História da historiografia contemporânea – crítica, escrita e historicidade | Escrita da História | 2020

A Revista Escrita da História apresenta neste volume o dossiê temático “História da historiografia contemporânea: crítica, escrita e historicidade”, cuja proposta é contribuir com um movimento recente que tem promovido a história da historiografia como disciplina e área de conhecimento. Nos últimos anos é perceptível o crescimento das publicações acadêmicas, grupos de pesquisa e da bibliografia em si voltada à tradução, difusão e análise de diferentes autores e correntes relacionadas ao pensamento histórico.

Fruto da crescente profissionalização dos historiadores brasileiros e do aumento quantitativo dos programas de pós-graduação em história, a história da historiografia tem seu espaço já consolidado entre as grandes áreas de pesquisa em história. Assim, em um esforço em reunir pesquisas recentes sobre as escritas da história e historiografia, seguimos a premissa do historiador francês Henri-Irénée Marrou, que na obra Sobre o conhecimento histórico considera este tipo de conhecimento sempre como um fenômeno cumulativo, portador de verdades parciais que a cada momento são reelaboradas, sendo a historiografia um elemento constante em todo este processo.

A narrativa historiográfica, desta forma, não é apenas a etapa final de um processo de pesquisa, uma etapa que se dá após concluídas as anteriores, uma vez agregados todos os elementos a serem considerados na produção do conhecimento histórico. Na verdade, são as dinâmicas de interação dos mecanismos de trabalho inerentes à pesquisa histórica e a construção de enunciados, ainda que provisórios, que dialogam com os elementos concretos da pesquisa, mediados pelas condições de produção de cada época e pelas demandas sócio-históricas de cada presente que se encerram em uma narrativa síntese. Talvez seja esta a questão central que nos move a compreender como aqueles que se dedicaram ao passado construíram suas experiências de tempo, evidência ou verdade: elas não são apenas registros datados de abordagens históricas determinadas, mas elementos constitutivos das nossas próprias experiências contemporâneas.

No artigo que abre o dossiê, “Perspectivas de gênero no livro didático contemporâneo: história da historiografia e ensino de história”, Daniel Pinha Silva e Camille Cristina Batista da Silva analisam as abordagens de gênero e a própria história das mulheres nos livros didáticos de história, tomados aqui como forma híbrida de escrita da história e, portanto, tema de investigação relacionado não apenas à educação e ao ensino de história, mas também à história da historiografia.

Esta perspectiva assume o livro didático como lugar de reflexão no qual podem ser encontrados elementos de intersecção entre o conhecimento acadêmico e escolar, o que constitui um espaço privilegiado para se refletir sobre a escrita da história, um “lugar de fronteira” como definem os autores. Neste sentido, é possível ultrapassar a impressão apenas descritiva da história para considerar também suas condições de produção, as demandas de mercado, a presença de grandes grupos editoriais, as políticas públicas relacionadas ao livro didático nos diferentes entes federativos, enfim, elementos importantes à reflexão historiográfica que sugerem transcender o próprio texto. Particularmente a partir da coleção História da sociedade e cidadania, de Alfredo Boulos, obra de 2017 e pertencente ao PNLD, os autores analisam em detalhes as passagens em que figuras femininas são abordadas em diferentes momentos históricos e o tomam como um estudo de caso acerca do gênero como tema central para a historiografia contemporânea.

O artigo “Um teórico da história na periferia do capitalismo: José Honório Rodrigues e a concepção de História na escritura de Teoria da História do Brasil (1949)”, de César Leonardo Van Kan Saad, investiga as concepções epistemológicas que fundamentam a obra de José Honório Rodrigues e o próprio conceito de História sustentado pelo autor como elemento de interpretação da historiografia brasileira. Sua abordagem procura analisar os fundamentos do que seria este novo campo que, em conjunto com outras obras, formariam uma proposta disciplinar para a historiografia brasileira.

Com sugere o autor, a obra de Rodrigues aqui analisada pode ser compreendida primeiramente como um manual formativo dedicado a historiadores profissionais, pois apresenta de forma simples alguns princípios elementares à ciência histórica. Mas também há em Teoria da História do Brasil a qualidade de ser tanto uma proposta de história da historiografia brasileira quanto um “ensaio interpretativo” de natureza epistemológica acerca da produção do conhecimento histórico. São possibilidades de leitura que se complementam e que demonstram a importância da retomada crítica de José Honório Rodrigues como propositor de uma teoria da história do Brasil.

