História da saúde e das doenças: objetos fontes, e metodologias | Contraponto | 2021

Um prolífico encontro entre a história, a saúde e as doenças

O presente número da revista Contraponto, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História do Brasil e ao Departamento de História da Universidade Federal do Piauí- UFPI, congregou sob o dossiê intitulado História da Saúde e das Doenças: objetos, fontes e metodologias, uma diversidade de textos que apresentam a fertilidade do campo em destaque. As produções consistem em uma entrevista, trinta e três artigos e duas resenhas de livros, logo, trata-se de um contingente considerável de produções acadêmicas elaboradas por pesquisadoras e pesquisadores nacionais, inclusive piauienses, mas também estrangeiros. Além da finalidade aparentementemente explícita que os periódicos possuem de reunir produções de âmbito acadêmico, a intenção do dossiê a partir da temática ampla foi demarcar a diversidade de perspectivas de trabalho que atestam a vitalidade do campo de história da saúde e das doenças. Em decorrência disso, optou-se por realizar a proposição de um dossiê que pudesse agregar produções que ressaltassem as amplitudes temáticas, espacialidades e temporalidades por meio da apresentação de temas, perspectivas e métodos recorrentes nas produções acadêmicas.

É pertinente atentar para o fato de que as produções acadêmicas em história da saúde e das doenças adquiriram uma dimensão notável no cenário pandêmico da Covid-19 no Brasil, em que pese o superdimensionamento da maior praticidade conferida pelas atividades remotas, o que acabou contribuindo para a intensificação dos diálogos entre os pesquisadores das mais variadas regiões. A profusão dos trabalhos pode ser verificada por meio de aspectos como a realização de eventos como congressos e simpósios, lives e podcasts nas redes sociais, dossiês propostos em periódicos científicos, publicações de livros no formato impresso, mas, sobretudo, em e-book, além da intensificação de propostas de novas pesquisas em cursos de mestrado e doutorado. De fato, a pandemia adquiriu centralidade a partir das intensas alterações no cotidiano das populações, sejam aquelas restritas a localidades ruralizadas ou, ainda, às áreas urbanas cosmopolitas.1

Torna-se adequado assinalar que as pesquisas apresentadas nesse dossiê trazem para o proscênio algumas perspectivas e abordagens no campo da história da saúde e das doenças, embora isso ocorra de forma limitada, haja vista a impressionante diversidade verificada dos trabalhos desenvolvidos nas instituições acadêmicas no Brasil, mas também além do contexto internacional. Isso ocorre em larga medida porque a profusão conceitual e política do campo permite a compreensão no que se refere à sua gênese, mas também da própria consolidação, considerando-se as suas inúmeras facetas (HOCHMAN; TEIXEIRA; PIMENTA, 2018). Mas isso, notadamente, não é prerrogativa brasileira, como afirmam Frank Huissman e John Warner (2006), ao indicarem que nas pesquisas desenvolvidas por anglo-saxões e franceses, condição que também observa-se na América Latina, continuam sendo realizados amplos debates que não se restringem à nomenclatura com relação à distinção entre história da saúde, da medicina, das doenças e das ciências, mas que também envolvem aspectos como as temáticas, as metodologias e os sujeitos sobre os quais incidem as produções.

A produção historiográfica tem demonstrado há bastante tempo ser particularmente útil no que se refere à identificação de padrões, permanências e descontinuidades no âmbito do ideário e das iniciativas que se referem à saúde (FEE; BROWN, 1997). Torna-se relevante observar que desde as últimas décadas no Brasil, as pesquisas em História da Saúde e das Doenças têm apresentado pautas inovadoras para a análise das sociedades em uma continuidade temporal.2 Conforme assinalam Luiz Antonio Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman (2018), foram forjadas novas agendas de pesquisa, acompanhadas pelo revigoramento de campos consolidados, sendo vinculados a uma dimensão fundamentalmente multidisciplinar no contexto das instituições acadêmicas.

