História da infância em Pernambuco | Humberto Miranda e Maria Emília Vasconcelos

Desde a tradução do livro História social da infância e da família de Philippe Ariès para o Brasil, na década de 1980, historiadores e historiadoras em todo o país intensificaram suas pesquisas em torno desta temática. A escolha da infância como novo “objeto de pesquisa” deu-se devido à intenção de alguns pesquisadores/as compreender como se construíram múltiplas infâncias na territorialidade que compreende o Brasil, atentando-se para as especificidades locais e regionais. Neste sentido, o estudo dos discursos dos operadores do direito, pedagogos, psicólogos, médicos, etc., enfim, uma miríade de técnicos, foram de fundamentais para compreender como a sociedade brasileira forjou seu ideal de infância. Estes discursos buscavam apontar um lugar social para a infância e a criança na modernidade, e suas discussões de maneira geral, concentravam-se entorno de arquétipos infantis: a criança problema, a criança aluno, a infância desamparada ou desvalida. Sempre com caráter intervencionista estes profissionais tentaram – e ainda hoje tentam – solucionar os ditos “problemas” partindo do pressuposto da existência de uma criança/infância universal, esquecendo-se de que este período da vida é social e historicamente construída – caleidoscópica.

Indo de encontro às novas perspectivas teóricas sobre os estudos da criança, onde a visão adultista é colocada de lado, o livro, História da Infância em Pernambuco da editora UFPE, condensa um apanhado de discussões sobre as crianças e suas diferentes infâncias, realizadas durante o Simpósio Memórias da Infância, no qual pesquisadoras e pesquisadores apresentaram seus trabalhos, propondo novas abordagens e olhares para a realização de uma história da infância brasileira.

Organizado por Humberto Miranda e Maria Emília Vasconcelos, o livro tenta ampliar o eixo de discussões sobre a história da infância no Brasil. Inscreve-se aqui sua relevância por fugir do eixo acadêmico sudeste que há muito tempo vem debatendo e escrevendo sobre temas regionais que pretensamente são colocados como uma “história da infância brasileira”. Por não ser sua pretensão de fazer uma história totalizante da infância, o livro tende a nos proporcionar uma visão mais acurada sobre as experiências do mundo infantil nordestino abordando estas temáticas das mais diferentes formas narrativas.

O texto de abertura, Por uma História da infância no Brasil da historiadora Silvia Maria de Fávero Arend, procura discutir as inúmeras abordagens e possibilidades da pesquisa histórica sobre as crianças no Brasil. Apontando os núcleos de estudos e investigação mais importantes do país, a pesquisadora busca compor um apanhado consistente das principais pesquisas realizadas, assinalando para as novidades relativas à temática, como a eliminação da visão adultista. A autora ainda alerta para o perigo de o historiador da infância cair num lugar comum, onde as crianças e os jovens são vitimizadas e apresentados como seres inacabados e que por sua fragilidade ainda não respondem por si. Esta visão romantizada acaba impossibilitando o pesquisador percebê-los como sujeitos de ação, produtores de sua própria história.

O livro ainda constrói uma narrativa acerca dos vários dispositivos de controle – escolas, asilos, prisões, família – empregados pela sociedade industrial com o intuito de garantir que a infância fosse resguardada, criando entorno dela uma aura de pureza que deveria ser mantida por todos os membros da sociedade moderna. Segundo estes discursos normativos somente protegendo a criança e garantindo o seu completo desenvolvimento até a fase adulta é que as terras brasileiras percorreriam o caminho dos países desenvolvidos, transformando-se numa grande nação.

Dentre os inúmeros discursos e controles exercidos sobre a infância, aqueles que mais ecoaram, foram os relacionados normatização famílias das camadas populares. Para o estado brasileiro a ação da família era dúbia, pois ao mesmo tempo em que ela poderia erigir homens hígidos ao desenvolvimento da pátria, ela também teria condições de perpetuar a pobreza, miséria e os vícios morais, gerando uma “horda” de sujeitos indesejáveis como prostitutas, gatunos e degenerados.

