critérios claros e coerentes que justifiquem aquela multidiversidade.

As modalidades infinitas de escrita e de campos de investigação histórica se concretizaram em “grandes coletâneas de ensaios historiográficos que buscavam apresentar uma reflexão dos diversos historiadores sobre seu próprio ofício” (p.26) e sobre sua própria modalidade, sem, no entanto, demonstrar quais critérios agrupavam modalidades tão diversas e tão sem aparente ligação, como mulheres, economia, vida urbana, vida privada, mentalidades, trabalho, família, medo, infância etc. Barros considera que tais coletâneas pareciam agrupar modalidades historiográficas de modo muito mais aleatório e assistemático, aparentemente sem nexos científicos. Sobre os critérios de coerência para os agrupamentos aparentemente sem nexos de modalidades historiográficas tão distintas em coletâneas editoriais, o autor questiona: “dito de outra forma, que sistematização de critérios pode ser pensada para presidir a organização de livros (…) de modo que os capítulos do livro não pareçam (…) estarem unidos por uma ordem aleatória, não científica?” (p.28). Contra essa ausência de critérios para se pensar essa realidade de aleatória multidiversidade historiográfica, Barros pondera se não seria possível uma “Teoria dos campos históricos” ou algo que pudesse ser uma “tábua explicativa” para os sistemas que produzem uma “ordem lógica para a compreensão” (p.29) dos critérios de agrupamento de tão variadas modalidades historiográficas.

Deriva de sua proposição uma indagação ousada sobre “possibilidades novas de escrita da história” nas próximas décadas. O autor, porém, entende essas “possibilidades novas de escrita” sob duas perpectivas: uma, a da proposição de outros campos de pesquisa e novos objetos de estudo que venham a multidiversificar ainda mais a disciplina, o que o autor questiona; depois, ele entende a escrita como “apresentação” da história pelo historiador sob a forma de um texto, mas pondera se não haveria “a possibilidade de teses de História apresentadas em formatos de vídeo ou DVD, ao invés do tradicional formato livro?” (p.37). Não há considerações e juízos de Barros sobre as possibilidades de os textos serem apresentados em forma que não o do formato livro, o que frustra um pouco a expectativa do leitor em ouvir considerações propriamente teóricas. Tais ponderações enriqueceriam, do ponto de vista de sua apreciação teórica, o tratamento de um tema ainda em elaboração pela comunidade de praticantes da disciplina: faz-se necessário aprofundar a análise dos fatores que, na história, fizeram da apresentação do conhecimento histórico escrito para o livro um provável determinante da História conhecimento científico.

Essas possibilidades de escrita mencionadas pelo autor reaparecem no capítulo 2, A Escrita da História a partir de seis aforismos, em análise que aproxima a História das artes visual e literária: “a história da Historiografia (…) é feita das transformações que têm se dado tanto na instância científica da História como na sua instância artística” (p.43). O autor informa o cerne do texto: “Como se dá a tensão entre ciência e arte no interior da História, aqui compreendida como forma específica de conhecimento, e como o ensino voltado para a formação do historiador administra esta tensão. (…)” (p.43). São seis os aforismos – “tudo é História”, “toda história é contemporânea”, “toda história é local”, “a História é arte”, “a História é polifônica” e “a História é multimidiática”. Com eles, Barros discorre sobre o que teria norteado o encaminhamento da concepção da disciplina no século XX e há considerações sobre a formação oferecida por cursos de História e sobre o que entende ser o discurso do historiador: “(…) a um só tempo, cientificamente interdisciplinar, artisticamente literário e experimentalmente multivocal” (p.51). São feitas afirmações surpreendentes acerca de currículos que formam historiadores, advogando que o historiador não poderia deixar de ter “(…) disciplinas que o habilitem a lidar mais artisticamente com a Escrita da História”(p.56). Ou então: “(…) seriam necessários os já mencionados enriquecimentos no currículo das graduações de História, e desta forma o historiador poderia pensar em adquirir conhecimentos mais sólidos de fotografia, programação visual, cinema, ou mesmo música para o caso mais específico da incorporação da sonoridade” (p.75). Nesse capítulo 2, ao tratar da relação entre a História e a Arte, entre instância científica e artística da História, o autor se reporta à formulação de Michel de Certeau em 1977 sobre a representação histórica, publicada em Magazine Littéraire em mesa-redonda com Philippe Ariés, Jacques Le Goff, Le Roy Ladurie e Paul Veyne: que o historiador repensasse “a relação existente entre o trabalho profissional de investigação (também ele modificado) e a representação historiográfica”.

No capítulo 3, Fontes históricas: olhares sobre um caminho percorrido, o autor se estende sobre a constituição de fontes históricas no século XX com o corolário de olhares novos que aquelas ensejam sobre realidades passadas. O autor revê o arco de mutações pelas quais a disciplina passou na questão das fontes desde os metódicos até os contemporâneos. Entende a “expansão documental” com ênfase no conceito de “fontes intensivas”, quais sejam: as fontes dialógicas e polifônicas pressupostas na análise micro-histórica. “Uma vez que deseje (…) uma análise intensiva de suas fontes, o historiador deve estar atento a tudo, sobretudo aos pequenos detalhes (…) ele estará trabalhando ao nível da realidade cotidiana, das trajetórias individuais, das estratégias que circulam sob uma extensa rede de micropoderes (…)” (p.95). Barros é bastante simpático com a análise micro-histórica, propõe metodologia para tratar de fontes dialógicas e Carlo Ginzburg é seu interlocutor primaz no capítulo. Revelando o cotidiano, as fontes dialógicas recolhem as várias vozes de sujeitos que falam ao mesmo tempo numa troca contraditória de enunciados a serem identificados e compreendidos: indivíduos “(…) cada qual mergulhado na sua intersubjetividade e no seu circuito de ambiguidades pessoais (…) uma rede dialógica, polifônica, na qual estarão expressas diversas vozes a serem decifradas” (p.97). Com Bakhtin, os textos estão numa “rede intertextual, em um diálogo com outros textos” (p.104). Uma vez mais, a metáfora da polifonia ressurge: o historiador “ (…) lida com planos polifônicos envolvendo várias épocas. Entre as várias vozes com as quais irá lidar está a sua mesma” (p.125). Várias vozes são uma “música” que o historiador deve reconhecer sem impor sua voz às demais vozes, com as quais – diríamos – canta também, melódica e harmonicamente.

Os capítulos 4, Espaço e História, e 5, O lugar da história local, encadeiam-se. O homem e o tempo são categorias históricas irredutíveis, mas também o espaço físico, e mais ainda: os espaços geográfico, político, social, cultural, imaginário e virtual. A contribuição de Braudel é relevada. O O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Felipe II é visto como ensaio sobre a “temporalidade especializada na qual o tempo infiltra-se no solo a ponto de quase desaparecer” (p.147). A polifonia reaparece. Braudel baseia-se no ritmo da duração dos tempos e captou a “longa duração”, da qual se vale para “orquestrar polifonicamente as três durações distintas” (p.149) e simultâneas do tempo. Braudel “havia considerado que o Mediterrâneo possuía, sob certos aspectos, uma unidade que transcendia as unidades nacionais” (p.150), regiões autônomas que convergiam para um “ritmo supralocal” (p.150), vozes que se harmonizavam. O autor distingue história local e regional da micro-história, “que (…) frequentemente vê-se confundida com a história local por trabalhar com realidades ‘micro’ (…)”. Numa guinada interpretativa, Barros figura a academia como um espaço também de poder, onde há um “jogo institucional de poderes e saberes”.

Nesse espaço universitário, haveria uma repartição das tarefas intelectuais entre universidades que seria falaciosa, que hierarquiza o saber e impõe um “modelo de divisão do trabalho intelectual” (p.186). Para o autor, na universidade brasileira o “universo da pós-graduação stricto sensu, a instância maior para a produção da pesquisa no Brasil” (p.186) é o “sistema que se superpõe à rede de poderes e saberes” das universidades, distinguindo-as de maneira perniciosa entre “universidade centrais” – que fariam a pesquisa de “saberes maiores”, de realidades mais amplas e de caráter mais geral – e “universidades periféricas” – que se dedicariam a qualquer modalidade temática de História e/ou a saberes locais, principalmente “a história das localidades nas quais se assentam” (p.186). As instituições se distinguiriam, assim, segundo um sistema de poder cujos praticantes acabam tendo de conceber a universidade como grande território de espaços estratégicos a serem ocupados conforme uma geopolítica que gera desigualdades, provocando mais conflito e hierarquia do que solidariedades, o que pouco colabora no país com o desenvolvimento da pesquisa como um todo em História. O autor ataca o que chama de “esquadrinhamento geográfico” dos saberes acadêmicos e não admite que em um “mundo informatizado e ágil nas comunicações e meios de transporte” (p.186), com muitos arquivos digitalizados e em rede, ainda se pense em dividir a tarefa intelectual da pesquisa entre sujeitos conforme sua localização física e pretensa superioridade, uma vez que “um historiador residente em qualquer lugar do país pode empreender boa parte de uma pesquisa relacionada a qualquer tema” (p.187) mais amplo, esteja onde estiver.

No capítulo 6, Acordes Teóricos, há um convite ao que chama de “pensar acórdico”, onde a Teoria musical fundamenta “um novo modelo para a imaginação teórica” (p.221). Instado a se especializar, o intelectual faz interdisciplinaridade ainda e promove “movimentos e propostas que acenam para uma religação de saberes” (p.189). Contra classificações perfeitas que não captam variações ao longo de trajetórias intelectuais de autores, Barros usa a imagem de um “conjunto de notas musicais que soam juntas”, o acorde, que produz uma “sonoridade compósita” (p.196). O autor sustenta que obras intelectuais são reiteradas, modificadas e revistas ao longo de seus trajetos, e isso não é o caso de desqualificá-las em nome de suspostas incoerências, contradições ou falta de uniformidade. Em todo autor, segundo Barros, há variações, ambiguidades e supostas contradições sim, mas como uma polifonia: são pensamentos “em movimento”, com fases que são como “sucessão de acordes” que se harmonizam polifonicamente. A Teoria musical ensina que a obra intelectual, como uma só voz, pode harmonicamente agrupar várias vozes: a obra como um todo é diversidade de fases de produção vistas como harmonia e não incoerência e a produção intelectual não tem uma unidade originária paradigmática que se conserva sempre. Nesse texto 6, o autor oferece um esquema acórdico de pensamento que favorece o olhar para obras intelectuais sempre em movimento de expansão, retração, empréstimos, momentos, contextos – mas em que tudo se transforma numa melodia. A proposição do autor é original porque põe em metáfora uma compreensão mais orgânica da obra intelectual.

O livro A Expansão da História oferece reflexões originais com proposições importantes sobre História e, mais ainda, sobre seus cursos de graduação e de pós-graduação: conceitos, definição, critérios, modos de ser da disciplina se materializam em cursos segundo interesses num campo de disputas. É assim que o livro de D’Assunção de Barros vale muito pelo que ousa dizer num momento da história da História em que seus cursos começam a ser investigados. O livro de José D’Assunção Barros é obra de Teoria da História e soa com um tom de livro já lido, mas não é absolutamente só isso. É, ainda, uma obra com certa ousadia que oferece textos que relevam pontos para um debate teórico sobre o estatuto da disciplina no século XXI e, como desdobramento, sobre como revisões e revisitações à história da História podem orientar novas formas de o historiador comportar-se com relação à apresentação da História, discussão que só agora começa a ganhar espessura com a reflexão sobre as possibilidades do discurso histórico para além do texto escrito e do público especializado.

Bruno Flávio Lontra Fagundes – E-mail: parabrunos@fecilcam.br .

O caráter oculto da saúde – GADAMER (HCS-M)

GADAMER, Hans-Georg. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2006. 176p. Resenha de: MENDONÇA, André Luís de Oliveira. O cuidado com a saúde na era da ciência e da técnica: o que é a saúde, afinal? História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 21 n.2 Apr./June 2014.

Desde que veio a lume sua obra Verdade e método (1997 [1960]), Hans-Georg Gadamer tornou-se um dos filósofos mais insignes da segunda metade do século XX, ao lado de Michel Foucault, Jürgen Habermas e Richard Rorty, entre outros. Como o subtítulo, Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, permite inferir, o objetivo norteador da referida obra consistiu em advogar a tese em prol de uma hermenêutica como filosofia, ou de uma filosofia como hermenêutica. Herdando uma tradição que remonta a Friedrich Schleiermacher (1768-1834), tendo sido levada adiante por Wilhelm Dilthey (1833-1911), pode-se afirmar que Gadamer renovou profundamente os pressupostos, a natureza e o escopo da hermenêutica, a começar justamente por seu projeto de torná-la uma filosofia, procurando aplicá-la reflexivamente a si mesma também, e não mais, como seus pais fundadores almejaram, de fazer dela uma ciência da interpretação e da compreensão (uma espécie de epistemologia voltada para a fundamentação das ciências humanas ou das humanidades em geral). Influenciado, notavelmente, pelo diálogo socrático-platônico, pelo conceito aristotélico de phrônesis e pela analítica existencial/ontologia fundamental de Martin Heidegger, como também pelo conceito de “historicidade” hegeliano e de “mundo da vida” de Edmund Husserl, Gadamer foi responsável por instituir uma significação ontológica e universal para a hermenêutica, no sentido de uma postura de diálogo e abertura em face do mundo e das pessoas, partindo do reconhecimento de que somos finitos e de que, portanto, nosso conhecimento é sempre incompleto e provisório. Como argumentou Rorty (1994), quiçá a grande contribuição da hermenêutica gadameriana residiu em ter mostrado, de modo edificante, como é possível tornar “familiar” aquilo que nos aparece como “estranho” à primeira vista, graças à busca incessante em direção ao encontro com a alteridade do outro. É nesse sentido que, para Gadamer, a hermenêutica não era um mero método ou técnica de interpretar ou compreender textos, mas sim uma postura existencial frente a todas as facetas do humano, posto que a vida é repleta de dimensões e acontecimentos que escapam ao nosso controle e ao nosso entendimento imediatos.

Com a sua hermenêutica filosófica, Gadamer repensou, de forma singular e original, os velhos temas da história da filosofia, sobretudo da dita “tradição humanística”. Mais precisamente, ele deixou marcas indeléveis no debate gravitando em torno das três principais esferas da cultura humana que se teriam autonomizado com o advento do projeto da modernidade, a saber: ética, arte e ciência. Especificamente sobre a ciência, há uma interpretação difundida de acordo com a qual Gadamer fora um autor anticientífico, uma vez que ele teria chamado a atenção para os limites da racionalidade monológica engendrada pela ciência moderna e defendido a superioridade das humanidades frente ao “tecnicismo reducionista”. Faz-se oportuno, entretanto, ressaltar que Gadamer tão somente criticou uma ciência desprovida de responsabilidade social, e não a prática científica enquanto tal, como se pode depreender, por exemplo, da leitura do seu livro A razão na época da ciência (1983). Seu projeto filosófico pode ser compreendido como uma tentativa heroica de resgate do interesse pelo humano em sua integralidade: deveríamos valorizar, simetricamente, o aspecto estético-expressivo, ético-valorativo e epistêmico-cognitivo da nossa existência; e, além disso, talvez sua meta precípua fosse salvaguardar a dimensão humana mais relegada pela modernidade ao limbo da história: nosso pendor quase natural para as questões ontológicas e metafísicas (é bom lembrar que as questões sobre o Ser em Gadamer são colocadas levando em consideração a nossa historicidade). Não bastasse sua visão enciclopédica sobre as diversas áreas do saber, Gadamer foi decisivo em pelo menos mais duas searas pelas quais também enveredou grande parte dos seus contemporâneos: as discussões travadas sobre a história e a linguagem. Pertinentes ainda são suas críticas ao objetivismo histórico (Gadamer, 2006), bem como sua concepção de linguagem como diálogo hermenêutico (daí, aliás, seu pensamento ser também denominado “dialética dialógica”, devido ao papel central que o diálogo autêntico desempenha).

