História do Estado do Espírito Santo | José Teixeira Oliveira

É sempre bem vinda a reedição feita com recursos estaduais de um livro importante e fora de comércio faz tempo, para que seja usado por acervos e instituições publicas, bibliotecas, pesquisadores das mais variadas procedências, níveis sociais ou profissões 2. Publicada pela primeira vez em 1951 e pela segunda em 1975, a História do Estado do Espírito Santo do carioca José Teixeira de Oliveira é a mais importante e completa narração dos quase cincos séculos de existência de uma terra chamada Espírito Santo, parte de uma terra maior chamada na seqüência pelos invasores e viajantes europeus de Ilha da Vera Cruz, Província de Santa Cruz 3 Terra Brasilis, “arquipélago do Capricorno”, e finalmente Império, depois Republica Federativa do Brasil. Parte da Coleção Canaã, organizada pelo Arquivo Publico do Estado do Espírito Santo, o volume integra assim uma série de outras valiosas publicações de documentos e narrativas históricas.

Ocasião a não se passar em silencio, esta terceira edição é acrescentada também pelos textos de dois especialistas, uma apresentação do prof. Luiz Guilherme Santos Neves e um prefácio do prof. João Eurípedes Franklin Leal, o qual teve a oportunidade de levantar documentos inéditos, sobretudo de procedência dos arquivos históricos de Portugal.

A narrativa de Teixeira pode ser considerada como uma elaboração e acumulação de dados de tipo tradicional, e ilustrada com plantas geográficas antigas e dados estatísticos de vários tipos. “Historia maciça” a chama o mesmo autor, preocupado em relatar e acumular fatos e não comentários: “Comentários , alias, do que temos nos esquivados sistematicamente, preocupado em oferecer a maior copia possível daquilo que se poderia denominar historia maciça” 4 . Livro de história tradicional, all’antica, embora exercício meritório de reconstrução de dados e fontes de arquivo, mas nada comprometido com a historiografia, a critica histórica ou a enorme contribuição das escolas criticas que surgiram somente no “século breve”, o XX.

Essencialmente, e dito claris verbis, o livro do Teixeira é uma historia das elites políticas, militares e econômicas que se alternaram na capitania, na província e na república. Há inúmeros exemplos dessa que é uma característica estrutural da construção do texto e da filosofia do historiador. Quando o cultivo do café começa a substituir com certo sucesso o cultivo da cana de açúcar, uma monocultura por outra, nas décadas de 1850 e 60, falando de “O café e sua nobreza”, Teixeira não faz mistério do quem ele esta’ verdadeiramente falando: “Em escala bem mais modesta do que na província do Rio de Janeiro, o Espírito Santo teve sua nobreza do café representada pelos barões de Itapemirim, Aimorés, Timbui e Guandu”5 , aqueles mesmos barões, e assinalavelmente o de Itapemirim, que o mesmo Teixeira relata ter sido apontado “como negociante de escravos e apaniguador de negreiros”6 numa época em que a política oficial do Império alinhava-se com o abolicionismo do “trato dos viventes” praticado pelos demais poderes internacionais, e a marinha brasileira vigiava as costas caçando contrabandistas. O que não deixava de registrar a entrada no país, somente em 1848, de um total de 60.000 “peças”, isto é, de escravos capturados em África. Um pudor especial leva Teixeira a nunca usar o termo ‘escravocrata’, menos ainda do que penetrar nas senzalas de noite ou nas lavouras espiritosantenses de dia. Para ele existem somente “fazendeiros” que vivem, como no caso dos três barões de Itapemirim, numa casa grande verdadeiro palacete em estilo castelo medieval à beira do rio Itapemirim, com detalhes arquitetônicos de mármore e vasilhas de prata pesada. Existe uma foto panorâmica do palacete do barão, parte do acervo fotográfico de dezesseis fotos, de autoria do francês Victor Frond, achado por Cilmar Franceschetto na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e publicado como pos-facio ao livro de viagem de von Tschudi, a ser mencionado mais em frente.