Em “Os mortos contam segredos: os cemitérios enquanto documentos/monumentos para o estudo histórico”, Mariana Antão de Carvalho Rosa propõe analisar os cemitérios como espaços repletos de vestígios do passado e importantes como elementos de memória e escrita da história. Seguindo os passos de Jacques Le Goff em História e Memória, a autora sugere que os cemitérios, enquanto registros materiais e monumentais, são resultados de determinados contextos em que desejos e poderes foram manifestados, seguindo uma determinada correlação de forças que acabam por expressar também estruturas de poder.

Desta forma, cabe pensar no tipo de memória registrada e sua relação com a vida social nestes contextos: se representam narrativas triunfalistas, positivas, cívicas, e também como se dá a seleção dos espaços, inscrições, lápides e estátuas. Igualmente importantes são os silêncios, ausências e esquecimentos, percepções que ajudam também a compreender estas relações de poder. A pesquisa faz um levantamento histórico dos usos e funções dos cemitérios em diferentes contextos, e sugere pensar suas potencialidades como fonte histórica, espaço de inscrição do passado materializado como lugar de memória e historiografia.

A autora propõe refletir sobre os usos recorrentes destes espaços na pesquisa histórica, sua função como patrimônio material, sua simbologia fúnebre, sua condição representativa de uma determinada monumentalidade, seu aspecto documental, ou seja, diferentes possibilidades dos espaços cemiteriais serem lidos, interpretados e questionados enquanto fontes históricas.

O artigo de Guillermo Alexís Fernández Ramos, “Pedro Zulen Aymar nos campos de batalha da memória e da historiografia”, analisa a produção bibliográfica sobre o filósofo e intelectual peruano de ascendência chinesa Pedro Salvino Zulen Aymar, que nas primeiras décadas do século XX se notabilizou pela defesa dos camponeses e dos direitos indígenas. O autor parte da premissa que o filósofo peruano é um personagem que não tem merecido a devida atenção por parte da historiografia peruana, e procura em seu texto analisar os diferentes fatores que contribuem para este esquecimento.

Seguindo a cronologia de sua biografia, a primeira parte é dedicada às considerações de seus contemporâneos sobre sua trajetória intelectual, seja na imprensa ou nos meios acadêmicos, tendo como evento central a sua prematura morte por tuberculose em 1925, aos 35 anos. Nesta parte, destaca-se a análise de Zulen feita pelo intelectual socialista José Carlos Mariátegui, que apesar de suscitar polêmicas, foi um importante registro que situou o filósofo como parte fundamental da tradição intelectual peruana.

Em seguida, analisando o período de esquecimento de Zulen nos meios acadêmicos e mesmo nos movimentos sociais, o autor sugere que houve uma retomada de seu pensamento a partir de dois movimentos: uma abordagem que resgatava sua importância para a filosofia peruana no início do século XX e outra corrente que buscava compreender seu papel de ativista na Associação Pró-Indígena, criada em 1909 para defender os direitos dos povos originários peruanos. Por fim, há uma análise da historiografia peruana e sua abordagem da produção intelectual Zulen, analisada em suas diferentes fases e tendências.

“O Problema da historicidade na narrativa nacionalista de Edward W. Said”, de Elisa Goldman, busca compreender em parte da obra do escritor e ativista palestino Edward Said os possíveis sentidos dos conceitos de nacionalismo e colonialismo a partir de sua historicidade. A autora utiliza especialmente as obras A questão da Palestina e Cultura e imperialismo, e busca analisar esta aparente contradição entre o papel político de Said como militante da causa nacional palestina e sua abordagem pós-colonial, pretensamente mais humanística e cosmopolita.

Assim, o texto nos traz uma análise do nacionalismo a partir de um debate historiográfico contemporâneo, tomando os exemplos clássicos dos nacionalismos europeus, mas também considera os estudos subalternos e a perspectiva decolonial que tem revisto os sentidos da identidade nacional e seus processos de construção e afirmação.

O artigo final deste dossiê, “Pós-modernidade, história e narrativa: alguns apontamentos sobre o círculo hermenêutico de Paul Ricoeur e sua relação com a narrativa historiográfica”, de Bruno dos Santos Nascimento, propõe analisar algumas questões acerca da pós-modernidade no seio da historiografia contemporânea. Para tanto, o autor busca no filósofo francês Paul Ricouer e na obra Tempo e Narrativa a ideia de um fazer histórico constituído como dinâmica narrativa caracterizada por uma racionalidade própria e particular, uma espécie de alternativa epistemológica às abordagens essencialmente relativistas.

