História das mulheres e estudos de gênero: novas questões e abordagens | Ars Historica | 2019

Neste primeiro semestre de 2019, o Comitê Editorial da Ars Historica, revista discente do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ) vem apresentar, na sua 18ª edição, o Dossiê História das mulheres e estudos de gênero: novas questões e abordagens.

Em época de cortes e contingenciamento é preciso renovar o fôlego diariamente para conseguir dar continuidade aos trabalhos acadêmicos. Vive-se um momento de grande tensão política e um crescimento do conservadorismo, das estatísticas de violência contra as mulheres, de casos de homofobia, entre outras formas de violência física e simbólica. Fazer história social das mulheres ou história das categorias de gênero é, portanto, um exercício de engajamento diário.

Sobre o papel da mulher na História do Brasil, é necessário afirmar que, durante muito tempo, os trabalhos produzidos eram tributários de uma historiografia que ressaltava os aspectos legais da relação conjugal e matrimonial, de forma explicitamente binária, sexista e a partir de categorias determinantes. No período colonial, a mulher foi, muitas vezes, representada como aquela que exerceu figuração secundária no tocante à sua agência política, social e cultural. Entretanto, muito embora não retratada sempre na documentação usualmente utilizada, não se pode afirmar, e seria impossível fazê-lo, que ela não exercia protagonismo fundamental no cotidiano.

Nos últimos anos, sob a influência do linguistic turn (virada linguística), a historiografia tem se voltado para a necessidade da busca de novas abordagens teórico-metodológicas e novas fontes no fazer histórico. Assim como ressaltado por Rachel Soihet, em seu balanço sobre “o estado das artes” da História de gênero em 1998*, estas teriam possibilitado, aos historiadores, a análise “(d)as diversas formas de atuação e intervenção femininas” nos processos históricos. Avançamos muito nas análises historiográficas desde o final da década de 1990. Essa nova geração de estudos marca uma reviravolta epistemológica sobre o lugar das mulheres e das discussões de gênero na história. As representações feminina e de gêneros não-binários, desde então, tem ganhado força nas pesquisas que orientam monografias, dissertações e teses nas Academias brasileiras e internacionais.

Os trabalhos de pós-graduação, que aqui apresentamos, contribuem, por sua vez, para contextualizar e historicizar a construção e agenciamento dos gêneros, da sexualidade e a atuação das mulheres e de outros grupos não-binários. Esta edição conta com a colaboração de 12 trabalhos, a saber, 6 artigos para compor o dossiê temático, 3 artigos livres, 2 resenhas e 1 nota de pesquisa, os quais possuem recortes que transitam por diferentes temporalidades e dimensões sociais, políticas, culturais e teóricas. Este trânsito enriquece os debates históricos e incorpora questões que transcendem as barreiras disciplinares formais.

Os dois primeiros artigos que abrem o dossiê temático trabalham temas de História das Mulheres e de gênero no período colonial. O primeiro é de autoria de Taís Capucho e intitula-se Pregadoras e guerreiras invisíveis: mulheres indígenas e a colonização do Brasil. Nele, a autora analisa a agência de mulheres indígenas no processo de conquista da América portuguesa. O segundo artigo, Méritos da conquista e participação feminina no Vice-reino de Nova Espanha (séc. XVI), escrito por Augusto Godinho Vespucci, estuda a participação feminina na conquista e no primeiro povoamento de colonos na região da Nova Espanha.

Em seguida, os artigos Viver na intimidade do lar: inquietações e insubordinações em Senhora (1875), de José de Alencar, de Mirian dos Santos Marques e, Questões de gênero, questões de si: as correspondências de Gabriela Mistral e Victoria Ocampo, de Ana Beatriz Mauá Nunes, engendram uma discussão entre gênero e literatura. A primeira, aprofunda-se na construção do feminino na obra Senhora, de José de Alencar, e a segunda, pela correspondência de escritoras que buscam construir suas identidades, não só no campo intelectual, mas também como porta-vozes femininas, seus anseios políticos e suas visões de mundo.

Na esteira, temos o artigo Do pecado nefando ao direito de existir: notas sobre a homoerótica no Brasil XVII-XX, de Rhanielly Pereira Do Nascimento Pinto, onde o autor faz um balanço da historiografia que trata do tema das formas de representação e invenção da homossexualidade no Brasil. Abrangendo uma longa temporalidade e dando enfoque aos estudos de gênero, o autor analisa as disputas em torno da construção de categorias e de identidades de gênero. O dossiê, se encerra com o artigo A construção da imagem da “mulher moderna” no início do século XX no cinema e na imprensa, de autoria de Tatiana de Carvalho Castro, o qual aborda a construção da identidade feminina pela moda, em filmes como Brasa Dormida (1928) e em periódicos como as revistas Fon Fon, Cinearte, entre outras.

As resenhas dos livros que aqui apresentamos têm em comum, para além diversidade de objetos e problemas, o exercício de fundamentar seus olhares em questões da contemporaneidade e alinhadas com a temática do dossiê.

A seção de artigos livres é composta por três trabalhos. O artigo de Diego Souza, Ensino de História e História Pública: territórios comuns, zonas de contato e diálogos possíveis, no qual o autor realiza um balanço historiográfico sobre os debates mais atuais da área de História Pública, enfatizando as contribuições que essas discussões têm trazido para repensar metodologias e aplicações na área de Ensino de História. O segundo artigo desta seção é de Felipe Alexandre Silva de Souza, intitulado “O inimigo, como os chamamos; a guerrilha, como a BBC os chama”: a Dekemvriana grega segundo a perspectiva de soldados britânicos (1944). Nele, o autor analisa as controvérsias narrativas surgidas a partir de correspondências de soldados britânicos alocados na Grécia na etapa final da Segunda Guerra Mundial. Para finalizar a seção de artigos livres, temos o artigo O exílio tratado enquanto fenômeno múltiplo: a experiência na vida e obra de Paulo Freire, de Philippe Chaves Guedon, que analisa parte da trajetória de Paulo Freire no exílio, a partir de entrevistas e outras fontes para pensar como esta experiência é um processo coletivo e que ela influenciou a visão de mundo de Freire.

Por fim, este volume encerra-se com a nota de pesquisa de Bianca Zaene Mota, Entre o fato, a memória e o narrado: reflexões a partir do desenho animado Avatar: A Lenda de Aang. A autora analisa o desenho pelas possibilidades que este tipo de fonte cinematográfica e imagética possui como instrumento de uma construção narrativa.

Assim sendo, fazemos questão de destacar que esta 18ª edição, em seu conjunto, apresenta- se também como uma forma de resistência política, social e humana. Afinal, estes trabalhos são fruto da resiliência da pós-graduação e, por isso, trazem impresso o esforço contínuo manter ativos os projetos discentes, mesmo em tempos tão sombrios. Deste modo, convidamos o leitor a folhear esta revista e a participar conosco, de um movimento de resistência, engajamento e lutas que envolvem as contribuições que aqui apresentamos.

Nota

* Soihet, R. (2013). História das mulheres e história de gênero: um depoimento. Cadernos Pagu, (11), 77-87. Recuperado de https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8634464. Acesso em: 16/06/2019.


Organizadores

Millena Souza Farias – Editora chefe

Mareana Barbosa Gonçalves Mathias da Silva – Coeditora chefe


Referências desta apresentação

FARIAS, Millena Souza; SILVA; Mareana Barbosa Gonçalves Mathias da. Editorial. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 18, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]

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