Avançando rumo aos primeiros anos cruciais da república no Espírito Santo, e a fatídica fin-de-siècle, cabera’ ressaltar que Teixeira nunca fala do fenômeno “coronelismo”, nem usa a expressão “república dos coronéis”, como faz tempo é aceito pela historiografia brasileira do século XX. Mas é exatamente isto que aconteceu no país todo e que continuou marcando as primeiras décadas da jovem republica: o fortalecimento de elites regionais donas do poder, ou seja, de coronéis cuja influencia baseada na propriedade rural, controlava totalmente a maquina político-eleitoral; ao mesmo tempo que, em âmbito nacional, as elites paulista e mineira monopolizavam a eleição a presidente da Republica. “O termo coronel se originou da patente da Guarda Nacional, concedida aos fazendeiros, e, às vezes, também a comerciantes. A eles cabia o exercício do poder político… Segundo Janotti, a organização da administração metropolitana, aliada às dificuldades de comunicação entre as diferentes regiões do Brasil, combinada com a corrupção do funcionalismo real português, permitiram a ascensão ao poder privado e foi esse poder privado que possibilitou a formação de grupos donos do poder formados pelos coronéis… A maior arma do coronel era “o voto de cabestro””, nos lembram utilmente dois historiadores capixabas 7. E coronéis do latifúndio e da política foram Muniz Freire, os Monteiros, dinastia que além de dois presidentes do estado expressou o irmão deles, o bispo Dom Fernando8, e Florentino Avidos, ou seja, aqueles que mudaram a cara ainda de capital provinciana e colonial da cidade de Vitória, e que tentaram encaminhar o estado rumo a uma certa modernidade administrativa. No Espírito Santo (e no Brasil afora) as oligarquias mostraram sim “vitalidade e permanência” (Santos Neves): a coligação dos Monteiros no poder até os anos 30, segundo Hees e Franco, “Apos os anos 40… voltou à carga, ficando no poder até 1976” 9, praticamente quase um século de hegemonia familiar.

De desproporcionalidade da obra do Teixeira fala corretamente Santos Neves na apresentação, apontando os catorze capítulos dedicados às origens coloniais, três à província e três à república, com o vigésimo capitulo, “Arrancada para o futuro”, acrescentado desde a segunda edição, titulo de sabor claramente ufanista, menos pos-zweiguiano (Brasil, um país do futuro) e mais desenvolvimentista à moda da “revolução” dos governos militares, (parágrafo “A revolução chega ao Espírito Santo”). Até o governo Artur Gerhardt (1971-75), o ultimo considerado, segundo Teixeira o Estado entra em um circulo virtuoso de política eficiente e modernizadora em todos os setores da sociedade. Sem duvida um certo tom ufanista e “diplomático” da prosa e das intenções do autor se explicam com a tarefa de escrever uma “historia oficial do Estado” 10, mas também, historiograficamente, com um olhar sentimental às míticas origens da colônia, da pequena pátria provinciana, tentando erguer um monumento mergulhando na nascente de uma identidade precária e não fácil de se definir. Nesse sentido, algum tempo atrás, eu denunciava a tendência na escrita histórica em geral e na historia local e estadual a uma “mitologia das origens”, para servir à construção de um caráter imaginário a qualquer custo e, de outro lado, convidava a uma visão mais abrangente e problemática das dinâmicas socioeconômicas e culturais de uma terra, de um povo11.

E vamos a uma outra questão que de um lado nos confirma os limites da abordagem do historiador, do outro nos da’ a oportunidade de ler a historia do Estado com as lentes da historia social e com a leitura das dinâmicas econômicas que verdadeiramente impulsionaram a formação da modernidade capixaba, produto também de um olhar “de fora”, como será mostrado: o papel importante da imigração de massas de europeus a partir dos meados do século XIX. O punctum dolens, mas revelador, da abordagem de Teixeira a respeito esta’ contido numa longa nota de rodapé, cujo primeiro parágrafo, que Santos Neves cita, mas não na integra, vale a pena reproducir inteiro:

Sem pretender depreciar a valia da colaboração dos colonos europeus, cumpre situa-la nos justos termos. Fora do Espírito Santo – mesmo entre as classes melhor esclarecidas – notamos pronunciada tendência para atribuir seu desenvolvimento ao trabalho de emigrantes europeus. Talvez por influencia da leitura de Canaã, de Graça Aranha. E’ mister atentar nos fatos. Exceção feita dos açorianos – que, como os demais colonos, se isolaram dentro do seu grupo – os europeus, ao chegarem à província, já encontraram resolvidos, ou em via de solução, os problemas mais cruciantes da terra. A penetração – dificillima – foi realizada pelos próprios capixabas, em boa parte auxiliados pelos mineiros que desciam em busca de melhor oportunidade no Espírito Santo, e até pelos paulistas, a exemplo do barão de Itapemirim, belo exemplar de bandeirante do século XIX. Não consta que os colonos tenham, em tempo algum, experimentado a ferocidade dos indígenas. Suas terra ficavam muito aquém dos domínios botocudos. As primeiras estradas já permitiam transito mais fácil entre os diferentes núcleos de população. Ao estrangeiro coube receber a terra penosamente conquistada e lavra-la. Ilhados nas suas colônias, mui remotamente influenciariam a agricultura e a indústria com seus métodos, necessariamente mais adiantados. Aquí – como no resto do Brasil – a conquista da terra foi obra exclusiva dos brasileiros 12.

Culpar a literatura de má interpretação dos fenômenos histórico-sociais é postura curiosa, mas não inusitada. Para alguém ha sempre artistas e intelectuais diabolicamente engajados a formar (ou deformar) a mente do publico inocente. Ainda mais curioso que seja apontado como uma “influencia”, um modismo discutível, um livro importante na literatura brasileira e obra-prima do naturalismo pré-modernista-impressionista , escrito por um autor que inspirou a Semana de Arte Moderna paulistana (1922). Como se a literatura, ou o cinema, não pudessem naturaliter espelhar a realidade social e expor significativamente belezas e feiuras da vida…, como se a arte, às vezes, não fosse a mais perfeita interpretação do Zeitgeist ou a profecia do amanha.

Integrando o que Teixeira diz sobre a penetração dos brasileiros no Estado, é bem lembrar que foi iniciativa de bandeiras “particularmente intensas durante a segunda metade do século XVIII, nas florestas do leste da capitania, um enclave entre Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, período em que pelo menos 79 expediçoes atravessaram a região, transformando a área em um cenário de operações militares” 13. Eram as “terras incógnitas ou proibidas” até então do Vale do Rio Doce. “Ferocidade dos indígenas” a parte, tratou-se de uma verdadeira guerra de conquista sangrenta das terras de Coroado, Puri, Botocudo e outros. E’ sabido que os imigrantes europeus podiam escolher entre varias opções de adquirir a terra e os primeiros recursos pelo governo Imperial e através de agentes, ora inescrupulosos ora idôneos, mas afinal nada era de graça e tudo fruto do trabalho braçal livre. Sabemos também que na fronteira mineiro-capixaba mencionada “Entre 1701 e 1836 foram concedidas 7.991 cartas de sesmaria [lote de terras, N.d.A.], ou seja, um verdadeiro loteamento das terras nativas” 14. O sistema de sesmarias, que deixava muita parte das terras inculta e improdutiva, acabaria formalmente com a Lei de Terras de 1850, lei regulamentada quatro anos depois. Embora não se conheçam noticias de choques entre colonos europeus e indígenas em terras capixabas, em outras partes do país, em Santa Catarina, por exemplo, foi iniciada pelos colonos alemaes do Doutor Blumenau uma espiral de extermínio e de resistência entre bugres (Xokléng e Kaingang) e bugreiros. Os italianos, mais tarde, seguiram o exemplo dos alemães 15.

E’ incontestável que, “a capitania”, como era denominado o Espírito Santo até o começo do século XIX, ficava um lugar de economia escassa, difícil, ligada a monocultura da cana de açúcar, um lugar parado no tempo. A mineração na serra do Castelo, nos informa Leal, iniciada em 1703, tinha sido proibida. Serafim Derenzi, decano dos historiadores das comunidades italianas no Estado e fonte primaria de José Teixeira no assunto, forneceu dados desanimadores (os anos 1817-1870) a respeito do povoamento do interior capixaba: “Não havia atrativo para entrada de novas famílias . O pequeno e efémero surto de mineração, ocorrido em 1751 nas águas do Caxixe e arredores de Castelo, não deixou saldo humano. A penetração dos baianos pelos afluentes do Mucuri, do São Mateus, dos mineiros que transpuseram a Serra do Caparao’ e dos fluminenses, pelas cabeceiras do Itapaboana, pouca influencia inseriram no computo geral” 16. Sendo os principais produtos açúcar, algodão, mandioca, milho, arroz e gado, “A primeira noticia sobre o café, que no final do século XIX iria modificar a economia capixaba, aconteceu em 1812 com uma pequena produção advinda da região do rio Doce” 17. São os anos do dinâmico governador Rubim (1812-19).