É particularmente adequado aventar que o campo da História da saúde e das doenças acabou adquirindo notoriedade a partir de pesquisas desenvolvidas por pesquisadores como Jean- -Pierre Peter e Jacques Revel (1976), Philippe Ariès (1977), Jacques Le Goff (1985) e Jean Delumeau (1989), uma vez que promoveram o desenvolvimento de pesquisas originais que tornaram proeminentes as dimensões que incidiram sobre os corpos.3 Nesse sentido, em torno dos anos 1970, já existia o interesse historiográfico nas temáticas identificadas com a saúde e as doenças, inclusive, isso teria ocorrido devido ao fato de que as doenças não estariam vinculadas apenas a uma história dos progressos científicos, mas por estarem associadas aos saberes, bem como às práticas associadas ao proscênio das estruturas, instituições e representações (LE GOFF, 1985).

O interesse pelas temáticas acerca da saúde e das doenças no âmbito da história acabou ensejando o surgimento e a intensificação do desenvolvimento das pesquisas, contudo, isso somente foi possível em virtude de uma conjuntura propícia. Nesse contexto, pode-se considerar o fato de que ocorreu um novo ímpeto de renovação naquilo que se refere ao Métier de historiadoras e historiadores, propiciando uma inovação das abordagens, problemáticas, objetos e fontes no fazer historiográfico (LE GOFF; NORA, 1976). É ainda relevante mencionar que a notoriedade da História da Saúde e das Doenças também ocorreu em virtude das problemáticas relacionadas a aspectos como a aquisição de longevidade e condições de bem estar, às críticas quanto ao desempenho do Estado enquanto promotor de políticas de saúde, além da vinculação entre a salubridade com a propagação e gravidade das moléstias. Estas pautas permitem identificar de forma suficientemente explícita, que na área da História as pesquisas também surgem em decorrência de demandas específicas que inscrevem o ofício historiográfico em uma dialética que tenciona o passado e o presente, conforme assinala Henry Rousso (1998).

É relevante observar que na História da saúde e das doenças as enfermidades são frequentemente entendidas como fenômenos inteligíveis em um contexto social específico que mantém regulação com as condições de salubridade dos espaços, sendo que o enfrentamento das endemias, epidemias e pandemias fizeram e fazem parte das preocupações de mulheres e homens, quaisquer que tenham sido as representações produzidas (PORTER, 2004). Nesse contexto, a doença passou a ser concebida como uma condição de desvio patológico do corpo, que deveria ser recomposto a partir de um padrão normativo de ordem reguladora visando a conformidade das funções vitais. Portanto, um ser humano somente poderia ser considerado normal se desfrutasse de sanidade física e mental, condição que para ser atingida, requeria um controle disciplinar operando não somente acerca da consciência, mas também notadamente sobre o corpo (FOUCAULT, 2012). Contudo, convém observar que o binômio saúde-doença mantém historicidades específicas conforme as temporalidades e espacialidades a que se referem, observando-se que a aplicação da perspectiva histórica não é uma análise biológica, mas fortemente vinculada às dimensões socioculturais.

Convém destacar, diante do exposto até aqui, o fato de que em vários estados brasileiros a história da saúde e das doenças está consolidada como um campo que se apresenta com uma produção substancial, além da diversidade de abordagens e perspectivas das pesquisas acadêmicas. É ainda relevante aventar que as pesquisas em História da saúde e das doenças no Piauí, estado que abriga a instituição acadêmica que publica a revista Contraponto, assim como uma das organizadoras do dossiê que se apresenta, adquiriram um novo dinamismo, particularmente desde o ano de 2018. Ocorria que as pesquisas realizadas sobre as temáticas da saúde e das doenças na História, assim como nas demais ciências humanas e sociais, eram notadamente limitadas desde os anos 2000.4 Pode-se identificar os primeiros trabalhos de piauienses no âmbito dos programas de pós-graduação locais, como também em outros estados, embora tratando-se de pesquisas ainda isoladas, que, frequentemente, abrigavam-se em campos já consolidados como História e cidade, Gênero, História política e Políticas públicas.