Coerente com sua hermenêutica universal – não se trata de um método de interpretação exclusivo para as artes e humanidades visando lhes extrair sentido dos aspectos que são aparentemente destituídos de compreensibilidade à primeira leitura, mas, na realidade, ela seria uma postura prudente e recomendável em toda e qualquer situação em que a aplicação de regras formais simplesmente não funciona –, Gadamer fez incursões sobre praticamente todos os campos do conhecimento, incluindo a medicina. O livro O caráter oculto da saúde é justamente uma feliz reunião de artigos e conferências de Gadamer – realizados em “conjunturas especiais”, como ele mesmo afirma na primeira linha do prefácio –, cobrindo um período de 25 anos (de 1965 a 1990), em que ele trata de questões referentes ao cuidado com a saúde no contexto da ciência e da técnica. A tese geral do pensamento gadameriano que permeia o livro consiste na assunção segundo a qual a ciência (medicina como ciência) – em que pese sua tarefa imprescindível e insubstituível – não é capaz de dar conta, sozinha, de todos os fatores que englobam o humano, enquanto a tese específica sobre a questão da saúde (a mais original do livro; expressa também no título) é aquela que afirma ser a própria saúde, e não a doença, o acontecimento verdadeiramente misterioso (miraculoso) a ser perscrutado. Em diálogo constante com os pensadores originários (nomeadamente, Platão e Aristóteles) e com alusão indireta aos seus contemporâneos (ouvem-se ecos, por exemplo, das ideias de Canguilhem e Foucault), Gadamer examina diversas facetas do cuidado com a saúde, sobre as quais discorro a passos largos, a partir dos capítulos do livro per se (13 no total).

O primeiro capítulo, “Teoria, técnica, prática”, o mais extenso do livro, funciona estrategicamente para colocar a questão de fundo do autor: vivemos na era da ciência. Traçando uma distinção entre as concepções grega e moderna acerca da teoria, técnica e prática, Gadamer nos adverte sobre a necessidade de realizarmos uma espécie de desmitologização da “desmitologização”: nem iconoclastia preconceituosa, nem crença supersticiosa na ciência moderna. A meu ver, ele traz à baila uma discussão incontornável: a relação (conflitante?) entre a ciência e as demais tradições e instituições da nossa sociedade, isto é, o choque entre a ciência e os valores do “mundo da vida”. A pergunta sobre a qual Gadamer medita diz respeito aos problemas relativos à possibilidade real de a ciência fundamentar, plena e satisfatoriamente, a vida social em bases racionais. Sua resposta aponta para a direção de um paradoxo de difícil solução: “quanto mais racionais as formas de organização da vida são modeladas, tanto menos é praticada e ensinada a capacidade racional de julgamento”, ou “quanto mais intensivamente a área de aplicação é racionalizada, mais falta o próprio exercício do juízo e, com isso, a experiência prática no seu verdadeiro sentido” (p.26). Esse paradoxo é atrelado a outra temática recorrente no livro: a especialização (sua questão norteadora parece ser o medo tanto do autoritarismo quanto do embotamento que o especialismo pode gerar). Ao longo do livro, Gadamer defende, com veemência, a necessidade de não abdicarmos da ideia de “totalidade”, no sentido de uma visão integral do saber sobre o homem. Sua “utopia” é a de que o progresso científico e tecnológico seja acompanhado de um desenvolvimento de uma consciência sociopolítica mais ampla. Nesse sentido, as ciências humanas desempenhariam uma tarefa decisiva, uma vez que são capazes de nos suprir com uma ampla perspectiva atinente à diversidade de se poder ser “ser humano”, como também são responsáveis por nos tornar conscientes de que toda e qualquer perspectiva está carregada de valores, o que implica, portanto, sempre uma normatividade, ainda que não declarada, mesmo no caso da ciência. De todo modo, de maneira interessante e autêntica, Gadamer conclama os cientistas naturais a reconhecer esses problemas como passíveis de ser pesquisados, embora não de forma totalmente “naturalizante” (experimental).

No segundo capítulo, “Apologia da arte de curar”, o autor sustenta uma das teses centrais do livro: o papel preponderante da natureza na saúde. A marca da arte médica consiste no restabelecimento do “equilíbrio natural”. A rigor, a genuína arte de curar consiste em tornar-se supérflua: “A arte médica se completa na retirada dela mesma e na liberação do outro” (p.51). A questão premente é saber a medida certa da intervenção médica (quando ela é “muito demais” ou “pouco demais”, ou seja, encontra-se aqui subjacente o problema da medicalização). Outrossim, Gadamer ressalta uma dúvida constitutiva: quem é verdadeiramente responsável pelo sucesso ou pelo fracasso da cura em “situações normais” – o médico ou a natureza?

“Sobre o problema da inteligência”, terceiro capítulo do livro, apesar de aparentemente deslocado das questões gerais pertencentes ao campo da saúde, serve para Gadamer reafirmar sua tese primordial de que o ser humano deve ser pensado em sua totalidade. Contrapondo-se ao conceito formal de “inteligência como desempenho”, predominante naquele momento, ele defende uma concepção de inteligência mais abrangente, de modo a impedir a instrumentalização da pessoa humana. Vale-se do exemplo da saúde mental justamente para mostrar como é preciso levar em consideração o estado da pessoa na sua integralidade.

Em “A experiência da morte”, o quarto capítulo, Gadamer aborda o tema crucial da vida, que, segundo ele, teria sofrido uma grande transformação com o processo de secularização desencadeado com a modernidade e consolidado com o predomínio da racionalidade técnica da sociedade atual. Estaríamos vivendo sob a égide de uma desmitologização da morte (desmitologização da vida). Não obstante a suposta superação da conotação mística ou religiosa da morte e da vida, haveria um paradoxo persistente: o avanço tecnológico no prolongamento artificial da vida confronta-se com o limite do nosso “ser-capaz-de-fazer” relativo à morte. Em todo caso, permanece viva nossa tensão essencial entre a consciência acerca da nossa própria finitude e o impetuoso não querer saber que somos seres para a morte.

À procura de um equilíbrio entre a razão instrumental científica e os valores humanos, no quinto capítulo, “Experiência corporal e objetivabilidade”, Gadamer remonta à arte de curar dos gregos para propor uma unidade entre corpo e alma, tendo em vista o homem integral. Nesse sentido, enfatiza os limites da ciência médica que se volta apenas para os aspectos biológicos (corporeidade instrumental), tomando o caso das doenças crônicas como o exemplo por meio do qual ficaria demonstrado, cabalmente, que outros fatores além dos aspectos meramente “biomédicos” atuam diretamente na saúde das pessoas.

Apesar de o título não aparentar, o sexto capítulo, “Entre natureza e arte”, aborda uma questão relevante com relação à saúde. Como é frequente ao longo do livro, Gadamer retoma o significado grego de “arte” como techné: o saber e o ser-capaz-de-fazer que sabe. Ora, no caso específico da saúde, a tarefa do médico não consiste em saber fazer uma obra, mas, pura e simplesmente, restituir o doente ao seu “estado natural” e à unidade consigo mesmo. Essa ideia de o médico ser um simples auxiliar da natureza é recorrente no livro.

No sétimo capítulo, “Filosofia e medicina prática”, Gadamer desenvolve um argumento que seria trivial se não fosse amiúde esquecido: a prática médica não se dá, como se pensa ser o caso na interface de teoria e técnica, como a mera aplicação de uma lei geral. Cada situação concreta possui sua singularidade (“o paciente é uma pessoa, e não um caso”). Daí os limites dos aparelhos tecnológicos de medição. Como, aliás, acontece em outros capítulos, Gadamer relembra o conceito de “medida” em Platão como aquilo que é “apropriado” (adequação moderada), de modo a superar a concepção meramente quantitativa de medição (qual seria a medida adequada da medicalização em cada situação concreta parece ser, mais uma vez, a questão subjacente). A dificuldade de se atentar para o “apropriado” nas clínicas modernas advém justamente da ausência do “olhar” e da “escuta”. Também nesse capítulo, pela primeira vez de modo mais explícito, apresenta-se a tese que dá título ao livro: a saúde é algo que se subtrai ao exame; ela pertence ao “milagre do autoesquecimento”. Por isso, a saúde não pode ser totalmente objetivada pela ciência médica. Essa tese reaparece no capítulo seguinte, intitulado justamente “Sobre o caráter oculto da saúde”. Nas palavras de Gadamer, a verdadeira singularidade reside no milagre da saúde, e não na doença. A doença, e não a saúde, é que é algo aparentemente auto-objetivante. Eis o verdadeiro mistério: o caráter oculto da saúde, uma vez que não há possibilidade de medi-la; trata-se de um estado de adequação interna e de conformidade consigo próprio. Mas o que seria a saúde, afinal? “Ela é o ritmo da vida, um processo contínuo, no qual o equilíbrio sempre volta a se estabilizar” (p.119).

Em “Autoridade e liberdade crítica”, nono capítulo, Gadamer parte de uma espécie de antinomia da modernidade – a autoridade da ciência conflitaria com a liberdade crítica –, com o intuito de defender a legitimidade da autoridade do médico quando ela é embasada no seu ser-capaz-de-fazer, ou, para colocar em termos mais contemporâneos, na sua expertise. Na realidade, Gadamer propõe um entrelaçamento indissociável entre autoridade e liberdade crítica, sublinhando uma dupla exigência ética do exercício da autoridade de um especialista: autocrítica e autodisciplina. Autoridade autêntica consiste exatamente na liberdade crítica consigo mesmo, reconhecendo os próprios limites; abuso de autoridade seria não transmitir a outrem (no caso, o paciente) uma verdadeira libertação por meio de compreensão própria.

A despeito da originalidade do capítulo em que trata especificamente do caráter oculto da saúde, é no décimo capítulo, “Tratamento e diálogo, que Gadamer se vale do conceito central de sua filosofia – “diálogo” –, para pensar a questão do cuidado em saúde. Começando com uma análise filológica – frequente no livro e no seu pensamento – sobre a palavra “tratamento” (oriunda de “apalpar”), ele nos adverte que a ausência do tocar, do ouvir e do olhar concorrem para obstaculizar a arte genuína de curar. Seu diagnóstico é o de que o problema mais grave da medicina atual está na falta de diálogo entre médico e paciente. Consoante Gadamer, o diálogo já constitui, em si, “tratamento”. Em virtude disso é que ele vai defender uma convergência entre diagnose, tratamento, diálogo e “colaboração do paciente”. Isso sem esquecer obviamente de outra tese recorrente no livro: a cura é o pleno poder da natureza, e não do médico. Para ser mais preciso, é preciso ressalvar que Gadamer destaca a “dúbia” relação que nós devemos ter com a natureza: “Precisamente esta é a nossa natureza, ter de nos impor também perante a natureza, até onde podemos. Mas, com maior razão, é próprio à natureza humana manter-se – em todo o saber e ser-capaz-de-fazer – em harmonia com a natureza. Esta é a antiga sabedoria estoica” (p.144).

O 11º capítulo, “Vida e alma”, é o mais “filológico” de todos, no qual Gadamer recorre especialmente às concepções gregas dos filósofos originários para contrastar os seus significados de “vida” e “alma” com os dos modernos, a partir da presunção de que teria havido, por um lado, uma restrição dos sentidos antigos e, por outro, uma permanência subjacente às mudanças. Já o 12º capítulo, “Angústias e medos”, é o mais filosófico de todos. Partindo das reflexões de Heidegger sobre angústia – em cuja obra “angústia” é uma categoria existencial que permite o despertar acerca da pergunta pelo ser/nada, e não uma disposição de humor psicológica, tampouco uma categoria psiquiátrica –, Gadamer pretende mostrar que, além de não ser doença, a angústia e os medos fazem parte da nossa “natureza” como seres humanos. Nesse sentido, a nossa busca de segurança e controle na era da técnica e ciência, por mais legítima que for, não pode esquecer que ela jamais apagará nossos traços mais essenciais.

O último capítulo, “Hermenêutica e psiquiatria”, como o título mesmo sugere, traça um paralelo entre as duas áreas. A rigor, hermenêutica e psiquiatria possuiriam uma preocupação em comum: o interesse nas grandes questões humanas. Ambas partem da premissa segundo a qual os conceitos de saúde e doença descrevem situações vitais que ultrapassam o nível do objetivável, uma vez que o ser humano é uma totalidade biopsicossocial.

Ainda que algumas das teses sustentadas por Gadamer no livro não constituam, pro-priamente, grande novidade para a saúde coletiva – dado que o próprio campo já se nutre do manancial hermenêutico, entre tantos outros referenciais teóricos das mais variadas tradições de pensamento, desde os seus primórdios –, penso que O caráter oculto da saúde é uma obra que deveria ser lida e relida sob inspiração do “espírito” da hermenêutica gadameriana, porquanto ela possui todos os ingredientes necessários para propiciar um diálogo franco e aberto entre todos aqueles envolvidos no cuidado com a saúde, desde “pacientes” (usuários do sistema de saúde) e médicos (pena que Gadamer não menciona os demais profissionais da saúde), até gestores e pesquisadores. Com efeito, não se trata de discutir apenas, como é mais usual, as questões referentes às doenças, senão perscrutar aquilo que, mesmo que continue sendo um “mistério”, merece ser examinado com cuidado: o conceito de saúde; sem deixar de atentar, com o fito de tentar responder o que vem a ser “saúde”, para o fato de que vivemos na era da ciência ou, no caso, da medicina pretensamente científica, bem como em um contexto social de medicalização da existência. Que ciência nós queremos? Que saúde nós queremos? Essas me parecem ser as questões prementes subjacentes ao belo livro de Gadamer.

Referências

GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: FGV Editora. 2006. [ Links ]

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes. 1997. [ Links ]

GADAMER, Hans-Georg.A razão na época da ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1983. [ Links ]

RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 1994. [ Links ]

André Luís de Oliveira Mendonça – Pós-doutorando, Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: alomendonca@gmail.com

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Hegel-Husserl-Heidegger – GADAMER (FU)

GADAMER, H-G. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis: Vozes, 2012. Resenha de: KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.15, n.1, p.84-87, Jan./abr., 2014.