Não seria, então, esta visão do Teixeira de enfatizar a colonização ‘interna’ do Espírito Santo, (ignorando ou relativizando a contribuição ‘de fora’ vindo da imigração européia) ainda conseqüência de uma ideologia “bandeirantista”, à semelhança das idéias dos constitucionalistas paulistas de 1932, que precisavam de um mito nativista (os bandeirantes paulistas entre os primeiros fundadores e unificadores do país) na luta contra o exército do governo federal?

Nesse respeito, cabe apresentar como mais inovadora e convincente a corrente historiográfica segundo a qual “o Brasil se formou fora do Brasil [?]”, abastecido pelo trafego negreiro luso-brasileiro e luso-africano, tendo como pano de fundo a geopolítica do Atlântico Sul. E’ difícil defender um continuísmo territorial do Brasil colônia e Império, assim como suposto pelos historiadores tradicionais como Teixeira. Norteando numa outra e estimulante direção, longe do nativismo, continuísmo acrítico e relativo ufanismo das origens, vai a perspectiva de um Luiz Felipe de Alencastro que aponta: “A transparência intermitente de uma matriz colonial que é distinta da unidade nacional brasileira inverte a cronologia e sugere uma seqüência histórica alternada: o século XIX esta’ mais perto do XVII que do século XVIII. Para interpretar o Império do Brasil é preciso voltar ao Seiscentos e estudá-lo na perspectiva sul-atlântica” 18.

Mas esta idéia de uma formação “de fora” do Brasil pode-se estender também a épocas modernas e contemporâneas do país. Eis a conclusão do livro de Alencastro:

Depois de 1850, o mercado do trabalho nacional continua dependente, nos seus setores dinâmicos, do trato de emigrantes europeus, levantinos e asiáticos. Só’ nos anos 1930-40 a reprodução ampliada de força de trabalho passa a ocorrer inteiramente no interior do território nacional. Essa é a verdade de longue durée que apreende a formação do Brasil nos seus prolongamentos internos e externos: de 1550 a 1930 o mercado de trabalho esta desterritorializado: o contingente principal da mão-de-obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional. A historia do mercado brasileiro, amanhado pela pilhagem e pelo comercio, é longa, mas a historia da nação brasileira, fundada na violência e no consentimento, é curta 19.

Os ups and downs da economia capixaba sendo recorrentes, o quadro geral da província ao longo da primeira metade do século XIX permanecia fortemente negativo, rumo a uma decadência aparentemente sem saída. Para ter uma idéia da situação com que se depararam os novos agentes de transformação socioeconômica espiritosantense, os emigrantes europeus com sua própria ética do trabalho e cultura material, a partir do primeiro grupo de cento e sessenta e três alemães vindos da Prussia renana que iriam formar o núcleo de Santa Isabel (1847), cita-se habitualmente o Oficio dirigido pelo presidente Inácio de Acioli de Vasconcelos ao marques de Queluz, ministro do Império (1824), acrescentado de mapa de dados econômicos:

É preciso enfim que S. M. Imperial esteja cabalmente ciente de que esta Província é a mais miserável do Império: não tem agricultura nem comercio: seus habitantes são pobríssimos. Não sei absolutamente donde possa tirar recursos para pagar uma grande divida atrasada e nem mesmo para fazer as despesas correntes, e muito menos para suprir aos preparativos da defesa, tão indispensáveis, que até as carretas do pequeno parque de artilharia estão precisadas de conserto: a tropa nua e descalça: e enfim aqui tudo é fome 20.