Em sua maioria os textos abordam o perigo atribuído pelas classes dominantes à infância pobre. Para os dirigentes do país, era neste período da vida e sobre esta casta social, que as primeiras providências deveriam ser tomadas, pois era justamente ali que se disseminavam todas as imoralidades que acarretariam em problemas futuros, como o abandono, a proliferação de doenças, a mendicância, os pequenos furtos, etc. “Cuidando” da criança pobre, a burguesia industrial garantia o controle sobre as camadas populares, da mesma forma que expurgava de si a culpa por anos de indiferença e exploração.

O livro disserta ainda sobre as múltiplas facetas intervencionistas adotadas pela sociedade industrial no intuito de segregar as crianças pobres. Trancafiadas com seus pares em asilos, enfermarias, escolas e abrigos correcionais, estas, através do engendramento da moral cristã e dos valores do trabalho, só sairiam quando estivessem extirpadas todas as “marcas” de seu passado “degenerado”.

Outra forma de controle recorrente e encontrada pela maioria dos pesquisadores, foram as redes assistenciais e de filantropia onde expoentes da sociedade pernambucana garantiram a obediência e a manutenção da pobreza através de pequenas ações caritativas. Não muito diferente do que acontece ainda hoje na região nordeste do país – a manutenção da miséria foi uma excelente arma política que colocava a população carente numa relação de subordinação e dependência com seus bem feitores.

A infância como objeto de intervenção mostrou-se uma excelente ferramenta de sujeição das camadas populares, pois desde a mais tenra idade, amoldava-se o cidadão segundo os padrões morais e éticos vigente no período. Neste sentido, a escola e os abrigos de menores mostraram-se excelentes locais no controle e na moralização das crianças pobres, pois eles estavam carregados de códigos e padrões de comportamento tão caros à sociedade burguesa. A escola mostrou-se eficiente no que diz respeito à normalização de condutas. Agindo precocemente sobre os corpos, este local de ensino fomentava a ordem e o respeito aos superiores; e a criança por ser uma criatura tão “intempestiva” precisava ser adequada ao convívio em sociedade. Sobre a égide da escola os infantes aprenderiam a aceitar as ordens dos mais velhos, obedecer e compreender a existência de uma hierarquia sem contestar quaisquer resoluções de seus superiores. O modelo escolar era baseado na padronização de normas e valores de convivência social, a criança ali chegada interiorizaria o seu papel social: obedecer e cumprir ordens sem contestar; caso contrário punições severas abater-se-iam sobre elas.

Não muito diferente do modelo escolar os asilos de proteção a infância estavam voltados também para a normalização de condutas, a única diferença entre os dois lugares, é que o último abrigava quase que exclusivamente crianças pobres, que devido a sua condição social carregavam o estigma da miséria e da imoralidade. Estas instituições asilares confinavam seus internos, desde muito cedo, no intuito de “resguardá-los” dos perigos das ruas, ensinando-lhes os valores do trabalho e da moral, comportamento estes de extrema importância para o bom funcionamento da sociedade industrial. Sob a aparência de resguardo e bem-estar, podia-se encontrar nestes locais outros interesses, como a exploração de uma mão-de-obra barata sem reivindicações organizadas; e ainda esconder dos olhos da burguesia a mendicância e a pobreza.

Os estudos sobre a infância tem se mostrado um excelente objeto de análise para compreensão da sociedade e seus valores. Através dela é possível identificar e perceber como determinados padrões de comportamentos foram impostos aos mais diferentes grupos sociais num dado período. Neste sentido, ainda há muito que se discutir, pois a criança não pode ser mais entendida como uma extensão do adulto, mas sim como possuidora de sua própria história relacionada ou não com as experiências de outros sujeitos (adultos). Desta forma, é imprescindível que os estudos históricos avancem mais no sentido de desnaturalizar o papel da criança e da infância em nossa sociedade. Este livro como parte de uma nova remessa obras que repensam estes sujeitos históricos abre um leque de novas possibilidades para as pesquisas relativas a história da infância e da criança, principalmente quando ele se abstém de generalizações para todo país a partir de um ponto espacial específico.


Resenhista

Ismael Gonçalves Alves – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História – UFPR Bolsista da CAPES.


Referências desta Resenha

MIRANDA, Humberto; VASCONCELOS, Maria Emília (Orgs.). História da infância em Pernambuco. Recife: UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, 2007. Resenha de: ALVES, Ismael Gonçalves. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 4, n. 8, jul./dez. 2010. Acessar publicação original [DR]

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