Essa condição perdurou sem alterações notadamente significativas até a realização de algumas iniciativas, como a criação do Grupo de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde no Piauí (SANA), vinculado à UESPI e à UFPI. A partir disso, pesquisadoras e pesquisadores reuniram-se para fazer um balanço da produção, passando a atuar de forma mais sistematizada na promoção de eventos acadêmicos especializados, elaborações de teses, dissertações e monografias, publicações dos resultados de pesquisas em periódicos e livros, execução de projetos de iniciação científica, extensão e pesquisa, além da criação do Grupo de Trabalho de História da Saúde e das Ciências da Associação Nacional de História – ANPUH, seção Piauí. Essa condição, enfim, ensejou a criação do novo campo historiográfico, considerando-se que “A constituição de campo de pesquisa pressupõe não só a emergência de temática de interesse razoavelmente coletivo e amplamente socializado, como também a vigência de conjunto de práticas legitimadoras.” (QUEIROZ, 2006, p. 41). Em tal contexto, a consolidação das pesquisas de História da saúde e das doenças no Piauí está particularmente vinculada à função que se atribui às instituições acadêmicas que formam historiadoras e historiadores nos cursos de graduação da UESPI e da UFPI, e, de forma ainda mais pronunciada, ao Programa de Pós- Graduação em História do Brasil- UFPI, que possui caráter acadêmico, bem como ao Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória)-UESPI.

Diante do exposto até aqui, considera-se que as publicações que se apresentam no dossiê intitulado História da saúde e das doenças: objetos, fontes e metodologias cumpriram com a proposta exposta na chamada para publicação, que, por sua vez, indicava a perspectiva de congregar pesquisas acadêmicas locais, nacionais e estrangeiras, que apresentassem uma pluralidade de temas e abordagens, ensejassem a apresentação de pesquisas não somente na área da História, mas também em diversas áreas e campos do conhecimento, assim como revelassem a perspectiva interdisciplinar mediante a aproximação de debates que, muitas vezes, são pensados de maneira dissociada no proscênio da academia.

Nesse sentido, as mais de três dezenas de trabalhos apresentados no dossiê, entre eles entrevista, resenhas e artigos, cujo número volumoso inviabilizou a apresentação individualizada, congregam análises de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros e estrangeiros acerca de diferentes sujeitos, espacialidades e temporalidades, que incidem, sobretudo, entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século seguinte. Isso ocorre em torno de temáticas que congregam aspectos sobre as práticas de agentes não diplomados, a saúde e as doenças no ensino de história, a sanidade infantil, a saúde, a doença e o gênero, a atuação de médicos e farmacêuticos, o funcionamento dos estabelecimentos de serviços de saúde, as iniciativas filantrópicas na saúde e na doença, as políticas de saúde e a atuação do Estado, as análises sobre as moléstias endêmicas, epidêmicas e pandêmicas, as iniciativas de controle visando a salubridade, entre outros. Pode-se reconhecer que, diante da abrangência dos trabalhos apresentados, o dossiê disponibiliza ao público acadêmico o estado da arte que, por sua vez, constitui-se em um indicativo da vitalidade do fortalecimento do campo de História da saúde e das doenças.

Finalmente, convém agradecer ao convite da revista Contraponto por meio do Editor Chefe Professor Dr. Johny Santana de Araújo, do Editor Adjunto Professor Dr. Francisco Gleison da Costa Monteiro e do Secretário Executivo Professor Me. Ronyere Ferreira da Silva, para a organização deste dossiê. Além disso, é pertinente assinalar que a sua viabilização foi o resultado do acolhimento da proposta por parte da comunidade acadêmica, aspecto que indica a receptividade para um diálogo profícuo entre pesquisadoras e pesquisadores que atuaram não somente como autores, mas também foram pareceristas dos textos. Diante do exposto nesta apresentação do dossiê História da saúde e das doenças: objetos, fontes e metodologia, pode-se inferir o fato de que a historiografia continua resguardando amplas potencialidades que conferem efetividade para uma contínua renovação.