O nome de Hans-Georg Gadamer (1900-2002) se confunde com a ideia de hermenêutica. Esta afirmativa se legitima ao conhecermos as contribuições que o filósofo trouxe a esse campo de saber. Retirar a hermenêutica do registro metódico, que fazia com que esta ainda permanecesse distanciada de seus objetos, trazendo-a para o domínio filosófico (nas esferas estética, histórica e da linguagem) talvez tenha sido o mais significativo acréscimo do pensamento gadameriano (Rohden, 2002). Não se pode, contudo, em detrimento de suas ideias próprias, desconsiderar as apropriações que o autor faz das figuras filosóficas que, de alguma maneira, se encontram atreladas à hermenêutica e fenomenologia contemporâneas. Com vivo interesse hermenêutico, Gadamer comenta pensadores que influíram decisivamente em sua formação acadêmica, em sua síntese filosófica original e, de modo mais amplo, na cena intelectual do século XX. Valendo-se de ensaios, conferências e falas de circunstância, o autor nos oferece, com a clareza que lhe é habitual, interpretações que – além de sempre contar com a atitude hermenêutica fundamental – se beneficiam da experiência deste que não apenas viveu as ideias do século passado quanto conviveu com alguns de seus propositores.

Algumas dessas interpretações estão já disponíveis em português na série Hermenêutica em retrospectiva, editada entre os anos 2007-2008 pela Editora Vozes (Gadamer, 2007a, 2007b, 2007c, 2007d, 2008). Recentemente, sob o mesmo selo editorial, o leitor brasileiro passou também a contar com mais dessas leituras de Gadamer enfeixadas sob o título de Hegel-Husserl-Heidegger. Com esta entrada, chegamos a nutrir expectativas (em parte induzidos pelo distinto e quase homônimo capítulo que Sartre [1997] consagra aos três filósofos no interior de O ser e o nada) quanto ao livro tratar-se de um único e coeso ensaio que tentaria mesclar as ideias dos três filósofos. Entretanto, mesmo vendo nossas expectativas neste sentido dissipadas, a obra, coletânea de textos de diversas épocas, não deixa de gratificar os interessados em questões hermenêuticas e fenomenológicas, bem como, pontualmente, os pesquisadores dos referidos filósofos germânicos.

Equivalendo ao terceiro volume das Obras Reunidas (Gesammelte Werke), Hegel-Husserl-Heidegger traz 28 escritos distribuídos em três partes referentes aos filósofos nomeados no título. Desiguais em número de textos, as partes são também diferentes em extensão e gênero; alguns são longos ensaios e, outros, recensões e alocuções menores.

É isso que se vê na primeira seção, composta por cinco escritos sobre Hegel: “Hegel e a dialética antiga” (p. 13-46), “O mundo às avessas” (p. 47-69), “A dialética da autoconsciência” (p. 70-92), “A ideia da lógica hegeliana” (p. 93-121) e “Hegel e Heidegger” (p. 122-140). No primeiro tópico, temos a tentativa de Gadamer (que também era filólogo clássico) de pensar a dialética antiga em sintonia com a moderna; nos demais, é possível entrever o procedimento hermenêutico do autor ao caracterizar a filosofia da subjetividade hegeliana a partir da noção de “entendimento” na Fenomenologia do espírito e nas doutrinas da Lógica maior. Embora Gadamer seja bem pouco pretensioso frente a estes trabalhos que, para ele, apenas contribuiriam para “se aprender a soletrar Hegel” (p. 8), nosso autor se mostra um distinto leitor de Hegel, mostrando-se familiarizado com a literatura que – de Rosenkranz a Kojève – compõe o repertório crítico junto ao qual os problemas hegelianos se adensam e se esclarecem.

Proporcionalmente reduzida é a seção reservada a Husserl. Isto, no entanto, não significa que Gadamer atribuía importância menor ao fundador da Fenomenologia. Reconhecendo a extensão e magnitude do pensamento de Husserl, Gadamer nos oferece um conjunto de recensões outrora publicadas no periódico Philosophische Rundschau; com essas, pretende escutar, uma vez mais, o que foi dito por Husserl e estabelecer os acentos cabidos aos pontos de convergência e ressonância da fenomenologia. Isso pode ser conferido em textos como: “O movimento fenomenológico” (p. 143-199), “A ciência e o ‘mundo da vida’” (p. 200-216) e “Sobre a atualidade da fenomenologia husserliana” (p. 217-232). Entre os três títulos, voltemos nossas atenções ao primeiro. Neste longo escrito, encontramos uma apresentação muito didática dos termos da fenomenologia husserliana em seus objetivos, aspectos metódicos e, principalmente, seus objetos de crítica (a teoria do conhecimento, a ideia de sujeito e outras hipostasias). Um pouco do nível dos textos que Gadamer consagra a Husserl, e uma ideia do que o leitor interessado nessa fenomenologia encontrará nessa segunda parte do livro, pode ser apreciado nas seguintes linhas:

A fenomenologia não era menos crítica em relação aos hábitos do pensamento da filosofia contemporânea. Ela queria dar voz ao fenômeno, ou seja, ela buscou evitar toda e qualquer construção indemonstrável e colocar à prova criticamente o domínio autoevidente de teorias fi losóficas. Assim, ela considerava, por exemplo, uma construção marcada por preconceitos, quando se procura deduzir todos os fenômenos da vida social humana de um único princípio, por exemplo, a partir do princípio da maior utilidade ou mesmo a partir do princípio do prazer. Mas ela se remete sobretudo contra a construção que imperava na outrora disciplina fundamental da filosofia: a teoria do conhecimento (Gadamer, 2012, p.144).

Dentre as três seções componentes do livro, a mais substancial é a terceira. Inteiramente dedicada a Heidegger (o que denota que é sobre este que recai a ênfase do livro), seus ensaios, conferências e discursos não são inteiramente inéditos, já tendo sido publicados originalmente entre os anos de 1964-1986. Na maioria desses escritos é possível identificar o interesse gadameriano em caracterizar o pensamento de Heidegger em dois tempos: o antes e o depois da chamada “virada hermenêutica”.

Dos 20 textos sobre Heidegger, chama-nos atenção “Existencialismo e filosofia da existência” (p. 235-249). Esta distinção entre o pensamento do filósofo de Freiburg e a dita corrente existencialista poderia ser considerada uma temática “requentada” se fosse desconsiderado o fato de ele ter sido escrito em 1981, época em que se vivia uma verdadeira voga existencial ou um momento em que, como diz Gadamer (2012, p.235): “O que não era existencial não contava”. Problematizando a designação em pauta, nosso comentarista apresenta os termos das filosofias da existência na Alemanha e dos motivos da aversão de Jaspers e Heidegger ao rótulo. Gadamer ainda nos mostra o quanto reflexões desses autores apropriam certo “pathos existencial” presente na obra de pensadores fundamentais como Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Tal texto, se lido diante da consideração de seu contexto de época, ainda se presta a reforçar o quanto a filosofia de Heidegger não é existencialista.

O texto “História da filosofia” (p. 398-412), também de 1981, é outro que se destaca do conjunto. Lançando um olhar inteligente sobre o tema, Gadamer procura estabelecer um lugar para a história da filosofia no pensamento de Heidegger. Com isso, reforça o quanto, em Heidegger, a história da filosofia é menos historiografia dos problemas do pensamento do que questionamento filosófico propriamente.1 Entretanto, ao tomar este caminho, Gadamer se vê instado a tratar, também, do conceito heideggeriano de história, este que, como sabemos, possui acepções diversas em diferentes épocas (como se vê nos primeiros trabalhos de Heidegger, implicando as noções de historicidade e temporalidade existenciais e nos encaminhamentos para a obra tardia do filósofo, na qual a “história do ser” ganha proposição e relevo). Antes, porém, de chegar a esse ponto, Gadamer faz uma reconstrução histórica do conceito de história da filosofia mostrando o quanto ele surge do gesto inaugural de Hegel; como ganharia a acolhida de Schleiermacher; receberia contributos da escola histórica de Berlim e de pensadores a esta ambientados (como é o caso de Dilthey) e mereceria críticas quando é assumido como “história das ideias” no bojo do movimento neokantiano (em especial com Windelband).

“Martin Heidegger, 75 anos” (p. 250-264), “O pensador Martin Heidegger” (p. 298-305), e “Martin Heidegger, 85 anos” (p. 350-361) são discursos comemorativos por ocasião de aniversários do filósofo. Nesses (mais do que o registro de apreço de Gadamer a seu mestre) se encontra uma narrativa detalhada da trajetória de Heidegger, com ênfase em seus excitantes momentos iniciais. Longe do tom retórico e das formalidades (geralmente recorrentes em falas similares), o relato de Gadamer assume, por vezes, o tom de um memorialismo refinado. Em meio ao exercício de apresentar traços personais do filósofo, ilustrar o rigor de sua atitude fenomenológica, compreender seus conceitos fundamentais e revisitar as críticas voltadas à sua filosofia, é possível identificar o esforço de Gadamer em marcar suas posições frente ao pensamento de Heidegger, ou, como confessa o próprio Gadamer (2012, p.9):

Foi necessário o distanciamento que a conquista de um nível próprio pressupõe, até que eu estivesse respectivamente em condições de destacar a tal ponto o meu acompanhamento dos caminhos de Heidegger de minha própria busca por um caminho e uma senda, que eu pudesse apresentar por si mesmo o caminho do pensamento de Heidegger.

É claro que o recorte específico dado por nossa resenha não faz com que prescindamos da leitura dos demais textos do compêndio: “A teologia de Marburgo” (p. 250-264), “O que é metafísica?” (p. 281-285), “Kant e a virada hermenêutica” (p. 286-297), “A linguagem da metafísica” (p. 306-317), “Platão” (p. 318-332), “A verdade da obra de arte” (p. 333-349), “O caminho até a viragem” (p. 362-381), “Os gregos” (p. 382-397), “Há uma medida sobre a terra?” (p. 446-470), “Sobre o início do pensamento” (p. 507-531), “Em meio ao retorno ao início” (p. 532561) e “O caminho uno de Martin Heidegger” (p. 562-580). Afinal, estes escritos ajudam a introduzir o pensamento de Heidegger mostrando o quanto o autor foi tão obstinado quanto intrépido ao se afastar da filosofia e linguagem tradicionais, encaminhando-se a um pensamento novo e renovador.

Ao fim, é preciso indicar que, embora o título sugira apenas o universo de Hegel, Husserl e Heidegger, também comparecem no horizonte da obra autores (direta ou indiretamente) ligados ao pensamento dos primeiros. Destarte, vale conferir como Gadamer se posiciona frente a Natorp, Scheler e Hartmann.

Notas

1 Isso já poderia ser conferido pelo leitor brasileiro na preleção História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant (Heidegger, 2009).

Referências

GADAMER, H-G. 2012. Hegel-Husserl-Heidegger. Petrópolis, Vozes, 608 p.

GADAMER, H-G. 2007a. Hermenêutica em retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. Petrópolis, Vozes, vol. 1, 132 p.

GADAMER, H-G. 2007b. Hermenêutica em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis, Vozes, vol. 2, 212 p.

GADAMER, H-G. 2007c. Hermenêutica em retrospectiva: hermenêutica e a filosofia prática. Petrópolis, Vozes, vol. 3, 95 p.

GADAMER, H-G. 2007d. Hermenêutica em retrospectiva: a posição da filosofia na sociedade. Petrópolis, Vozes, vol. 4, 131 p.

GADAMER, H-G. 2008. Hermenêutica em retrospectiva: encontros filosóficos. Petrópolis, Vozes, vol. 5, 119 p.

HEIDEGGER, M. 2009. História da filosofia, de Tomás de Aquino a Kant. Petrópolis, Vozes, 271p.

ROHDEN, L. 2002. Hermenêutica filosófica: entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo, Editora Unisinos, 317 p.

SARTRE, J.P. 1997. Husserl, Hegel, Heidegger. In: J.-P. SARTRE; P. PERDIGÃ O, O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis, Vozes, p.302-325.

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Toledo, PR, Brasil. E-mail: kahlmeyermertens@gmail.com

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[DR]

 

O projeto de pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico | José D’Assunção Barros

José D’Assunção Barros é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do Curso de Mestrado e Graduação em História, e professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor dos livros: O campo da História, O projeto de pesquisa em História, Cidade e História, e a Construção social da cor. Referente à música, escreveu, em 2005, o livro Raízes da Música Brasileira, Nacionalismo e Modernismo: a música erudita brasileira nas seis primeiras décadas do século XX em 2005, obra que recebeu o Prêmio: Inéditos da União Brasileira de Escritores no Rio de Janeiro.

O livro “Projeto de pesquisa em História” está dividido em seis capítulos intitulados respectivamente: O projeto de pesquisa e estrutura fundamental; Introdução e delimitação do tema; Revisão bibliográfica; Justificativa e Objetivos; Quadro teórico e Hipótese, além de um rico glossário no final, bastante útil para os pesquisadores iniciantes com pouca intimidade com o vocabulário específico da pesquisa no campo da História.

No primeiro capítulo do livro são explicitadas as etapas da produção de um projeto em História, da fase elementar ao término. Esse capítulo, além de apresentar um resumo geral da temática, indaga ao leitor sobre as perguntas que problematizam a elaboração de um projeto de pesquisa que, segundo Barros, são “instigantes e muito desafiadoras” no início do processe de elaboração do projeto de pesquisa. Esse capítulo ainda retrata a diferença entre pesquisadores, classificando-os em “pesquisador iniciante, pesquisador estudioso, pesquisador profissional”. Nele também são apresentadas as diferenças entre projetos de pesquisa, projetos para levantamentos de fundos e projetos para a produção acadêmica. Ao longo de capítulo, Barros apresenta de forma clara e sucinta as partes que devem conter em um projeto, além de elencar as perguntas que uma pesquisa deve buscar responder: “O que se pretende fazer? Por que fazer? Para que fazer? A partir de que fundamentos? Com o que fazer? Como fazer? Com que materiais? A partir de que diálogos? Quando fazer?”; são perguntas como essas feitas no primeiro capítulo que possibilitam ao leitor elaborar seu projeto de pesquisa de forma bem articulada.

Barros, no segundo capítulo, discute a “Introdução e delimitação do tema”, pois a introdução do projeto deve ser bem resumida. No que diz respeito ao recorte temático, o autor revela que o dever de realizá-lo é do pesquisador que deve apreciar bastante o tema a ser pesquisado, pois são “escolhas […] que dependem mais diretamente do pesquisador” (p. 15). Enfatiza que após essa definição o tema sofrerá vários recortes relacionados ao tempo e ao espaço, além dos contemporâneos recortes do tipo “serial” e “da fonte” que, segundo Barros, são tarefa do historiador. Neste capítulo, o autor discute a escolha do tema, ressaltando a relevância para os pares e o interesse pessoal de cada pesquisador. Merece destaque nesse capítulo, portanto, a importância e o impacto da introdução em um projeto de pesquisa.

No terceiro capítulo, Barros discute a revisão bibliográfica, fundamental para o projeto, pois nenhum pesquisador sai do nada para fazer a sua pesquisa. Ele enfatiza que a revisão bibliográfica “não é listar todos os livros importantes para o seu tema” (p. 23). O autor revela uma preocupação em organizar as revisões bibliográficas, além de apresentar a distinção entre Bibliografia e Fontes, pois a primeira é “fonte histórica é aquilo que coloca o historiador diretamente em contato com o seu problema” (p. 24) enquanto a segunda “constitui o conjunto daquelas obras com as quais dialogamos, seja para nelas nos apoiarmos ou para nelas buscarmos contraste” (p. 25). Essa distinção configura-se como fundamental, pois muitas vezes o pesquisador pode confundir-se ao elaborar sua revisão bibliográfica.

