História da Saúde e das Doenças / Dimensões / 2015

Os artigos que compõem o Dossiê História da Saúde e das Doenças refletem a variedade de temáticas, usos de fontes e possibilidades de diálogo com diferentes metodologias que vem surgindo nos últimos tempos, explorando desde linhas já mais consolidadas, como os estudos sobre as instituições, até perspectivas mais recentes, dentro de discussões como o das histórias conectadas, circulação de saberes, e história global. Dialogando com variados ramos da pesquisa histórica, os autores nos dão mostras a um só tempo da expansão dos estudos sobre história da saúde e das doenças no Brasil e de seus variados matizes, fazendo-nos notar um campo de investigações que, apesar de consolidado, tende a crescer de modo pulsante nos próximos anos.

O número abre com o artigo de André Nogueira, Santo forte! Devoção antoniana e práticas de cura ilegais nas Minas do século XVIII, que faz uma rica análise sobre os calundus e a devoção a Santo Antônio, associando-os à religiosidade afro-católica, especialmente àquela desenvolvida em terras centro-ocidentais africanas, de que seriam portadores alguns dos participantes citados nas documentações.

A circulação de conhecimentos médicos no espaço atlântico é tratada no artigo de Ana Carolina de Carvalho Viotti, sobre as traduções dos manuais médicos e sua presença na colônia, mesmo com a proibição da imprensa. O artigo de Patrícia Merlo revisita as transformações no campo do conhecimento médico no Setecentos no contexto da “medicina ilustrada”, através da análise de Verney e o Verdadeiro Método de Estudar, salientando as críticas ao ensino médico em Portugal, especialmente no que versa sobre os estudos anatômicos e o conhecimento do corpo humano.

Já sobre o século XIX, o artigo de Luis Fernando Tosta Barbato busca indicar que as indagações sobre a salubridade e o meio foram parte dos debates sobre nação entre os intelectuais do IHGB, retomando as visões opostas entre paraíso e inferno – aliás, uma discussão de primeira ordem também no contexto europeu da expansão imperialista e suas multifacetadas considerações acerca das “zonas tórridas” – na constituição de alguns discursos sobre a viabilidade nacional.

Sobre o Oitocentos, ainda, é interessante notar a presença das relações entre os primeiros sinais de maior crescimento urbano no Brasil e o adensamento dos debates médicos e políticos entorno tanto das formas de conceber e conter as doenças, como das prescrições de higiene, ou da compreensão do higienismo como braço aliado da “civilização”. Como salienta o artigo de Daniela Flávia Martins Fonseca, mesmo em cidades de porte médio como São João del Rei, em fins do século XIX, essa preocupação de tornar a cidade como polo civilizatório fazia parte do projeto das elites locais, que viam naquele momento a possibilidade de elevar a cidade à capital do estado. Nos primeiros anos republicanos, em meio à contraposição que então se construía entre a recém inaugurada ordem política e o passado monárquico, visto como arcaico, surgiam os arautos da modernidade que através dos espaços institucionais e via imprensa, divulgavam os preceitos higiênicos buscando assim educar e disciplinar o povo para o ideário civilizatório que se almejava alcançar.

Ao mesmo tempo, as cidades, em particular as portuárias, mas não só, se tornavam epicentros das grandes epidemias pelo mundo, conforme avançava o século XIX, influenciando a legislação e demandas administrativas nas diversas localidades. O artigo de Daiane Silveira Rossi e de Beatriz Teixeira Weber, Legislação Imperial e Câmaras Municipais de Saúde: Saúde e a Higiene (Santa Maria / RS, século XIX) busca discutir a atuação da Câmara Municipal e a formulação das Posturas Municipais, na formação da cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul durante a segunda metade do século XIX. Questões relativas à higiene pública e ao controle dos exercícios dos agentes de cura orientaram diferentes pontos da legislação local, assim como o temor às epidemias suscitaram reações da Câmara repercutidas nas posturas. Nas situações de epidemias e surtos, era possível verificar confluências de interesses locais e a administração imperial, à medida que a organização dos serviços sanitários ganhava maior importância, sobretudo na capital do Império, a partir da formação da Junta Central de Higiene, criada posteriormente à chegada da febre amarela em 1850. O artigo A província do Rio de Janeiro em tempos de epidemia de Tânia Salgado Pimenta, Keith Barbosa e Kaori Kodama realizam um levantamento das diferentes eclosões epidêmicas e surtos anunciados nos relatórios dos administradores provinciais nos diversos municípios do Rio de Janeiro, de 1828 a 1889.