Fica o desejo de uma excelente leitura!

Notas

  1. Historicamente, a humanidade sofreu com muitas pandemias, algumas com ciclos repetidos por séculos, como a varíola e o sarampo, ou por décadas, como as de cólera. Ainda podem ser citadas as pandemias de gripe por H1N1 em 1918, por H2N2 em 1957-58, por H3N3 em 1968-69 e por H5N1 nos anos 2000, conhecidas, respectivamente, como gripe espanhola, gripe asiática, gripe de Hong-Kong e gripe aviária, observando-se, contudo, que tais denominações pressupõem estigmas que devem ser usados mediante cautela. SOUZA, Diego de Oliveira. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n.1, Rio de Janeiro, jun. 2020.
  2. Nesse sentido, a pesquisa em História possui como uma de suas dimensões a perspectiva de que o tempo é interpenetrado por uma indissociável vivacidade do presente (BLOCH, 2001).
  3. Conforme Michel Foucault (2008), a partir da perspectiva biopolítica passou a incidir um saber que se espraiava na legislação, nos órgãos administrativos, em estabelecimentos de tratamento e no interior das instituições de pesquisa, permitindo que principalmente os médicos interviessem sobre a doença do corpo humano individual e coletivo que não fosse condizente com o padrão de normalidade.
  4. MELO FILHO, Antônio. Teresina, a condição da saúde pública na Primeira República (1889-1930). 2000. 183f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2000.

Referências

ARIÈS, Philippe. O Homem Perante a Morte I. Portugal: Europa América, 1977.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800, Uma Cidade Sitiada. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

FEE, Elizabeth; BROWN, Theodore. Editorial: Why history? American Journal of Public Health, v. 87, n.11, p. 1763-1764, 1997.

FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977- 1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

HUISSMAN, Frank; WARNER, John. Locating Medical History: the stories and their meanings. Baltimore: John Hopkins University Press, 2006.

LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: Novos Problemas, Novas Abordagens, Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976 (volumes I, II e III).

LE GOFF, Jacques (org.). As Doenças têm História. Lisboa: Terramar, 1985.

MELO FILHO, Antônio. Teresina, a condição da saúde pública na Primeira República (1889- 1930). 2000. 183f. Dissertação (Mestrado em História)- Programa de Pós- Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2000.

PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record, 2004.

QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. Mulheres plurais. In: QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. Do Singular ao Plural. Recife: Edições Bagaço, 2006. p. 41-54.

REVEL, Jacques; PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e sua história. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre Nora (org.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

ROUSSO, Henry. Sobre a História do Tempo Presente: Entrevista. Entrevistadores: Silvia Maria Arend; Fábio Macedo. Tempo e Argumento, v. 1, n.1, p. 201 – 216. Jan/jun 2009.

SOUZA, Diego de Oliveira. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n.1, Rio de Janeiro, jun. 2020.

TEIXEIRA, Luiz Antônio; PIMENTA, Tânia Salgado; HOCHMAN, Gilberto. História da Saúde no Brasil: uma breve história. São Paulo: Hucitec, 2018.

Organizadores

Joseanne Zingleara Soares Marinho – Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Docente do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Estadual do Piauí (UESPI)/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Adjunta do Curso de História da UESPI. Líder do Grupo de Pesquisa História da Saúde e das Ciências no Piauí (Sana) e do GT de História da Saúde e das Ciências ANPUH-PI.

Gisele Sanglard – Doutora em História das Ciências e da Saúde – Casa de Oswaldo Cruz- COC/ Fundação Osvaldo Cruz- Fiocruz. Pesquisadora da COC/Fiocruz- RJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz- RJ. Presidenta da Sociedade Brasileira de História das Ciências.

Referências desta apresentação

MARINHO, Joseanne Zingleara Soares; SANGLARD, Gisele. Apresentação. Contraponto. Teresina, v. 10, n.1, p.10-15 jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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