No quarto capítulo, são discutidas a justificativa e os objetivos do projeto de pesquisa, diretamente relacionadas às perguntas norteadoras do estudo. Especificamente no que tange aos objetivos, Barros alerta que esses devem ser “[…] tratados de forma simples dentro do projeto de pesquisa, eles geralmente são expostos em sentenças de acordo com os verbos na forma infinitiva que podem estar listados ou tabelados” (p. 48). Os objetivos são classificados em geral e específicos, sendo que os objetivos específicos devem ser elaborados a partir do geral.

No quinto capítulo, o autor aborda a “interação e a diferença entre quadro teórico e metodologia”, na tentativa de minimizar as dificuldades que o pesquisador pode enfrentar acerca da diferença entre teoria e metodologia, pois os elementos do quadro teórico configuram-se como basilares para a revisão bibliográfica enquanto a metodologia, no campo das Ciências Humanas, remete a uma determinada maneira de realizar uma tarefa, ou seja, eleger ou constituir materiais, movimentar-se sistematicamente acerca do tema previamente definido pelo pesquisador. No campo da História, Barros elenca o Positivismo, o Historicismo, o Materialismo histórico, a Escola dos Analles, a História Cultural e a História Oral, ressaltando que para cada uma delas deve ser fundamentada em teóricos que dedicam-se a esse campo de estudo, pois são fundamentais para dar cientificidade à pesquisa.

No sexto capítulo são discutidas as hipóteses, pois para que toda pesquisa seja realizada, é necessário também existir um problema, uma inquietação e para ela uma possível resposta. Sobre isso, Barros diz que “todo processo de investigação sofre transformações no decorrer da pesquisa, pois a hipótese é formulada antes mesmo de se ter um problema” (p. 92). As hipóteses são, portanto, extremamente importantes para direcionar uma pesquisa. Na tentativa de verificar as hipóteses propostas, o autor sugere um direcionamento para a pesquisa, classificando e enumerando um quadro de funções: função norteadora, função delimitadora, função interpretativa, função argumentativa e hipótese.

O livro “O Projeto de Pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico”, descreve minuciosamente e de forma muito exemplificada as partes do projeto de pesquisa, tornando sua leitura indicada tanto para pesquisadores que tenham larga experiência na elaboração de projetos quanto para pesquisadores iniciantes, ou seja, aqueles que estão cursando a disciplina de projeto de pesquisa em História, porque o passo a passo descrito na obra é bastante fácil de ser compreendido, especialmente pela estrutura bem articulada e elaborada.

Djairton Alves de Sousa – Acadêmico do sétimo período do curso de Licenciatura em História da Faculdade Internacional do Delta (FID). Email-djairtonalvesdesousa@gmail.com.


BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. Resenha de: SOUSA, Djairton Alves de. Sobre Ontens. Apucarana, 2014.

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História da comunicação no Brasil | B

Fazer um consolidado de uma longa duração histórica, tendo um eixo temático como guia, não é tarefa fácil. Especialmente quando não se quer cair na tentação de fazer justamente o que se critica: pontuar datas, fatos e personagens, dando a impressão de que eles são os balizadores da verdade histórica. Marialva Barbosa, em sua obra sobre a história da comunicação no Brasil, tem plena consciência do caráter interpretativo que está embutido na abordagem histórica: não há uma verdade, mas – citando Paul Ricouer – cristalizações operadas pelo esforço científico do pesquisador em iluminar o passado a partir de uma hermenêutica dos vestígios que lhe estão disponíveis no presente. Tudo isso sem cair no anacronismo.

A aproximação do livro História da comunicação no Brasil com essa temática tão abrangente e prolongada ecoa uma postura teórica prévia da autora, que tradicionalmente aponta os perigos teóricos de uma narrativa da história feita a partir da exaltação de “grandes feitos”, considerados pontos de rompimento abrupto e transformador em relação ao passado, seja nos regimes de poder, seja nos costumes, seja nos valores, nos saberes, nos modos de vida, enfim, no próprio tempo. A autora faz questão de reiterar que a ênfase no poder individual de um único elemento na pesquisa histórica acaba por negligenciar a compreensão dos contextos e das continuidades, os quais estão necessariamente imbricados com o entendimento dos processos de mudança, sempre múltiplos e multifacetados. Leia Mais

Humanismo do outro homem – LÉVINAS (ARF)

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. 131p. Resenha de: CARVALHO, José Maurício de. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 9 jan./jun. 2013.

A tradução deste livro de Emmanuel Lévinas nasceu de seminário sobre o autor realizado no programa de mestrado da PUCRS. Ele reúne três ensaios e foi publicado em 1993. Embora seja publicação relativamente antiga, o autor não é bem conhecido dos estudantes de Filosofia e a temática abordada é atual frente às dificuldades que enfrenta o humanismo em nossos dias. O próprio autor sugere que o termo humanismo não significa o mesmo que há algumas décadas, o que exige encontrar novas justificativas para o conceito. Por outro lado, o crescente reconhecimento do mérito intelectual do filósofo aumentou, nos últimos anos, o interesse por conhecê-lo.

Como o filósofo pensa em fundamentar o humanismo num tempo que questiona os parâmetros do ocidente? Ele o estabelece na descoberta do outro, o que justifica do seguinte modo:

É ali na alteridade que abriga infinitamente grande tempo num entretempo intransponível. O um é para o outro um ser que se desprende, sem se fazer contemporâneo do outro, sem poder colocar-se a seu lado numa síntese, expondo-se como tema, um- -para-o-outro como um guardião-de-seu-irmão, como um responsável- pelo-outro. (p. 15).

A descoberta do outro suscita uma meditação de raiz fenomenológica sobre “a não-indiferença da responsabilidade.” (p. 15). É esta responsabilidade pelo outro que amarra a fraternidade universal, estando nela a raiz do novo humanismo proposto por Lévinas. A presença do outro não se revela na percepção transcendental, ou melhor, a percepção que dele se tem não apresenta o que o outro é verdadeiramente, fato que pede uma crítica da experiência fenomenológica como fonte de sentido. O outro em sua infinitude não chega pela percepção transcendental porque o outro se mostra a partir do seu rosto – que não está encerrado na forma do aparecer – nu, despojado de sua forma, desnudado de sua presença que o marcaria ainda como seu próprio retrato; pele enrugada, vestígio de si mesmo. (p. 16).

A alteridade do próximo aponta para um vazio escondido atrás do seu rosto cujos vestígios o sujeito apenas vislumbra. O outro não se revela inteiramente no rosto fenomênico. A identidade do outro nasce de um sinal, sem figura, sem presença, fora da civilização. Assim o filósofo conclui o prólogo julgando que a descoberta do outro representa as bases de um novo humanismo.

Seguem-se três ensaios independentes e subdivididos. São eles: A significação e o sentido; Humanismo e anarquia e Sem identidade. O primeiro é o maior e examina o significado oculto que transcendente a percepção transcendental do outro. Os conteúdos ausentes no ato dão a ele significado, apontando a distância que há entre o percebido e a realidade.

Esta condição humana se esclarece quando contraposta à condição divina, como ele explica: “Para Deus, capaz de uma percepção ilimitada, não haveria significação distinta da realidade percebida, compreender equivaleria a perceber.” (p. 22). A condição humana é desafiada pelo uso da metáfora, pois ela é capaz de sugerir uma realidade para além da percepção. O significado ganha sentido quando inserido num horizonte cultural “com tudo o que de aventura e de já feito comporta – que é o lugar em que, consequentemente, se situa a significação.” (p. 24). A linguagem amplia a experiência da percepção que não se limita a elementos isolados presentes nos dados perceptivos. Diz o filósofo que “a significação precede os dados e os clareia.” (p. 26). A linguagem mostra e interpreta o mundo. O ato de ler, neste contexto, fornece uma hermenêutica, traz uma exegese do dado. Assim ele interpreta as meditações de Martin Heidegger e o que “ele quis dizer quando nos ensinou que a linguagem é a casa do ser.” (p. 27).

No segundo item o autor amplia o estudo da cultura afirmando que nela se encontra a noção de ser, vista como totalidade existente além do dado percebido. Afirma: É por esta referência da totalidade clareadora do gesto criador da subjetividade que se pode caracterizar a originalidade da noção da significação, irredutível à integração de conteúdos dados.

(p. 29).

Esta totalidade passa pela linguagem, mas também pelos sentidos, ou pela corporalidade, como dizia Merleau-Ponty. A visão da realidade se estrutura em objetos culturais, que são reunidos em grupos ou totalidades que “exprimem ou iluminam uma época.” (p. 32). O pensamento é parte da cultura e é nela que a criação verbal descobre uma nova forma de descrever o ser. A atividade cultural revela o ser através do sujeito que se torna seu servo e guia. Este é o esquema da fase final do pensamento heideggeriano e influencia o pensamento contemporâneo no esforço de superar a relação sujeito-objeto.

O item seguinte traz uma crítica à metafísica platônica a partir da noção de totalidade que a Filosofia pretende estabelecer. Ela não pode ser fixada, contudo, como no mundo das ideias de Platão o é, de uma vez para sempre. Ao contrário, ele esclarece: “o inteligível não é concebível fora do devir que o sugere.” (p. 37). Nisto consiste a grande contribuição da fenomenologia ao aproximar “a função transcendental da espessura concreta de nossa existência corporal.” (p. 39). Dito de outro modo, a significação não se separa do modo como é concebida.

O quarto item trata da significação econômica dos bens, inserindo- -a num contexto cultural amplo: “Toda necessidade humana é, desde logo, interpretada culturalmente.” (p. 43), esclarece.

No item seguinte Lévinas afirma que a totalidade expressa na linguagem cultural não é reconhecida da mesma forma em todo o mundo.

Para entender o significado de totalidade para o europeu e para o chinês é necessário aprender a linguagem de ambos e outros referentes culturais que eles empregam em sua descrição. Assim, a mundialização da comunicação instaura uma crise de sentido melhor sentida nas diferentes concepções sobre Deus presentes nas diversas regiões do mundo. Ele afirma: “a crise do sentido é ressentida pelos contemporâneos como uma nova crise do monoteísmo.” (p. 47). A ideia bíblica de Deus perdeu a força entre os homens de hoje. Isto sugere o seguinte desafio: “é a análise do sentido que deve ensejar a noção de Deus que o sentido encobre” (p. 48).

O item VI trata da busca do sentido encoberto na relação intersubjetiva.

O elemento determinante na intersubjetividade é o outro. O movimento que vai da consciência do sujeito ao outro é denominada de obra. E o que é mesmo a obra? Trata-se do movimento que vai até o outro, mas não retorna à consciência mesma. Isto traz para a consideração o ser para além de mim e de minha morte pessoal, porque o processo não depende do retorno à consciência de si para ser elaborado. É um ir que fica inconcluso. Obra representa o valor da esperança e o sentido de nobreza expresso na preocupação com o outro concretizada na mudança de atitude para com o futuro. Afirma que a atitude esperançosa não se justifica se ficamos apenas no presente. Ele escreve: Um homem na prisão continua a crer num futuro não revelado e convida a trabalhar no presente, para as mais distantes coisas às quais o presente é irrecusável desmentido. (p. 54).

No item VII o autor aprofunda o significado deste outro: ele não é adversário como pensou Hobbes, nem o complemento natural das relações humanas sugerido por Platão. O outro aparece na consciência como orientação e busca de sentido. A presença do outro na existência recebe luz da cultura e representa um tipo de relação diferente da realizada com outros seres: “a epifania do outro comporta significação própria, independente da significação recebida do mundo” (p. 58). Este outro aparece para mim como rosto desnudo. Rosto que questiona a consciência e o que dele penso: “A epifania do absolutamente outro é o rosto com que o outro me interpela.” (p. 61). A emergência deste outro é pautada pela ética, considerando- se que a relação com ele deva ser guiada pela retidão.

No penúltimo item deste ensaio, o autor destaca a relação da ética com a cultura. Ele a emprega como referência objetiva para julgar e comparar culturas numa circunstância difícil e complexa da história, numa época em que várias culturas querem se mostrar válidas. Este momento multicultural gera confusão e, adicionalmente, questiona a excelência da cultura ocidental, considerando-a historicamente determinada. Ao tratar das normas morais como elemento comparativo ele descobre no humanismo que nasce do reconhecimento do outro como valor com peso universal.

No último item Lévinas trata do vestígio, concebendo-o como sinal que remete e traz até nós uma realidade oculta. Ele usa o conceito de vestígio para representar algo escondido no rosto do outro que aparece para mim de modo residual. Um rosto mostra algo ausente e para além do que revelam as manifestações fenomênicas. Assim o diz: “o outro é um puro buraco do mundo.” (p. 72). O rosto do outro me coloca em contato com o transcendente sem destruí-lo, um transcendente que vai além do fenômeno sem anulá-lo. Nisto consiste o vestígio, ele revela mais do que o sinal mostra, ele inclui todo o passado do ente que emitiu o sinal. A noção de Deus veiculada na tradição judaico-cristã vem permeada por esta noção de vestígio, ela “conserva todo o infinito da consciência que está na ordem pessoal própria.” (p. 80). Deus apenas se mostra nos vestígios que deixa.

No ensaio seguinte denominado Humanisno e anarquia, o filósofo volta ao tema da crise de civilização, cuja raiz é a “ineficácia humana posta em acusação pela própria abundância de nossos meios de agir e pela extensão de nossas ambições.” (p. 82). Para o fato também contribuiu a destruição da consciência, que na forma meditada por René Descartes e aceita até então foi posta em cheque pela psicanálise e pela fenomenologia ao instaurar a subjetividade transcendental. O resultado da crise é o aparecimento de uma civilização que não é nem humana nem inumana. Sua superação, na avaliação do filósofo “depende do surgimento do ente na matriz do algo ou do modelo do uno no seio do ser, ou seja, no seio do que se chama o ser do ente.” (p. 87).

No segundo item do ensaio, Lévinas lembra que o conteúdo da consciência é o presente, ainda que parte de seu conteúdo seja formado pela memória. O eu exercita a liberdade ao pensar além de si. Ele é confrontado com limites como a morte, mas é questionado pelo outro e por ele é acusado. Diante dos limites descobre uma liberdade originária na forma de lidar com as coisas, uma liberdade que se apresenta antes das escolhas que faz.

No item seguinte examina o componente anterior à escolha e observa que ser dominado pelo bem “não é escolher o bem a partir de uma neutralidade axiológica. O conceito de tal bipolaridade já se refere à liberdade.” (p. 96). Esta é a relação que Deus tem com o bem, ele não escolhe praticar o bem, ele está no bem. Além disto, Deus revela uma responsabilidade pelo outro que não tem origem nas escolhas. Portanto, Deus aparece nesta meditação como um Outro privilegiado diante de mim.