Na seção de artigos livres Talia Gabrieli Fianco apresenta o estudo “Uma ideia mutilada: a repercussão da lei do ventre livre na revista A América (1879-1880)”, no qual procura compreender como a Lei do Ventre Livre pode ser contextualizada no processo abolicionista no Brasil na segunda metade do século XIX. A fonte principal é a revista A América, periódico que circulou entre 1879 e 1880 no qual determinados debates e posições acerca da lei foram publicados. Assim, de um ponto de vista mais amplo, é possível perceber algumas características da imprensa novecentista no Rio de Janeiro, mas também qual o teor da própria lei, que opiniões a sua tramitação suscitou e como a corrente abolicionista circulava e ganhava sentido como ideia a ser concretizada.

Tendo como referencial a história intelectual, a autora busca compreender o papel social dos atores que se manifestaram sobre a questão da abolição, inserindo-os em uma grande rede na qual é possível perceber suas filiações, preferências e conexões. É clara a posição editorial favorável da revista em relação à lei, mas coexiste uma série de críticas à sua formulação e posterior execução por parte do governo imperial. A análise dos ensaios e artigos em A América permite traçar um quadro das ideias circulantes à época a partir da perspectiva de um debate público, ressaltando, portanto, o importante papel da imprensa neste contexto final do império como elemento de interlocução entre defensores do escravismo, abolicionistas, escravos e libertos.

O artigo “A pesquisa de campo enquanto instrumento para o ensino de história e a valorização dos bens culturais comunitários”, de Eduardo Augusto de Santana, é um trabalho que resulta de um conjunto de atividades desenvolvidas pelo professor\autor e alunos da modalidade EJA da Escola Estadual Gilberto Freyre, na periferia de Recife. A ideia foi partir das referências dos alunos sobre os bens culturais e espaços de memória mais representativos de sua comunidade. Em um segundo momento, por meio de pesquisas de campo e entrevistas com moradores, foram mapeados quais os espaços mais significativos para as pessoas da localidade, uma forma de repensar e se reapropiar destes lugares.

A trabalho apresenta um levantamento de informações sobre cada local escolhido, e promove uma discussão envolvendo estudantes e comunidade sobre estes espaços de memória e identidade, passando por ações de preservação, formas de uso e possíveis soluções para os problemas identificados. Assim, além dos resultados positivos da experiência estudantil em conhecer melhor estes espaços de memória como patrimônios, o artigo traz também experiências de participação comunitária como elemento essencial na promoção dos bens culturais locais e da construção da memória coletiva.

Em “Ulysses Freyre e Gilberto Freyre: uma parceria entre bicicletas, fotografias e cidades em Pernambuco na década de 1920”, Luciana Cavalcanti Mendes nos oferece um olhar bastante particular sobre as cidades de Recife e Olinda por meio das fotografias produzidas por Ulysses Freyre, irmão do sociólogo Gilberto Freyre, entre os anos de 1923 a 1925. O estudo toma como ponto de partida o acervo fotográfico pessoal de Ulysses, que muitas vezes em companhia do irmão circulava pela cidade em sua bicicleta e, embora fosse um fotógrafo amador, imprimiu um olhar de documentarista recortando aspectos da paisagem urbana e da arquitetura civil.

O acervo foi utilizado por Gilberto Freyre em seus estudos, e a importância de Ulysses na produção de dados, informações e nas discussões sobre as pesquisas é, segundo a autora, uma análise que precisa ser melhor aprofundada. Predominam nas imagens, muitas delas repetidas, os espaços urbanos, as fachadas, frontais ou em ângulo, e detalhes das edificações, provavelmente para compor um catálogo. Além das imagens, a parceria fraternal e intelectual entre os irmãos pode ser aqui captada, e contribui para compreender o papel de Ulysses, que além deste acervo imagético que registra aspectos da Recife\Olinda do início do século XX, foi também responsável por organizar dados de pesquisa do seu irmão mais famoso, o que permite compreender por um outro ângulo a complexidade intelectual de Gilberto Freyre.