Outra significativa vertente de pesquisa em torno das doenças e suas práticas terapêuticas diz respeito às instituições médicas. Tais investigações, tomando os estudos que partem do nível local e retraçam debates globais, como na implementação da bacteriologia pelo mundo, por exemplo, abrangem estudos sobre as transformações das pesquisas e ensino médico sobre doenças, na passagem da Monarquia à República. O artigo de Ricardo dos Santos Batista permite acompanhar a trajetória da disciplina de Dermatologia e Sifilografia na Faculdade de Medicina da Bahia, entre os anos de 1914 e 1945. O autor argumenta que a ênfase nas pesquisas em medicina experimental desenvolvida na gestão anterior pelo médico Alexandre Evangelista de Castro Cerqueira contrastaria com o modelo catedrático na Faculdade, durante o período em que Albino Arthur da Silva Leitão esteve à frente da instituição, tendo como consequência caminhos distintos no desenvolvimento dos estudos na área no espaço de ensino e no das enfermarias. Ao tratar desse percurso de uma disciplina numa instituição local, aborda as mudanças no campo das ciências médicas que atravessavam fronteiras nacionais.

As relações entre conjunturas políticas e as mudanças nas formas de intervenção sanitária estão presentes em alguns dos artigos deste Dossiê. A criação das Inspetorias Médicas Escolares nas primeiras décadas republicanas, seria um exemplo da conformação de diferentes perspectivas entre educação e saúde, como demonstra o trabalho de Margarete Farias de Moraes e Juçara Luzia Leite.

Tais relações são ainda abordadas no caso da criação dos leprosários no Espírito Santo em consonância com o primeiro governo Vargas, foram tratadas no artigo de Sebastião Pimentel Franco e Luiz Arthur Azevedo Barros. Apesar da falta de recursos do governo estadual, neste período houve um salto tanto na identificação dos casos de lepra no Espírito Santo, quanto na disseminação das medidas de controle, assistência e tratamento – com a criação de leprosários e sociedades – aplicados à época de forma generalizada em diferentes partes do mundo. A Colônia de Itanhenga insere-se assim na política de reestruturação e centralização da saúde pública brasileira do Estado Novo.

No texto de Gustavo Querodia Tarelow e André Mota aborda-se a eugenia a partir do diretor do Hospital do Juquery, em São Paulo, Antônio Carlos Pacheco e Silva. Em meio à ascensão do nazi-fascismo e do crescimento de políticas visando propostas de eliminação daqueles considerados como “degenerados”, este médico propôs o organicismo como forma de abordagem psiquiátrica na instituição que dirigia. Como os autores procuram demonstrar, diagnósticos médicos e as classificações das doenças mentais da instituição estavam “intimamente ligados aos modelos científicos, políticos, culturais e econômicos formulados no período”.

Contraposições entre filantropia e questões econômicas, tensões entre perspectivas nacionais de desenvolvimento e interesses imperialistas são conjugados na análise sobre a autarquia norte-americana Tenessee Valley Authority e o combate à malária, realizada por Andrey Minin Martin e Leonardo Dallacqua de Carvalho no artigo Entre a doença e “progresso”: considerações sobre o Tennessee Valley Authority e o controle da malária (1933-1948). Ações de combate à malária através da educação e a colaboração científica internacional em pesquisas aparecem junto a outras facetas das diferentes injunções entre o local e o global, fazendo-nos retornar às questões iniciais deste número.

Desejamos uma ótima leitura.

Sebastião Pimentel Franco e

Kaori Kodama,

Os organizadores.


FRANCO, Sebastião Pimentel; KODAMA, Kaori. Apresentação. Dimensões. Vitória, n.34, 2015. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.