No quarto item mostra que o contato com o bem originário pode ser intuído por uma alma encarnada. No entanto, obedecer ao bem antes de fazer escolhas não é algo possível ao homem, pois “a responsabilidade pré-original pelo outro não se mede pelo ser, não é precedida de uma decisão e a morte não a pode reduzir ao absurdo.” (p. 101). Isto obriga cada indivíduo a construir o sentido da própria vida sem medi-lo pela ontologia. Trata-se de chegar ao sentido construído e aberto ao transcendente que chega pelo outro e em meio aos limites existenciais e da cultura.

O último dos ensaios, dividido em cinco itens é denominado Sem identidade. Nele o autor recorda o desafio humano de construir o sentido.

O grande problema é que a construção do sentido não atinge o significado real da liberdade e introduz o problema da verdade. A questão do sentido inverte a busca pela verdade, “não é mais o homem, por vocação própria, que procura a verdade, é a verdade que suscita e possui o homem.” (p. 111).

No item seguinte o autor examina a contribuição de Martin Heidegger para o assunto. Diz que o filósofo alemão associa a noção de subjetividade transcendental da fenomenologia com a metafísica. Assim, o esquecimento do ser apregoado por Heidegger significa que o homem “enclausura-se como uma mônada; ele se faz alma, consciência, vida psíquica” (p. 114). É preciso superar tal forma do pensamento para entender a filosofia de Heidegger e acompanhando a destruição da subjetividade compreender o motivo pelo qual “o poema ou a obra de arte guarda o sistema, deixa de ser a essência do ser, como o pastor guarda seu rebanho.” (p. 114).

O item seguinte examina como se dá a abertura da consciência às coisas e outros eus. Lévinas entende que a abertura ao ser significa uma forma de considerar a consciência do ser e do contato com o outro.

É nestas aberturas que o sujeito expõe a fragilidade da sua pele exposta à dor e à ofensa. Trata-se de fraqueza “que todo ser em sua altivez natural teria vergonha de confessar.” (p. 119), especialmente quando é agredido e recebe bofetadas. É a forma como se refere ao sofrimento recebido, lembrando que se expor ao ultraje está além do razoável para o homem comum.

No item IV, Lévinas trata do processo de esquecimento do ser sugerido por Martin Heidegger na releitura que fez do pensamento platônico.

No último item menciona as aspirações da juventude de mudar o mundo dizendo que elas dispensam reflexão sobre a subjetividade. Reporta-se ao movimento de 1968 na França como a procura da autenticidade e o vê como espaço de aproximação com o outro e expressão da humanidade do homem.

O livro de Lévinas é especialmente importante por recolocar a questão do humanismo como assunto central da meditação nos tempos de diálogo entre culturas. Ele justifica o humanismo na descoberta do outro que surge para o sujeito como um infinito diante do qual sua consciência se amplia e se depara com o significado da experiência intersubjetiva.

Espera, desta forma, superar a justificativa do valor do homem pela falta de justificação convincente da excelência ocidental. Falta-lhe, contudo, perceber que, enxergar o outro como sendo entrada para o infinito só significa dignidade pelo reconhecimento de seu valor na cultura ocidental ou numa crença religiosa. O reconhecimento do outro como valor só se torna a base de um humanismo se tivermos a cultura ocidental como referência ou admitirmos a crença religiosa como elemento universal.

José Maurício de Carvalho – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Del Rei (UFSJ). E-mail:: mauricio@ufsj.edu.br.

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Teoria da História (v. 4) Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história | José D’Assunção Barros

BARROS, José d’Assunção. Teoria da História, vol. IV. Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2011, 447p. Resenha de: MARQUES, Juliana Bastos. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 35, p. 485-489, jul. 2012.

Paul McCartney, reconhecido como um dos compositores populares mais prolíficos e talentosos do mundo contemporâneo, costuma citar com frequência que nunca quis aprender teoria musical, para que o conhecimento formal não o prejudicasse ao compor.

Essa “ingenuidade teórica” também constitui mais em benefício do que em um eventual empecilho para o leitor na compreensão do texto do professor José d’Assunção Barros, em sua ousada proposta de empregar a teoria musical para construir uma metáfora de compreensão da historiografia.

O volume aqui resenhado faz parte de uma série dedicada à apresentação e discussão de temas fundamentais sobre Teoria da História, sendo precedido por um primeiro volume que trata de conceitos mais abstratos e gerais, além de dois outros com uma análise da história da historiografia a partir do seu estabelecimento como disciplina profissional no século XIX. Ainda não publicados, mas já anunciados, seguem outros dois volumes sobre as tendências mais recentes formuladas no séc. XX. Nesse sentido, o volume IV mostra-se como um interlúdio (a alusão ao termo é intencional) dentro da proposta da coleção, retomando a apresentação de alguns autores já analisados em outros volumes (Ranke, Marx, Benjamin) e introduzindo capítulos relativos ao pensamento de Droysen, Weber, Ricoeur e Koselleck. A proposta é utilizar a metáfora do acorde musical para classificar e explicar as infl uências intelectuais durante a carreira acadêmica dos autores citados, o que se apresenta também como uma proposta geral para eventuais estudos seguintes com outros autores que pensam o fazer historiográfico (como se vê, não necessariamente historiadores). Coloca-se para avaliação, portanto, uma questão primordial: se e como a metáfora funciona e o quanto é útil para o que se propõe.

O autor explica, no primeiro capítulo, de forma simples, os conceitos que utiliza e o desconhecimento prévio de teoria musical por parte do leitor não deverá trazer grandes dilemas para a compreensão da metáfora. Logo de início, explica-se o que é um acorde musical: “[…] um conjunto de notas musicais que soam juntas e assim produzem uma sonoridade compósita” (p. 15). Assim, classificar um autor dentro da proposta significa traçar essas “notas” que comporiam o acorde, que podem ser tanto correntes teóricas específicas que formariam sua identidade teórica e/ou historiográfica (por exemplo, a Hermenêutica em Ricoeur), como também infl uências pessoais (a religiosidade em Droysen) ou técnicas metodológicas (o “comparativismo” em Max Weber). O único autor dentre os analisados que parece se encaixar mais diretamente na compilação de um acorde que o defina é Ranke, que Barros classifica como “monódico”, por causa da constância das infl uências nele detectáveis durante toda a sua vida – assim, o acorde de Ranke seria constituído pelas “notas” Historicismo ou crítica documental como “nota fundamental”, estilo, Fichte, religiosidade e nacionalismo (o idealismo hegeliano apresentar-se-ia como uma “antinota”, termo cuja correspondência musical me escapa). Todos os outros autores, em maior ou menor grau, têm complexidades classificatórias tais que parece impossível construir apenas um único acorde que os abarque, dilema que Barros resolve com o fato de que diferentes acordes consonantes entre si podem ser construídos no tempo de acordo com as mudanças inerentes às trajetórias intelectuais analisadas.

O texto não procura uma rigidez classificatória, como pode parecer à primeira vista, mas o resultado disso nos diferentes capítulos é irregular. As análises de Ricoeur e Koselleck, talvez não por coincidência os autores mais recentes, beneficiam-se de uma atenção maior às ideias originais dos próprios autores, em especial no segundo caso. Dado que o texto de Barros é deliberadamente claro e fl uente (como ele anuncia no primeiro livro), tais capítulos servem como introduções bastante úteis a questões tais como o embate hermenêutico entre a subjetividade e a objetividade em Ricoeur, ou as refl exões sobre o tempo e o progresso em Koselleck – por vezes, o texto lembra claramente o formato de uma aula.

Para o eventual historiador que também conheça teoria musical, no entanto, a metáfora parece incompleta, às vezes afl itiva no que lhe falta. Um acorde musical jamais existe sozinho, sendo apenas a expressão mais sucinta da harmonia determinada dentro de uma tonalidade (dó maior, mi bemol menor, assim por diante), quando não ao menos em relação a uma pauta e clave que o localize sonoramente. O acorde de, digamos, fá maior, é definido primariamente como o conjunto da tônica (nota principal, o próprio fá maior) e as notas que soam harmonicamente mais próximas a ela dentro da série harmônica, no caso a terceira e a quinta a partir da tônica dentro da escala, portanto lá e dó. A rigor, qualquer outra nota poderá fazer parte do acorde dentro da tonalidade de fá maior, considerada sua relação harmônica com a nota principal. Sendo assim, é possível notar que a lógica fundamental de um acorde é a própria relação entre as notas (os intervalos entre a tônica e quaisquer outras notas que o acorde forme), determinada pela tonalidade como um conjunto – isso sem mencionar outras formas musicais que não o sistema tonal, também possíveis. Ora, essa complexidade está ausente da metáfora de Barros, que usa o acorde apenas como um empilhamento de “notas” em cima de uma nota fundamental (nunca chamada de tônica no texto), sem relacioná-las entre si e à suposta tonalidade que as constitui.

Por exemplo, se supomos que a tônica de Max Weber seja o Historicismo (p. 131) – aliás, por que a tônica de um autor não pode ser o próprio autor? Ou o autor seria a tonalidade como um todo? –, qual seria a relação (tecnicamente falando, o “intervalo”) da tônica com as “notas” filosofia neokantiana (sua “nota de topo”, termo que também me escapa: seria uma sétima maior ou simplesmente a nota mais aguda?), ou com o já citado “comparativismo”? Uma forte quinta justa ou uma sutil sexta maior? Para a teoria musical, essas diferenças são absolutamente determinantes quando se constrói um acorde. Como a “tríade temática fundamental” da política, economia e religiosidade de Weber poderiam se constituir em uma só “nota” (p. 140)? E os “harmônicos ocultos” de Marx e Nietzsche, como se relacionam com o acorde? Não seria o caso de se estabelecer uma sequência harmônica dos acordes de autores em constante mudança como Ricoeur ou Foucault, como em um coral de Bach, ou também uma eventual melodia das obras do autor também seria expressiva dentro da metáfora? A própria ideia de melodia parece quase desimportante dentro do conjunto da metáfora, até que surge, no capítulo sobre Koselleck, quando Barros propõe que o “[…] devir histórico (ou a sensibilidade humana diante desse devir) apresenta na verdade uma natureza musical, impulsionando-se a partir de melodias que se entrelaçam e que se contraponteiam, umas convergindo com outras, outras em relação de divergência” (p. 294). A melodia significaria então o movimento histórico humano no meio de onde se tocam os acordes de cada pensador? É uma pena que Barros não desenvolva essa ideia em todo o texto, pois ela me parece rica em possibilidades, bastante coerente e de uma poesia encantadora.

Acredito que o autor esteja plenamente consciente dessas questões, dado que também tem sólida formação musical. Minha impressão sobre qual seria o motivo dessas relações fundamentais não serem explicitadas na metáfora é que requereriam um trabalho exponencialmente mais complexo e demandariam um conhecimento musical bem mais avançado do leitor para compreender todas as relações harmônicas realmente embutidas na metáfora do acorde musical. Nesse sentido, entendo a proposta de Barros até mesmo como um convite, ainda que não explicitado, para que essas nuan ces musicais sejam futuramente analisadas, por historiadores ou por músicos. Embora a princípio isso pareça um esforço de classificação direto demais, a teoria musical comporta, nos dias de hoje, uma liberdade muito maior de relações sonoras do que a harmonia tradicional de Bach, assim como é evidente que não se pode classificar as influências e a trajetória intelectual de um determinado autor dentro da história do pensamento histórico também em rígidos paradigmas ou etiquetas.

Sendo assim, o livro tem o mérito de ultrapassar em muito seu caráter didático, que em si já é bastante louvável, dada a clareza da explicação providenciada pelo autor sobre as trajetórias intelectuais dos autores analisados. Como um trabalho experimental, no entanto, é o primeiro passo de muitos a serem dados no sentido da interdisciplinaridade profunda que é sim possível entre História e Música, pois são ambas realizações eminentemente humanas que se constroem no tempo e têm historicidades ligadas a influências e a regras, transcendendo-as em busca de ordenações originais para representar o mundo.

Juliana Bastos MarquesProfessora Adjunta. UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Pós-Doutorado em História pela USP (Universidade de São Paulo). Email: leirunirio@gmail.com. Endereço: Rua Dr. Júlio Otoni, 278 fundos. Bairro Santa Teresa. Rio de Janeiro/RJ. CEP 20241-400.

Currículo, território em disputa – ARROYO (ES)

ARROYO, Miguel. Currículo, território em disputa. Petrópolis: vozes, 2011. 374p. Resenha de: FAFVACHO, André Picanço. O que há de novo nas disputas curriculares? Educação & Sociedade, Campinas, v.33 n.120  jul./set. 2012.

A concepção de currículo como campo de disputa não é nova, pois veio à tona, internacionalmente, nos anos de 1970 e, no Brasil, nos anos de 1980. Revelou-se, desde então, um importante balizador para a análise das relações de poder que envolvem os currículos. O próprio professor Miguel Arroyo contribuiu fortemente para o debate dessa época.

Se o referido tema não é novo, qual é o acréscimo que traz o último livro de Arroyo, Currículo, território em disputa? O autor destaca que o currículo não é apenas território de disputas teóricas. Quem disputa vez nos currículos são os sujeitos da ação educativa: os docentes-educadores e os alunos-educandos. Os professores e alunos não se pensam apenas como ensinantes e aprendizes dos conhecimentos dos currículos, mas exigem ser reconhecidos como sujeitos de experiências sociais e de saberes que requerem ter vez no território dos currículos.

Arroyo aponta ainda duas novidades: 1) o currículo oficial está cada vez mais pressionado pelos coletivos populares, que exigem o direito de ver suas narrativas também pronunciadas pela escola; 2) entretanto, esses coletivos, por sua vez, não lutam mais pela escolarização em si; aos poucos passaram a entender que o processo de sua afirmação como sujeitos de direitos não se dá exclusivamente pela escola (promessa apregoada por muito tempo). Agora, a luta é por pertencimento social amplo, por acesso aos bens materiais e culturais, simbólicos e memoriais, na diversidade de espaços sociais, onde o direito à escola adquire outra relevância. Assim, os coletivos populares, embalados por um amplo movimento de afirmação, inverteram a antiga lógica: articulam o seu direito à escola à conquista e ocupação de outros espaços e, com isso, pressionam o currículo oficial para incorporar o resultado de suas lutas.

Isso não significa que o currículo oficial perdeu sua força controladora, mas sim que algo realmente forte inaugurou-se: a possibilidade de que as histórias-memórias dos diversos sujeitos sejam contadas, ainda que por meio de outras linguagens. Assim, não se trata de uma vitória final dos coletivos populares sobre o Estado, mas de uma nova estratégia de luta que tem alterado o lugar da escolarização na visão desses coletivos, e também na visão da academia, que vendia a ideia de que a escolarização retiraria os brasileiros da subcidadania. Também não se trata de uma prática completamente difundida e consolidada entre os professores, mas apenas de um desenho alternativo de currículo onde os saberes da docência tenham vez.

