História da Igreja: Notas introdutórias | Ney Souza

A segunda edição da coleção Iniciação à Teologia da Editora Vozes está lançando diversos volumes sobre as disciplinas e áreas da Teologia com um conteúdo introdutório para aqueles (as) que desejam conhecer melhor os fundamentos da ciência teológica, suas áreas e a sua relação com os demais saberes.

O volume referente à História da Igreja é de autoria do Prof. Dr. Ney de Souza, professor da Faculdade de Teologia da nossa Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutor em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), cujo diploma de Doutorado em História foi registrado na Universidade de São Paulo. Professor Ney é um historiador renomado, centrando suas linhas de pesquisas em catolicismo na América Latina no que se refere à piedade popular, ditaduras militares, e a recepção e desdobramentos do Concílio Vaticano II no continente, promovendo através de publicações diversas, congressos e grupos de pesquisas a História da Teologia.

A História é mestra da vida e a História da Igreja é Teologia. A partir dessas afirmações, podemos apresentar essa obra didática, dividida em cinco partes, escrita seguindo o método histórico-crítico. É importante destacar o método para entender o fio condutor da própria obra, uma vez que, ao longo dos capítulos, compreenderemos a histórica eclesiástica a partir de sua série de alianças e rupturas entre o poder espiritual e o poder temporal, apresentando e analisando as fontes necessárias para a compreensão da temática.

A primeira parte da obra consiste em apresentar as fontes e metodologias para o estudo da História do Cristianismo, apresentando o critério de seleção das fontes e a conceito de Igreja que a obra deseja apresentar e refletir. Tendo o Concílio Vaticano II como ponto de partida, será utilizado o conceito histórico-teológico Povo de Deus, definido pela Constituição Dogmática Lumen Gentium. A partir disso, compreendemos a articulação da História da Igreja como a formulação do credo cristão e a Tradição, fundamentos para o estudo sobre no processo histórico e dinâmico da Igreja, visto numa perspectiva de continuidade e descontinuidade.

Apresentando a necessidade do uso das fontes, fica claro que a ciências histórica e teológica se constroem com análise documental (manuscritos, fontes eclesiásticas advindas de bulários e arquivos, concordatas e acordos diplomáticos, fontes litúrgicas…) e a relação com disciplinas técnicas e referenciais teóricos. O historiador é aquele que busca na antiquíssima História ver como o passado ilumina o presente, possibilitando encontros e reflexões. A lista de historiadores do cristianismo é muito importante para entender o desenvolvimento desse caminho.

As demais quatro partes consistem no estudo sistemático da História da Igreja em períodos (antigo, medieval, moderno e contemporâneo). A partir das origens da comunidade cristã na fonte da Sagrada Escritura, vemos a influência do mundo greco-romano no cristianismo antigo onde, embora tenha tido êxito o anúncio do Evangelho, a perseguição política e ideológica se fez presente, dando assim origem à Era dos Mártires.

A partir da experiência de fé dos pequenos (escravos, pobres e marginalizados), as comunidades cristãs dos primeiros séculos resistem à perseguição e à cultura de morte com criatividade, profecia e caridade. Após o percurso político a partir de Constantino (século IV), os cristãos passam a ter liberdade de culto, tornando-se religião oficial de todo o Império Romano sob Teodósio. A formulação do credo cristão grande notoriedade com os primeiros concílios convocados pelos imperadores para tratarem sobre as heresias e as divisões do cristianismo. Aí se encontram as bases da aliança entre a Igreja e o Império Romano. No campo teológico, é uma época de grande efervescência cultural e doutrinal com a teologia dos chamados Padres da Igreja no mundo grego e latino.

O cristianismo no mundo medieval é marcado pela formação da Europa e do sistema de cristandade. A aliança firmada na antiguidade com Roma, ganha novos protagonistas com a queda e o fim do império no Ocidente e a tomada do poder por parte dos povos germânicos. Diante dessa nova conjuntura tem origem a Europa Medieval, onde as populações que se assumem o credo cristão tomam sobre si o nome de cristãos até o século XIV, onde o conceito de europeus para a ganhar notoriedade.

O mundo medieval, marcado por grandes conquistas, sob o signo da cristandade vive as crises das pestes, fome e guerras. Nas relações entre os poderes espirituais e temporais, a formação do Estado da Igreja, o desenvolvimento e a centralização do poder papal e suas relações com o império, uma vez que se formará o Sacro Império Romano-Germânico (século X), são marcadas por acertos e conflitos. As relações entre trono e altar tornam-se tensas sobre quem possui a palavra final nos destinos da sociedade cristã. Assim acontece o Cisma do Oriente (1054), as cruzadas e surge a Inquisição. A Querela das Investiduras, no século XI, numa época reformista, evidencia a busca de um papado soberano e livre e uma vida religiosa reformada (reforma gregoriana – Papa Gregório VII), os conflitos com o imperador alemão Henrique IV e as fortes resistências por reformas oriundas do interior da própria Igreja.