O artigo “Divinos acordes, batutas douradas: ciclo do ouro, irmandades e os primórdios do trabalho em música no Brasil”, de Leandro da Costa e Breno Ampáro, busca compreender a dinâmica da atividade musical no Brasil colonial, particularmente na região de Vila Rica, Minas Gerais, entre a segunda metade do século XVIII e início do XIX. A pesquisa aborda a transformação social observada pela intensificação da exploração do ouro na região, e procura identificar, na formação das vilas e arraiais, a presença de músicos e menestréis, entoando cantigas populares e participando da sociabilidade cotidiana, mas também a música eclesiástica que aproveitava as novas catedrais como como espaço privilegiado, bem como atividades musicais mais elaboradas, atendendo a expectativa das elites locais.

É interessante notar o desenvolvimento das atividades musicais neste contexto em sua relação com a presença africana na formação das Minas Gerais, com sua expressão e musicalidade distintas dos padrões europeus, elementos fundamentais para a transformação da cultura local. As relações de trabalho são também importantes para a compreensão da manifestação musical mineira. As chamadas “irmandades musicais” foram formadas como entidades de músicos que participavam do serviço religioso, ao mesmo tempo em que prestavam apoio aos seus membros. Elas nascem como uma espécie de “corporação de ofício”, resguardando a atividade profissional dos músicos associados e caracterizando uma certa mobilidade social em um contexto essencialmente escravista.

Os dois artigos livres finais abordam temas ibéricos do início do período moderno. O primeiro deles, de Fernanda Paixão Pissurno e Lucas Lixa Victor Neves Correio se chama “O Príncipe Ranucio deve ser preferido a todos”: breve estudo sobre a pretensão de Ranuccio Farnésio ao trono português no contexto da crise sucessória de 1578-1580”. O trabalho aborda a crise sucessória relacionada à ocupação do trono português desencadeada ao fim do reinado de D. Henrique. O trabalho busca analisar a participação de Ranuccio Farnésio, membro de uma família aristocrática italiana, na disputa pela Coroa portuguesa. A família Farnésio tornou-se influente na Península Ibérica, e Ranuccio passou a ser um aspirante ao trono lusitano pois era filho de um casamento entre seu pai e a Maria de Portugal, filha primogênita do infante D. Duarte, duque de Guimarães, este o sexto e último filho homem de D. Manuel I.

As informações que demonstram as intenções de Ranuccio Farnésio em relação ao trono estão no documento principal analisado no artigo, “Breve sumário das razões do ilustríssimo e excelentíssimo senhor príncipe Ranuccio Farnésio acerca da sucessão do trono de Portugal”, pertencente ao acervo digital da Biblioteca Nacional de Portugal. Os argumentos contidos na fonte passam por alegações sobre sua condição de primogênito homem, questões de consanguinidade e argumentos jurídicos que evocam exemplos de sucessões anteriores. Apesar de sua pretensão em relação ao trono de Portugal não ter se concretizado, o artigo permite compreender, seguindo a trajetória de Farnésio, a estruturação do poder entre as casas monárquicas europeias neste contexto sucessório lusitano.

Por fim, em A baixa nobreza e a revolução de 1640: a distribuição de cargos e mercês nos teóricos da Restauração, Eduardo Henrique Sabioni Ribeiro analisa a distribuição de cargos e mercês em três obras publicadas no período denominado Restauração de Portugal, entre 1640 e 1688: Arte de reinar (1644), de Antônio Carvalho de Parada, Suma política (1649), de Sebastião César de Meneses e Harmonia política dos documentos divinos com as conveniências de Estado (1651), de Antônio de Sousa de Macedo. A despeito do protagonismo da nobreza nobiliárquica neste contexto, o autor busca compreender o papel da baixa nobreza durante a Restauração.

O trabalho enfatiza os conflitos existentes entre os grupos que compunham a nobreza lusitana, ressaltando as rivalidades e interesses divergentes que, por vezes, punham em disputa os cargos mais importantes da administração pública, como os assentos nos conselhos e as mercês régias. Os textos analisados, ainda que apresentem pontos divergentes sobre a estrutura de poder e sua ocupação, acabam convergindo em temas relacionados à linhagem, merecimento e riqueza, e permitem perceber aspectos de uma reconfiguração da estrutura social da nobreza em Portugal neste contexto.

Boa leitura a todas e todos!


Organizador

Fábio Luciano Iachtechen


Referências desta apresentação

IACHTECHEN, Fábio Luciano. Apresentação. Escrita da História. v.7, n. 13, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

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