Obviamente, a escola continua importante para esses sujeitos, mas os saberes, as conquistas, as experiências e tudo mais que as novas lutas são capazes de produzir podem, estrategicamente, se converter em prática curricular, em conteúdo político, em ato a ser valorizado dentro da escola. Tal situação tem ameaçado fortemente o currículo oficial, uma vez que se vê brotar no seu interior algo maior que ele mesmo: a inesperada ação dos movimentos sociais que adentra os processos de escolarização por outra via: a do acesso pelo direito. Isso justifica a forte reação estatal: Parâmetros Curriculares Nacionais, Provinha Brasil, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Diretrizes Curriculares Nacionais, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), entre outros; tudo com o intuito de reforçar o caráter conteudista e cognitivista da escolarização, bem como retirar o poder da nova estratégia, essa que une saberes, direito e escolarização.

Para ilustrar as questões apresentadas até aqui, me remeto, parte a parte, ao livro de Arroyo.

Na primeira parte, intitulada “Os professores e seus direitos a ter vez nos currículos – autorias, identidades profissionais”, Arroyo acredita que a atividade do professor não se reduz, de forma alguma, a validar o controle das instâncias superiores sobre a escola. Entretanto, essas instâncias tiveram o poder de bloquear a arte de educar dos professores, isto é, de governar o campo das possibilidades de se ensinar de outras maneiras, com práticas inventadas, criadas e imaginadas pelos professores, ou seja, bloquearam a autoria profissional do professor e seus saberes docentes. Para o autor, dois grandes momentos históricos foram responsáveis, no Brasil, por esse bloqueio: a ditadura de 1964 e as atuais políticas neoliberais; ambas produziram a secundarização da autoria docente, substituindo-a por controles de mercado e controles científicos, com o intuito de matematizar e estatistizar os resultados escolares através de modelos de competências, reduzidos ao treinamento e fórmulas descontextualizadas de metas avaliativas. Contudo, para Arroyo, a autoria docente não foi totalmente eliminada, uma vez que a arte de educar não se separa do mundo da vida, das práticas reais das pessoas, de suas mazelas, de seus desejos. Embora alguns queiram negar essa relação, não se pode desconsiderar que são os eventos sociais, culturais e políticos que convocam a docência para a ação. E é isso que desbloqueia a arte de educar ou a autoria docente.

segunda parte do livro, “Os saberes do trabalho docente disputam lugar nos currículos”, denuncia que, lamentavelmente, contra os avanços de se educar partindo das vivências humanas ou desumanas dos sujeitos, vê-se nascer, nos dias de hoje, financiada pelas reformas educacionais, a função aulista do professor. Tal fato substitui a necessária função educadora da docência – que é a própria arte de educar – pelo frio cumprimento de metas do ensino por competência e de avaliação de resultados. Isso ocorre porque as políticas públicas da educação entendem que os saberes daqueles que frequentam a escola pública são desqualificados, sem crédito, sem valor; são saberes pobres, de pobres; pretendem educar os alunos para a empregabilidade, para esse tipo de trabalho que mais desumaniza do que humaniza. Para Arroyo, infelizmente, perdemos a possibilidade de substituir esse trabalho embrutecido e embrutecedor por um trabalho cujo princípio é a transformação do homem para que ele se integre à vida, ao mundo, enfim, às práticas sociais; perdemos a oportunidade de educar a partir do trabalho cujo princípio é educativo. O trabalho como princípio educativo é, para Arroyo, o elo perdido dos saberes docentes, mas também o elo a ser encontrado.

Na terceira parte do livro, Arroyo defende a tese de que “Os sujeitos sociais e suas experiências se afirmam no território do conhecimento”, isto é, apesar de haver o impedimento às experiências sociais para se integrarem ao conhecimento considerado legítimo, os coletivos sociais mostram que os saberes têm, sim, sua origem na experiência social e não apenas na artificialidade das questões epistemológicas. Se isso for negado ou ignorado, produziremos, além de injustiça social, uma injustiça cognitiva, diz Arroyo, citando Zygmunt Baumn. Manter essa separação entre experiência social e conhecimento legítimo é sustentar a brutal hierarquização dos saberes, é desperdiçar experiências sociais, é desconsiderar que todo conhecimento tem sua origem na experiência social; é, enfim, empobrecer os currículos pela negação das experiências sociais e da sua diversidade.

Na quarta parte do livro, “As crianças, os adolescentes e os jovens abrem espaços nos currículos”, o autor apresenta duas questões potentes para esse debate. A primeira é que a pedagogia, a partir das novas vivências das crianças e jovens, foi interrogada na sua visão messiânica, romântica de criança e promotora de destinos, dando lugar a outra pedagogia capaz de (1) revelar às crianças-adolescentes suas próprias configurações na realidade, uma vez que hoje se torna cada vez mais difícil separar infância de adolescência, cabendo à pedagogia se interessar por esse “hífen” que não separa, mas une; (2) traduzir o perverso e tenso real vivido por essas infâncias, posto que elas não mais acreditam nas antigas ilusões que a pedagogia, por vezes, ainda tenta sustentar; (3) revelar às crianças-adolescentes seus direitos negados.

A segunda questão reside no embate entre as concepções inovadoras e as concepções conservadoras para a educação da infância e adolescência. Vê-se nascerem propostas cada vez mais propedêuticas, sequenciais, lineares e etapistas, enfim, propostas pobres de experiências, competindo com propostas ávidas por revelar o humano nomeado através da palavra, o que, em termos educacionais e benjaminianos, poderia ajudar a criança a saber mais de si, nomear-se, revelar-se e revelar o outro. No que concerne especificamente aos jovens, eles já sabem, e não se deixam mais enganar que serão incluídos socialmente por meio da escolarização. Já sabem que, para que essa velha promessa possa se efetivar, o lugar-escola, os tempos, os espaços, a organização e a estrutura escolar deveriam se alterar e nada se alterou. Sabem que são vistos como Outros “in-incluíveis“, ou seja, aqueles que não sabem reconhecer os esforços do poder público para a melhoria de sua educação. Mas, quais são mesmo os esforços? Os jovens resistem a conviver em um sem-lugar, isto é, resistem a habitar em um espaço que, em qualquer momento, foi para eles pensado.

Na quinta e última parte do livro, Arroyo se ocupa com “O direito a conhecimentos emergentes nos currículos”. Indigna-se com o fato de que as crianças-adolescentes “passarão anos na educação fundamental, complementarão a educação média e sairão sem saber nada ou pouco de si mesmos” (p. 262). Arroyo preconiza que saber de si é reconhecer-se vivo numa temporalidade, espacialidade e memorialidade específicas. Pode ser, também, saber-se sem-lugar e reivindicar valorizado o que foi tomado como desvalor; não apenas para ter o reconhecimento do outro, mas para ter o direito de contar a própria história, a exemplo dos coletivos afrodescendentes, indígenas e quilombolas. Pode ser, ainda, a capacidade pedagógica dos docentes de escutarem esse saber de si, auxiliando esses coletivos com novas propostas pedagógicas. Um exemplo: o tempo dos coletivos marginalizados não é o mesmo tempo da escola; o tempo deles é o aqui e agora, enquanto o da escola é o futuro. Não seria o caso de a escola praticar o tempo presente, que não é um nem outro tempo, mas o reconhecimento de como outras identidades foram parar no esquecimento, propondo que esses coletivos libertem seus saberes da condição folclórica a que foram submetidos? O que está em jogo na luta pelo saber de si mesmo é (des)romantizar a pedagogia e, portanto, os sujeitos da pedagogia: professores e alunos; acordá-los desse sono durante o qual se acredita, erroneamente, que cada um nasceu para o que é.

Para finalizar, é bom lembrar que o livro de Arroyo é rico em exemplos de didáticas de reconhecimento de sujeitos, isto é, de didáticas mais radicais e mais significativas para a docência de hoje.

Desejo a todos uma ótima leitura e que cada um possa apreciar os escritos de Arroyo a sua maneira.

André Picanço Favacho – Doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), E-mail: afavacho@uol.com.br

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Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia – FIGAL (FU)

FIGAL, G. Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia. Petrópolis: Vozes, 2007. Resenha de: FERREIRA, Iarle. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.2, p.200-202, mai./ago., 2010.

A filosofia não existe como um sistema de ideias fechado, ou como um campo teórico voltado à resolução de algum problema na vida das pessoas. Ela existe como construção do pensamento através do diálogo. Se todo diálogo implica tomada de posição dos dialogantes, então, nele há uma “oposicionalidade” constitutiva do elemento hermenêutico, que faculta o filosofar. Uma filosofia assim entendida é fenomenológica.

Essa é a compreensão a partir da qual o alemão Günter Figal nos apresenta o livro Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia. Nele, o autor, ao mesmo tempo em que trava um diálogo com a tradição, nos convida a participar da discussão, bem ao estilo da tradição hermenêutico-fenomenológica. Entre os variados pensadores cuja presença se faz notar destacam-se Parmênides, Descartes, Schleiermacher, Dilthey, Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Especialmente esses dois últimos, o que se justifica pela proximidade entre o pensamento de Figal e o desses filósofos – como o próprio subtítulo do livro, sugestivamente, indica. Entretanto, essa proximidade nem sempre é de identidade, mas de confronto.

A proposta do autor é apresentar a Oposicionalidade (Gegenständliche) como “princípio” hermenêutico e o mundo como espaço onde ela acontece. Deste modo, com o fito de perseguir o seu objetivo, o autor delineia paulatinamente sua argumentação, tendo como fio condutor a “interpretação”, conforme concebida pela tradição e por ele próprio. Isto é feito em uma estrutura na qual a argumentação se complexifica à medida que se avança na leitura, de modo que um capítulo vai conduzindo ao outro.

No primeiro capítulo, deparamo-nos com uma discussão do autor com Heidegger e Gadamer, cujo cerne é a concepção de hermenêutica. Nela, Figal se contrapõe a ambos. Acusa Heidegger de ontologizar a hermenêutica e Gadamer de ligá-la à coisa. Em ambos, afirma o autor, o que permanece em aberto é a relação entre a filosofia prática e a filosofia teórica.

O que está em questão para a filosofia é aquilo que lhe é próprio, ou seja, a busca pela compreensão do que está presente no contexto originário da filosofia, de modo a conquistá-lo (Figal, 2007, p.44). Somente assim é possível dizer a cada vez, em relação àquilo que eclode, que, nesse caso, trata-se de filosofia. Precisamos perguntar: a filosofia possui uma essência hermenêutica? Se a resposta for sim, um pensamento hermenêutico poderá se mostrar como uma possibilidade da filosofia tradicional, em oposição a uma visão retrospectiva ou destrutiva de tal filosofia.

Günter Figal apresenta diversos modelos de filosofia, apontando, a partir das conexões entre eles, o que têm de originário. Por exemplo, o que Descartes compreende como retirada para o interior de forma metódica, Heidegger entende como totalidade afetiva fundamental (Figal, 2007, p.58). Esses momentos originários da filosofia são dependentes um do outro sem que um se reduza ao outro. As duas atitudes reflexivas estão em “oposicionalidade”, ou seja, elas são duas posições opostas em diálogo uma com a outra. Nessa circunstância, para que haja interação, é necessário mediação. Em Platão, essa mediação tem o nome de Eros, através da qual há uma totalidade ligada entre si: o espaço entre homens e deuses. Eros leva aos deuses o que dizem os homens, e aos homens o que dizem os deuses.

A originalidade da filosofia é, em sua essência, mediatizada (Figal, 2007, p.65) pela linguagem, cujo movimento fornece o encontro e, ao mesmo tempo, o distanciamento ou a abertura que a deixa ser filosofia. Assim, a filosofia revela-se como uma coisa tão diferenciada quanto una (Figal, 2007, p.55). Nesse ponto, é possível responder a pergunta acima, dizendo: sim, a filosofia se faz em sua originalidade hermenêutica.

Certamente a afirmação de que a filosofia, em sua originalidade, é hermenêutica leva o autor a contornar o elemento hermenêutico. Paulatinamente, à medida que esse elemento vai aparecendo, a compreensão de uma filosofia hermenêutica vem à tona. Desta perspectiva, no primeiro momento vemos que a essência do hermenêutico é o “mediado”, sendo a forma de mediação mais conhecida a interpretação (Figal, 2007, p.66).

Interpretar é apresentar e clarificar, os dois procedimentos se copertencem. Ao apresentar, já de antemão, fala-se, isto é, comunica-se e estabelecese diálogo. Por exemplo, no diálogo com o texto, o pensamento é posto em ligação, de modo a permitir que prestemos atenção em suas possibilidades de compreensão. Por outro lado, o texto precisa ganhar validade, o que acontece se ele for desvendado, ou seja, é preciso trazê-lo à linguagem (Figal, 2007, p.84), pois, sem a interpretação, a obra não se faz presente. Nesse ponto, o que entra em questão é a compreensão.

A compreensão é um círculo que envolve os que se contrapõem, ela ocorre no encontro. Logo, o que vem ao encontro é o que se contrapõe. O que dessa forma se apresenta pede apresentação. Entretanto, o traço principal desta apresentação não é um “saber de” ou um “saber sobre”, pois o que se contrapõe tem o caráter de coisa que permanece sempre defronte.

No que diz respeito aos textos filosóficos, o que importa é partir sempre do elemento que é próprio às coisas contrapostas, ou seja, da mediação, a fim de apreendê-lo por meio de uma apresentação, isto é, daquilo que é originário em cada encontro e que possibilita o filosofar. Nesse ponto, o que acontece é a abertura do espaço hermenêutico. Por isso, o autor afirma que a “forma linguística da filosofia é uma abertura peculiar” (Figal, 2007, p.64).

O espaço hermenêutico é esse que se mostra como abertura para aquilo que está-aí-defronte. Por conseguinte, tal espaço é o mundo ao qual pertence a apresentação. O que está em questão, deste modo, é uma fenomenologia do espaço hermenêutico (p. 149). Por essa razão, o autor articula a compreensão desse espaço considerando três dimensões da sua constituição: liberdade, linguagem e tempo.

A liberdade é a condição de possibilidades de concretização da filosofia, no sentido da efetivação da apresentação do que se contrapõe. Trata-se de uma apresentação somente possível por meio da linguagem, a qual não funciona como uma chave interpretativa, mas, sim, como acessibilidade ao próprio mundo, tendo este a sua legibilidade confirmada nas coisas contrapostas. Assim, um texto filosófico, no modo como ele se dá à linguagem, coloca a linguagem à prova uma vez mais, de modo a repetir tal provação a cada vez que se der encontro. Assim, somos levados a considerar o tempo como constitutivo do mundo.

Oposicionalidade – o elemento hermenêutico da filosofia é um livro denso, rico e inovador. Nele encontramos uma concepção de hermenêutica própria, que, por si só, nos garante o prazer da leitura. Ademais, tal concepção, além de tornar mais compreensíveis pontos de vista clássicos sobre o tema discutido, estimula as discussões sobre o sentido da própria filosofia. Nesse contexto, tal filosofia, que se pratica no diálogo aberto e sempre em construção, jamais poderá preconizar sua própria morte como diz o autor quando afirma que “de uma maneira muito melhor do que muitos conceitos modernos, os conceitos clássicos ainda nos suportam com solidez, quando sabemos empregá-los de maneira livre e em relação às coisas mesmas” (Figal, 2007, p.14).