Essa época é marcada pela luta contra as heresias, apresentando a necessidade da renovação da forma de anunciar o Evangelho e praticar a vida cristã. Tem-se origens várias ordens religiosas entre os séculos XII e XIII, cujas figuras de Francisco de Assis e Domingos de Gusmão ganham notoriedade pela urgente renovação do pensamento, comportamento e mentalidade cristã e social. Na mesma época do nascimento da Universidade, a Igreja Católica padece com a decadência do poder papal em contínuas tensões com o poder temporal e com as práticas da simonia, do nepotismo e do concubinato. A aliança entre a mitra e a coroa tende a criar cada vez mais tensões e divisões, como evidencia a época do papado em Avignon e do Cisma do Ocidente (século XIV).

O mundo moderno nasce numa Europa em transição: a formação dos Estados Modernos, os movimentos do Renascimento e do Humanismo e o nascimento do capitalismo. Nessa mudança de eixo, vemos também a expansão marítimo-comercial que resultará na política colonizadora da Europa na África, América e Ásia. Sob o sistema do padroado, mesmo diante da decadência da autoridade dos papas e da hierarquia eclesiástica e fortes tensões entre os reinos da cristandade, haverá a conquista político-espiritual de novos territórios.

Nas questões institucionais da Igreja, a Reforma Protestante, a partir de Martinho Lutero (1517), muda o panorama religioso do cristianismo na Europa e no mundo. A Igreja Católica chega a um momento de reforma inevitável o que é iniciado pelo Concílio de Trento (1545-1563) que, no processo de realização e recepção, assim como os demais concílios até então celebrados, sejam nas questões teológicas ou disciplinares, encontram resistências e leituras parciais e, também, perspectivas de renovação eclesial. Guerras religiosas e heresias que acompanham esse período apresentam bem o significado das alianças, onde a relação entre a Teologia, os saberes e os poderes, num mundo com cada vez mais conflitos, mostram a urgência constante por reformas e renovação por parte da instituição religiosa para manter a identidade.

A partir das chamadas revoluções (Iluminismo, Revolução Industrial e Revolução Francesa) vemos o conflito entre a Igreja Católica e as demais instituições no que se refere ao desenvolvimento e progresso. A era contemporânea oferece novos paradigmas para a sociedade e o catolicismo. As inúmeras mudanças geram um ambiente de animosidade e conflitos, onde as condenações recíprocas colocam a Igreja e a sociedade em lados opostos. A celebração do Concílio Vaticano I (1869-1870) é ponto crucial para relermos as fontes desse período.

O século XX, marcado pelo estigma das guerras, apresenta novos horizontes para uma Igreja ainda apegada a muitos aspectos da cristandade medieval e do Antigo Regime. Porém, movimentos teológicos, mesmo sofrendo fortes resistências possibilitam novos rumos na vida interna e nas relações com o mundo. As guerras mundiais mostram a urgência de uma Igreja compromissada com a vida e livre das ingerências do poder temporal. É necessário repensar como exercer o poder e a autoridade num mundo cada vez mais complexo.

Longe de uma atmosfera pessimista ou negacionista, o pontificado de João XXIII (1958-1963), traz novos rumos. O anúncio, convocação e preparação do Concílio Vaticano II (1962- 1965), iniciado com João XXIII e continuado e encerrado por Paulo VI, recuperam no horizonte da atualização e do diálogo, a identidade e a missão da Igreja diante do processo histórico e a proposta do Reino de Deus. Sendo o Vaticano II mensagem de esperança para os nossos tempos, a urgência da sua recepção faz com que saibamos reler as fontes históricas com sede de protagonismo e liberdade.

A obra do professor Ney de Souza, rica em conteúdo e com bela articulação das fontes, faz com que possamos compreender o processo histórico da Igreja na sociedade de forma dinâmica, crítica e capaz de suscitar no leitor sede de novos rumos para um mundo melhor. Teologia, História e Vida tornam-se movimento e testemunho.


Resenhista

Felipe Cosme Damião Sobrinho – Doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Auxiliar de Ensino da Faculdade de Teologia da PUC-SP. Membro do Grupo de Pesquisa Religião e Política no Brasil Contemporâneo.


Referências desta Resenha

SOUZA, Ney. História da Igreja: Notas introdutórias. Petrópolis: Vozes, 2020. Coleção Iniciação à Teologia. Resenha de: DAMIÃO SOBRINHO, Felipe Cosme. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, v.1, n.26, p. 334- 340, 2021. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.