No livro aqui resenhado, a fertilidade advinda do confrontar-se com a tradição é tanto mais abundante quanto mais contornos o autor confere aos seus parceiros de diálogo, o que é feito através de uma apresentação livre, cuja liberdade confere à linguagem um bailar sutil e denso, que particulariza sua posição de “apresentador” dos conceitos, concepções e categorias que lhe interessam, e, por conseguinte, demarcando sua própria perspectiva filosófica no debate.

Além do mais, se em toda atividade hermenêutica nós mesmos estamos em jogo, conforme um clássico preceito dessa filosofia, segundo o qual há um círculo (hermenêutico) que envolve o todo dessa atividade, então é possível afirmar que Oposicionalidade: o elemento hermenêutico e a filosofia é um livro que se oferece como possibilidade de recuperação ou reatualização de pressupostos. Pois, na aproximação com a temática e com os argumentos que o autor oferece, somos convidados a cotejar nossos próprios pressupostos. Neste ponto somos nós mesmos em nossa liberdade e temporalidade que estamos em jogo, na medida em que essa aproximação deriva de um passado e nos lança em um futuro. Afinal, compreendemos a partir de pressupostos, razão pela qual o diálogo com a tradição é fundamental, não como submissão, mas como ligação, significação ou mesmo ressignificação desses pressupostos. Estamos em jogo, também, na medida em que a atividade hermenêutica ocorre como possibilidade, como poder-ser, urdido pela compreensão e pelo que dela decorre (Figal, 2007, p.114).

Portanto, fazendo jus à proposta do livro, de que a filosofia é um campo dialógico destinado a construção do pensamento, o texto de Güntel Figal tem o mérito de nos proporcionar, ele mesmo, uma dessas oportunidades de encontro que somente um texto maduro pode fazer, ou seja, ofertar-se ao diálogo e não apenas aos especialistas da área, a qualquer um que tenha interesse em filosofia, pois temos aqui uma articulação de linguagem que não transporta uma férrea estrutura argumentativa, mas deixa-se ser na relação com o leitor, sem, contudo perder a identidade.

Iarle Ferreira – UNISINOS. São Leopoldo, RS, Brasil. E-mail: iarleferreira@hotmail.com

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As relações internacionais da Ásia e da África | Paulo Fagundes Vizentini

O mundo atual apresenta mais de 190 países espalhados pelo globo cada qual, com maior ou menor intensidade, mantendo relações com outros Estados e agentes. Acostumamos-nos, todavia, seja pela origem de nossa disciplina ou por pertencermos à América, a focarmos grande parte de nossos estudos das relações internacionais ao que ocorre basicamente no lado não oriental da antiga “cortina de ferro”, passando da Europa aos EUA, até chegarmos à América do Sul.

Entretanto, esse tipo de enfoque já não satisfaz ao profissional que se preocupa em compreender a recente dinâmica internacional. A Ásia, juntamente com os países do Oriente Médio e África, estão cada vez mais presentes nos espaços jornalísticos e é preciso entender o processo pelo qual essas regiões chegaram a este lugar de destaque, para que se produzam análises mais consistentes. E esse é o vácuo na literatura que o livro Relações Internacionais da Ásia e da África vem a preencher. Leia Mais

Cidade e História | José d’Assunção Barros

O livro de Assunção Barros propõe-se, logo no “Prefácio”, ser uma recolha e apresentação das mais importantes contribuições para o estudo da cidade.

O que significa, contudo, tentar sumariar em apenas cento e onze páginas, excetuando-se aquelas da bibliografia, dois séculos de reflexão sobre o urbanismo e a vida citadina? Há que referir, em primeiro lugar, a necessária seleção das obras que serão comentadas, escolha esta que não se pode dizer completamente objetiva. Contudo, para além da seleção, há o tópico mais relevante dos usos que se fará do que se selecionou. É aqui, cremos, que o livro de Assunção Barros evidencia sua fraqueza, pois seria preciso, para que o livro tivesse efetiva consistência, que as categorias que nos são apresentadas em poucas linhas fossem criticadas, contrariamente ao hábito do autor que as expõe, de forma descritiva, como se todas servissem para a produção do que ele denomina uma pesquisa “multifatorial”. Leia Mais

As Garras do Condor. Como as ditaduras militares da Argentina/ do Chile/ do Uruguai/ do Brasil/ da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários políticos | Nilson Cesar Mariano

Uma exposição da covardia da ditadura, assim deve ser caracterizado o livro-reportagem de Mariano, jornalista do jornal Zero Hora. O livro é uma obra advinda de sua pesquisa sobre a cooperação entre as ditaduras militares do Cone Sul, desde 1993. O jornalista foi honrado com os principais prêmios jornalísticos, como o Esso e o Vladimir Herzog. O autor pretende informar que a perseguição no período das ditaduras do Cone Sul, entre 1954 a 1989, ultrapassou fronteiras, porque as ditaduras cooperaram entre si para prender os opositores de seus regimes, sem respeitar qualquer tratado de proteção a refugiados e órgãos internacionais, como o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Dentre a cooperação, destacou-se a Operação Condor que foi idealizada pelo General Contreras, do Chile, tendo entrado em vigor em 1975.

O autor expõe fatos que fazem com que o leitor veja a ditadura nos países do Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) de forma bem mais crítica. É bastante conhecida a perseguição de opositores dos militares no período, entretanto o tratamento desumano a que essas pessoas foram submetidas não é muito mencionado. Para as relações internacionais, é demonstrado o fim das fronteiras geográficas e a ascensão das fronteiras ideológicas, algo que foi constante na Guerra Fria, mas pouco discutido na esfera sul-americana. A teoria das fronteiras ideológicas consiste na idéia de que para se alcançar objetivos não houve barreiras fronteiriças entre ditaduras, de forma que elas se uniram para combater seu inimigo comum, os comunistas. Leia Mais

Introdução às Relações Internacionais: temas, atores e visões | Cristina Soreanu Pecequilo

O número de cursos de Relações Internacionais no Brasil, tanto de graduação quanto de pós-graduação, cresceu rapidamente nos últimos anos. A ampliação da área acadêmica das Relações Internacionais do Brasil reflete a necessidade de formar profissionais habilitados a lidar com questões internacionais, uma demanda tanto da iniciativa privada quanto de órgãos públicos nas mais diversas esferas. Entretanto, como em qualquer área que cresce rapidamente, existem muitos desequilíbrios e carências, verificados principalmente no ensino de graduação em Relações Internacionais.

O livro da Profª Cristina Pecequilo dedica-se a fazer uma introdução às Relações Internacionais, partindo de experiências concretas de ensino e pesquisa na área, durante as quais a autora se deparou, por parte de alunos e professores, com um grande conjunto de dúvidas e dificuldades. Tal conjunto era composto de indagações que englobavam temas como o ponto de partida do estudo das Relações Internacionais, as questões sobre o exercício da profissão e a bibliografia adequada para o ensino. Do ponto de vista teórico, a autora busca mapear os principais conceitos, fundamentos e teorias das Relações Internacionais, indicando as várias possibilidades analíticas de interpretação. Leia Mais

Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros | Antonio L. Furtado

Com o convidativo título de Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros, mais uma vez, Antonio Furtado apresenta ao público brasileiro outra tradução [1] das narrativas da “Matéria da Bretanha”. As estórias do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda que, nos séculos XII e XIII encantaram tanto a nobreza, pois naquelas narrativas estavam presentes os ideais mais elevados e os modos e maneiras que esta mesma nobreza vivenciava e, também enchia os ouvidos e o imaginário dos menos abastados que, talvez, almejassem serem súditos de um rei justo como Artur e protegidos por cavaleiros como Lancelot e Gawaine.

Essas “aventuras” empreendidas tanto próprio Artur como pelos seus cavaleiros estão impregnadas pelo maravilhoso que, não são estranhos às personagens, pois fazem parte do cotidiano, como nos explica Todorov no livro As Estruturas Narrativas, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor implícito” (TODOROV, 1979: 160). Muitas personagens das narrativas são conduzidas para situações onde se deparam com seres sobrenaturais, como gigantes, tema da primeira “aventura”, onde o próprio rei Artur enfrenta um gigante monstruosos na narrativa “O gigante do Monte Saint Michel”:

– Irei à frente, disse Artur, para combater o gigante. Vireis atrás de mim, e atentai para que nenhum de vós interfira enquanto eu mesmo puder valer, já que de outra ajuda não necessito. Pareceria covardia vir outro, além de mim, a combatê-lo. Socorrei-me, porém se perceberdes minha necessidade. (FURTADO, 2003: 70).

Artur parte sozinho para enfrentar o gigante e deixa claro os seus companheiros, que devem socorrê-lo só em caso de necessidade. Vemos aqui a representação do rei que está sempre à frente dos seus nas batalhas e faz questão de que a lei seja também aplicada a ele, como nos mostra John Boorman no seu filme Excalibur, de 1980, na cena em que a rainha Guinevere é acusada de adultério por um cavaleiro e implora ao seu marido e rei para que não seja julgada, mas Artur, responde que a lei deve ser aplicada também ao rei, caso isso não ocorra, não há justiça. Artur deve marchar à frente de seus cavaleiros na caça das aventuras.

Em “O juramento ambíguo de Isolda”, Artur e mais alguns cavaleiros, como seu sobrinho Gawaine (que nos apresentado como Galvão), “o mais cortês de todos os homens”, são chamados para julgarem Isolda esposa do rei Marcos, Duque da Cornualha e tio de Tristão, que foi acusada de adultério por três barões da Corte da Cornualha.

O rei Artur é convocado por Isolda por ser conhecido como o mais justo e nobre dos reis e por repudiar todo e qualquer ato de vilania. E, como Artur e seus cavaleiros representam os ideais da cortesia e da honra, vemos nas palavras de Galvão todo o asco que o ato dos barões contra Isolda lhe causa:

– Tio, se tenho permissão, a justificação que está combinada terminará mal para os três felões. O mais dissimulado é Ganelon: conheço-o bem e ele a mim. Já o derrubei em um lamaçal, durante uma justa forte e encarniçada. Se pego de novo, por São Richier, Tristão não precisará mais vir. Se puder agarrá-lo com as mãos, farei nele bastante estrago e o enforcarei no alto de um morro. (FURTADO, 2003: 160).

Os cavaleiros não hesitam em atender o apelo de uma donzela ou mesmo de uma rainha que esteja em perigo, pois são estas as oportunidades que esses homens de armas e de cortesia têm para fazerem valer seu juramento de defenderem as mulheres e os mais fracos, partirem em busca de aventuras e, talvez, conseguirem o amor da mulher que necessita de socorro.

As narrativas que têm como personagem principal Artur ou outro cavaleiro, fluem de maneira a cativar o leitor, com se este estivesse envolvido pela voz dos trovadores que, habilmente “encantavam” os homens e mulheres dos séculos XII e XIII quando apresentavam as aventuras e, mais ainda, os ideais que essas aventuras e as personagens representavam.

A leitura de Aventuras proporciona o resgate da ambientação, das falas das personagens e, principalmente, das suas atitudes, sejam elas de indignação perante a injustiça – como a de Galvão – ou de bravura e até de desolamento. As personagens arturianas estão vivas e, nas páginas do livro de Furtado é possível “viajar” ao lado de Galvão, Lancelot e Percival; seja na busca do Santo Graal ou no salvamento de uma donzela.

A tradução primorosa do francês antigo onde o estilo, a linguagem e o conteúdo mantiveram-se fiéis aos originais como o próprio autor afirma na Introdução da obra é um convite a mais – tanto aos estudiosos e pesquisadores da Idade Média, como aos leitores em geral – para que se descubra o mundo arturiano e da Matéria da Bretanha.

Aventurar-se pelas páginas dessa obra é como um mergulho no universo mágico do mito arturiano e um eterno encantar-se com as estórias do “rei que não morreu, apenas dorme e, em breve, retornará…”

Nota

1. Em 2001 foi publicada pela Editora Vozes a tradução dos Lais de Maria de França. Tradução de Antonio Furtado e prefácio de Marina Colassanti.

Luciana de Campos – Doutoranda em Letras UNESP/São José do Rio Preto. E-mail: fadacelta@yahoo.com.br


FURTADO, Antonio L. (Organização e tradução). Aventuras da Távola Redonda: estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. Prefácio de Gilberto Mendonça Teles. Petrópolis- Rio de Janeiro: Vozes, 2003. Resenha de: CAMPOS, Luciana de. Cavaleiros da Aventura. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.2, p. 62-63, 2003. Acessar publicação original [DR]

Argentinos e brasileiros: encontros, imagens e estereótipos | Alejandro Frigerio e Gustavo Ribeiro Lins

Revista Brasileira de Política Internacional tem informado seus leitores, nos últimos anos, acerca da volumosa literatura lançada pelo mercado editorial do Mercosul sob a forma de estudos coletivos empreendidos, sobretudo, por brasileiros e argentinos. Esses estudos fizeram avançar o conhecimento do outro, constituindo contribuição importante da academia aos tomadores de decisão no âmbito das relações bilaterais e do processo de integração.

Dois renomados acadêmicos, um argentino, Alejandro Frigerio, e outro brasileiro, Gustavo Lins Ribeiro, inscrevem-se nessa linhagem de lideranças intelectuais capazes de compor grupos mercosulinos de estudo e nos brindam com uma análise original de interações concretas, revelando aspectos antropológicos da convivência dos povos do Cone Sul. Leia Mais

Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio – PETRAS; VELTMEYER (RBH)

PETRAS, James; VELTMEYER Henry. Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio. Petrópolis: Vozes, 2000. 268 pp. Resenha de: RAMPINELLI, Waldir José. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.21, n.40, 2001.

Se em meados dos anos 80 muito impacto causou à sociedade estadunidense o livro de Paul Kennedy Ascensão e queda das grandes potências, com certeza maior apreensão trará, hoje, para as comunidades organizadas da América Latina, o trabalho de James Petras e Henry Veltmeyer A hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio. Kennedy defendia a tese de que o poderio de Washington estava em decadência devido a uma “excessiva extensão imperial”. Isto é, a soma total dos interesses e das obrigações dos Estados Unidos no mundo se tornara muito maior que a capacidade que o país apresentava de defendê-los simultaneamente. Assim sendo, houve um aumento desproporcional entre tais interesses e obrigações e o seu crescimento econômico, empurrando-o obrigatoriamente para o descenso. Cabe lembrar, diz o autor, que essas foram as causas da queda de grandes impérios, como o espanhol e o britânico.

Mas os autores, ao contrário, demonstram como o imperialismo estadunidense – e também o europeu – ressurge com muita força neste limiar de milênio. A melhor explicação para a prosperidade das economias norte-americana e européia e a crise do Terceiro Mundo, segundo os autores, encontra-se na teoria do imperialismo, que focaliza o “Estado-nação” imperial como o centro de poder e tomada de decisão, e também como beneficiário de relações desiguais. Enquanto ocorrem melhoras de alguns indicadores macroeconômicos em determinados países pobres, os macrossociais caem vertiginosamente para as classes assalariadas. Atualmente, na América Latina, apenas entre 15% e 20% de sua população desfrutam de um estilo de vida de “Primeiro Mundo”.

A obra também analisa o uso irrestrito do poder militar pelos Estados Unidos para impor sua hegemonia, bem como a investida euro-americana contra toda tentativa de países do Terceiro Mundo de limitar sociopoliticamente a expansão empresarial multinacional.

O bombardeio da Iugoslávia pela OTAN/EUA, os ataques aéreos ao Iraque, o lançamento de mísseis contra a Somália e o Afeganistão, a ampliação do grupo de membros da OTAN para incluir países que limitam com a Rússia, a incorporação na OTAN de 23 novos integrantes como associados na paz, a incontestada hegemonia dos EUA sobre a Europa Ocidental, exercida mediante a OTAN, são sinais de crescente militarização e exercício unilateral do poder de polícia mundial pelos EUA. Este poder imperial ressurgente está intimamente relacionado com o formidável crescimento do domínio econômico norte-americano nos anos 90.1

Diante disso, conclui que há um governo global a partir de uma nova ordem mundial centrada em Washington e Wall Sreet, enquanto potências européias e asiáticas se subordinam a instituições militares e econômico-financeiras dominadas pelos EUA. Por isso, para uma classe capitalista mundial, especialmente a estadunidense, a década que passou foi sem dúvida a melhor de todo o século, em termos de acumulação. E conclui que está em marcha para todo o Terceiro Mundo um novo projeto de colonização. A Lei Helms-Burton e o depósito feito direto ao Tesouro dos Estados Unidos pelos compradores internacionais do petróleo mexicano são dois exemplos deste processo.

O livro está dividido em três partes muito concatenadas: Parte I: A economia do imperialismo; Parte II: Estratégia e ideologia do imperialismo; Parte III: Política do imperialismo.

Na primeira parte os autores analisam como o capitalismo, nas duas últimas décadas, tem causado tantos estragos à América Latina e, ao mesmo tempo, um período de prosperidade jamais visto para os bancos e corporações multinacionais estadunidenses. É o capitalismo chegando a seu estágio superior: o imperialismo. Esta nova ordem imperial se ergue sobre cinco pilares básicos: a) pagamentos de juros da dívida externa, b) maciças transferências de lucros provenientes de investimentos diretos e de ações e títulos, c) aquisição de empresas públicas; d) rendimentos provenientes de royalties; e e) balanços de contas correntes favoráveis.

E assim desmistificado o conceito de globalização apresentado como único e irreversível, e afirma que desde o início (século XVI) ela esteve associada ao imperialismo assim como a uma configuração específica de classe. Analisa igualmente a política agrícola estadunidense para a América Latina como uma estratégia de venda de máquinas e de insumos básicos produzidos por suas multinacionais bem como uma política agro-exportadora.

Na segunda parte são trabalhados os mecanismos ideológicos utilizados pelo império estadunidense para dominar o Terceiro Mundo – sem rebeliões –, que sofre o efeito do “ajuste estrutural”. Aqui desempenha papel relevante o Banco Mundial. O Estado imperial também se utiliza de outras vias, tais como as políticas de combate ao narcotráfico na América Latina, as estratégias da “cooperação para o desenvolvimento”, a política utilizada pela direita e, finalmente, o papel das ONGs como subsidiárias das políticas imperiais. Neste capítulo, o autor faz uma crítica muito pertinaz a essas “organizações governamentais” que, com raríssimas exceções, estão a serviço da implementação das políticas neoliberais. E distingue, com muita clareza, o que é solidariedade para um onguista e para um marxista.

A terceira parte é dedicada a temas mais especificamente políticos, tais como a democracia imperialista, a globalização e a cidadania, bem como a revolução socialista e a globalização. Descreve, por exemplo, como os regimes populares, democraticamente eleitos, foram derrubados pela classe capitalista ou por uma potência hegemônica simplesmente porque tentaram transformar ou reformar o sistema de relações de propriedade existente.

À pergunta reforma ou revolução? para enfrentar todos estes problemas gerados por uma classe capitalista internacional que tem nas elites de cada país do Terceiro Mundo os seus mais fiéis colaboradores, os autores respondem que a reforma não tem dado conta de resolver tais problemas, cabendo, sim, à revolução as grandes mudanças estruturais de nosso continente. E, ato seguido, analisa alguns exemplos revolucionários e suas conquistas, bem como os movimentos sociais radicais que começam a se fortalecer cada vez mais em toda a região.

Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio é um livro polêmico, contundente e sem meias palavras. Pela força de sua argumentação e de seus dados, merece ser lido e estudado.

Notas

1 PETRAS, James & VELTMEYER Henry. Hegemonia dos Estados Unidos no novo milênio. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 15.

Waldir José Rampinelli – Universidade Federal de Santa Catarina.

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Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. | Ivone Gebara

Quero em primeiro lugar saudar Ivone Gebara por sua coragem de Romper o Silêncio sobre a história social das mulheres e, sobretudo, destacar a inovação de uma teóloga mulher que se contrapõe de forma contundente às injustiças e às desigualdades. Quero destacar, sobretudo, o papel político desta obra.

Ao situar as mulheres no mundo da história da teologia, a autora estabelece uma relação fundamental entre a teologia e a vida social, na medida em que a teologia reflete as contradições do mundo social, onde a malignidade, muitas vezes, aparece, como coloca Gebara, como destino, desígnio de Deus, ou castigo pelos pecados ocultos, ou ainda, pelos pecados não purgados.

A fenomenologia do mal feminino aparece na dialética das malignidades identificadas pela autora como quatro formas do mal: o mal de não ter, não poder, não saber, não valer. Estes males atingem as mulheres e se manifestam com maior ou menor intensidade de acordo com suas inserções sociais.

O feminino como mal de não ter. Como satisfazer às suas necessidades e, sobretudo, efetivar as atividades de produção e reprodução da vida; como gerar e criar os filhos e filhas, administrar a vida doméstica e familiar em toda sua complexidade, papéis estes designados às mulheres. Como diz Gebara: “A vida das mulheres parece estar ligada a este aspecto primordial ou primário da manutenção da vida. Por conseguinte, o mal de não ter ou a falta do essencial para viver as atinge de modo particular”(p. 49).

O feminino como mal do não poder. Representado através da experiência de Violeta Parra, (p.60) que vivencia o seu não poder ao se filiar a um partido político de esquerda para participar do movimento de libertação do seu país e, paradoxalmente, vivencia sua luta pela liberdade às custas de sua própria liberdade. Isto nos remete a refletir sobre a saída das mulheres do mundo privado (do doméstico) para o mundo público (da política) que, no caso de Violeta Parra e de grande parte das mulheres que fazem este percurso via partidos políticos ou movimentos sociais, não experimentam uma mudança significativa no exercício dos papéis designados a elas, o que faz com que passem a exercer nesses novos espaços as mesmas atividades caracterizadas como femininas – de organização, manutenção entre outras – não conseguindo, na maioria das vezes, uma posição de igualdade na distribuição dos poderes com seus companheiros homens. Sendo reproduzidas no espaço público as situações de desigualdades e subordinações das mulheres nos espaços privados.

O feminino como mal de não saber. Gebara ilustra muito bem esse mal apoiando-se no exemplo da Irmã Joana Inês da Cruz, (p.62) do convento de São Jerônimo, no México, no século XVII. Qual o grande pecado dessa freira? Imiscuir-se no mundo das letras, querer provar das fontes do conhecimento – lugar eminentemente masculino, dirigido pela eclesiástica patriarcal romana, cuja divisão social do trabalho, sempre colocou para a mulher, o servir, a abnegação e a renuncia à capacidade de pensar. Pois bem, a Irmã Joana Inês da Cruz obteve como redenção o exílio do estudo e do conhecimento, com a sua adequação ao papel de serva, cuidando das atividades domésticas e das irmãs enfermas atingidas pela peste.

O feminino como mal de não valer. O valor é um lugar de dor para as mulheres. Mulheres valem como objetos, de prazer ou de ódio. A sociedade hierarquiza os seres humanos e multiplamente pune as mulheres, e as pune por sua condição de gênero, por sua condição de classe e pela cor de sua pele. As mulheres interiorizam esta hierarquização, onde elas estão em uma posição inferior, e purgam o seu sofrimento na malignidade de suas condições. É necessário que se leve em conta a extensão destas desigualdades entre os seres humanos e também as diferenças existentes entre as mulheres em suas vivências cotidianas. Deste modo, em diferentes classes sociais, em diferentes lugares e situações geracionais e étnicas, vivenciam-se diferentes situações de exploração da mulher.

Da realidade que coloca Gebara, existe uma tensão dialética que perpassa a construção da humanidade. Uma construção que decorre da consciência que cada ser tem do seu valor. Nos termos da autora “Quando o valor faz falta, as pessoas vivem um mal. “(p. 81) Existe uma confusão permanente entre as pessoas quanto à extensão e às possibilidades de afirmação do seu valor. Os carecimentos, as debilidades quanto ao acesso ao poder, o desconhecimento, a falta de reconhecimento e de pertencimento, fazem com que o mal se confunda com o bem e, como a autora coloca: ”No cotidiano de sua vida, o mal para elas parece ser a ausência de possibilidades de vida, a violência com a qual elas são tratadas, a insegurança à qual estão sujeitas, as faltas de calor e de afeição que caracterizam sua existência”. (p. 81/82)

Desde esta realidade, é necessário compreender o lugar das mulheres e as incompreensões que povoam o seu pensar e o seu agir, que dizem respeito ao bem e ao mal. Neste sentido, esta obra de Gebara é uma grata surpresa, pois só o olhar de uma teóloga feminista é capaz de discernir o mal travestido de bem, porque o mal de que Gebara nos fala, é um mal que anula as mulheres, impossibilitando a sua plenitude enquanto ser, quando nos deixa sem poder em nome do poder, quando nos deixa sem saber em nome do conhecimento, quando nos desvaloriza para gerar valor.

Esta leitura teológica feminista, considerando a mediação de gênero, revela o lugar subordinado das mulheres numa hierarquia social produzida por preconceitos que mesmo num discurso de igualdade de princípios como é o caso das teologias, mantiveram uma visão que desqualifica as mulheres.

Gebara cita, entre outras teóricas feministas, Joan Scott. A definição de gênero que faz Scott, constitui-se de duas partes e várias sub-partes, cujo núcleo essencial da definição baseia-se na conexão de duas proposições: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de significar as relações de poder”.[1] Prosseguindo a definição de Scott, o gênero se constitui num contexto simbólico de múltiplas representações, tem efeitos normativos, fixa relações binárias e produz noções de subjetividade.

Neste sentido o homem e a mulher são construídos socialmente, desde uma cultura historicamente situada no tempo e dentro das circunstâncias possíveis, determinadas por essa temporalidade. Sujeitos de seu tempo, imersos em um conjunto específico de relações sociais historicamente situadas, cada ser mulher e homem, tem um grupo originário e está submetido às regras de comportamento que se firmam desde a ética hegemônica. Se em geral é assim, desde o ponto de vista da construção de sua especificidade de homem e mulher, são determinantes sua classe, raça, religião e a forma de inserção social na sociedade. Deste modo, a partir dessas variáveis fundamentais, constroem-se o ser mulher e o ser homem.

Na história do feminismo, principalmente a partir dos anos 60, houve uma busca sistemática de uma identidade coletiva das mulheres, tentando forçar sua legitimidade política. Neste curso, a busca por uma identidade coletiva única não respondia às cismas e dissidências dentro do movimento. Assim, as especificidades que transversalizaram a vida cotidiana das mulheres (por exemplo, etnia, classe, gênero, sexualidade, religião, etc.,) colocaram em dúvida a possibilidade de um sujeito universal desprovido de suas vivências específicas. Coube ao movimento repensar o novo sujeito contextualizado historicamente e, portando, diferenciado internamente.

Essa situação suscitou polêmicas no seio do feminismo. Sem embargo, em nossa compreensão, unir as mulheres em uma identidade de gênero única, crendo que todas as mulheres vivem as mesmas situações é ocultar a existência de distintas formas de vivenciar a opressão e, ao mesmo tempo, negar a existência de hierarquias existentes nas relações de poder entre mulheres que pertencem a diferentes classes sociais, grupos étnicos distintos e culturas diversas.

Um acontecimento importante dos anos oitenta, no nível da teorização, foi a constatação de que categorias como mulher, homem, masculino, feminino, possuem conteúdos históricos específicos e se toma analiticamente problemático tentar aplicar a estas categorias uma universalidade, sob pena de cometermos os mesmos erros que temos criticado. Estas preocupações são as mesmas trazidas por Gebara e suscitam o debate que se encontra na ordem dia do pensar feminista.

Considerando estas preocupações, nas quais a autora chama a atenção quanto ao uso da categoria gênero, que é não absolutizar a opressão das mulheres e o receio de se cair em construções utópicas universalizantes, que se mostraram incapazes de dar conta desta múltipla realidade, levando-nos a uma revisão de práticas e teorias.

Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal é uma leitura instigante do início ao fim, possibilitando novas reflexões sobre o mal humano, particularmente o mal que atinge as mulheres.

Nota

1. SCOTI, Joan, Gênero: uma categoria útil para a análise histórica, Tradução: Christine Rufino Dabat, Maria Betânia Ávila, Recife, SOS Corpo, 1996, p. 11.

Maria de Fátima Guimarães – Professora Visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco UFPE.


GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal. Petrópolis: Vozes, 2000. Resenha de: GUIMARÃES, Maria de Fátima. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.19, n.1, p.221-224, jan./dez. 2001. Acessar publicação original [DR]

A época das perplexidades. Mundialização/Globalização e Planetarização: novos desafios | René Armand Dreifuss

O novo livro do Professor Dreifuss oferece uma oportunidade de observar as características principais da complexa interdependência econômica que marca este fim de século. Ao mesmo tempo, coloca em questão o papel do Estado Nacional e da democracia no mundo após a queda do muro de Berlim. A análise é bem característica desse fim de século: atesta uma possível perda de soberania decisória dos Estados, que tendencialmente passariam a ter presença menor em várias áreas da vida social.

A característica básica das novas análises em ciências sociais, como a de Dreifuss – o que parece configurar-se como padrão recorrente no mundo todo – é a grande inquietação acerca dos planejamentos estratégicos e das concepções de inserção internacional dos diversos Estados, nessa década final do milênio. Sabe-se que com o fim da Guerra Fria, concomitantemente ao “nebuloso” fenômeno conhecido como globalização, os tempos mudaram, trouxeram novos perigos, novos desafios e demandas. Entretanto, difícil mesmo torna-se definir e chegar a um consenso sobre quais seriam pontualmente essas mudanças. Leia Mais

Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a política externa independente (1951-1964) – VIZENTINI (AN)

VIZENTINI, Paulo G. F. Relações internacionais e desenvolvimento: o nacionalismo e a política externa independente (1951-1964). Petrópolis: Vozes, 1995. 325p. Resenha de: BUENO, Clodoaldo. Anos 90, Porto Alegre, v.4, n.5, p.212-215, 1996.

Clodoaldo Bueno – UNESP.

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Ideologia e escravidão – Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial – VAINFAS (RBH)

VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão – Os letrados e a sociedade escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986, 168p. Resenha de: MELLO e SOUZA, Laura. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.5, n.7, n.15, p.199-204, set.1986/fev.1987.

Laura de Melo e Souza – Departamento de História da FFLCH/USP.

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