Ao centro desse cenário de atraso e de estagnação, a cidade de Vitória desenrola esta tarefa de sentinela solitária que protege o acesso às Minas Gerais e às suas riquezas, “uma vila fortificada”21 que, segundo o relatório do capitão-mor Dionísio Carvalho de Abreu (1724), tinha cinco fortalezas e um reduto quadrangular, fortificações periodicamente reparadas. Mas, a parte os ataques holandeses de 1625 e 1640 (“a Praia de Suha, onde o Olandes fez o seu desembarque no principio do reinado do Senhor D. João quarto” 22, Vitória parece compartir um destino de posto avançado militar feito Deserto dos Tártaros, pensando no romance do italiano Dino Buzzati: um lugar melancólico e sombrio a guarda de um espaço vazio em boa parte inacessível, aonde pouco acontece, a não ser a espera infinita de um inimigo improvável, de bárbaros invasores que nunca aparecem. A geografia de ilha faz de Vitória uma capital flutuante com problemas de comunicação viária e de abastecimento. Escreve um visitante suíço em 1860: “Em Vitória é extremamente difícil conseguir meios de transporte relativamente úteis, sobretudo mulas e cavalos, o que em parte se explica pelo fato da capital da Província do Espírito Santo estar localizada numa ilha” 23. Um lugar tradicionalmente esquecido pela metrópole e pelo governo central, primeiro como apêndice da Bahia e depois do Rio de Janeiro, nem os representantes eleitos a conhecem de perto. Aos meados do século XIX “Os Deputados gerais e os Senadores da Província, na maioria, não conheciam o Espírito Santo. Vinham indicados da corte pelo partido que estivesse no poder. E os presidentes da Província os elegiam, porque mandavam os colégios eleitorais. Administrativamente a Província não mereceu cuidados do poder central” 24. Um dos maiores acionistas da sociedade anônima dona da Colônia de Rio Novo, o major português e antigo traficante de escravos, Caetano Dias da Silva, (é sempre nosso viajante suíço a nos informar), “diretor nomeado pela companhia, reside quase sempre no Rio de Janeiro; vive em discórdia com os outros acionistas. Seu procedimento em relação a eles deu origem a uma correspondência escandalosa nos jornais da capital” 25.

Até o nosso historiador Teixeira de Oliveira esqueceu de visitar o Estado sobre que iria publicar um livro de centenas de paginas, preferindo-lhe os arquivos históricos da cidade do Rio de Janeiro. Santos Neves na apresentação à terceira edição menciona que ele visitou rapidamente a cidade de Vitória nos anos ’70. Comportamento de antiga data, se até o quarto donatário da capitania, Ambrosio de Aguiar Coutinho da Camara (1644-48), nunca pisou em solo capixaba.

Dos limites do livro de historia “maciça”, oficial e elitista do Teixeira já foi dito. Gostaríamos de apontar outros métodos historiográficos como mais idôneos a explicar a fundo a realidade de indivíduos e de inteiras comunidades que transformaram um país imenso como o Brasil: a historia social, a micro historia, a corrente chamada nouvelle histoire ou new historicism, a historia oral, etc., sem excluir o manejo conjunto delas. Estes e outros métodos aguardam desvendar uma matéria de fatos ainda inexplorados e de documentos ainda não analisados. Fica inaceitável a negligencia do historiador com pelo menos noventa anos de emigração européia e de seus descendentes, e dos italianos especificamente, que até hoje chegam a formar a metade da população espiritosantense. Não se trata de substituir um ufanismo por outro. Existe plena concordância entre sérios pesquisadores e cronistas de ontem e de hoje. Em 1974 Derenzi afirmava: “Teixeira de Oliveira, autor de nossa melhor e mais documentada Historia do Espírito Santo, é praticamente omisso sobre a emigração… Indubitavelmente a imigração italiana foi a alavanca que venceu a inércia tricentenária do Espírito Santo. Rejuvenesceu a raça, incrementou a riqueza, concorreu galhardamente, para que nos orgulhemos do sacrifício de nossos maiores”26. É de 2006 o quadro definitivo da questão, traçado claramente por Leal: “Foi o processo de entrada de colonos alemães, italianos e outros europeus que, juntamente com a cultura do café, redirecionou a economia do Espírito Santo, com imensas conseqüências sociais, culturais e políticas que merecem um estudo a parte” 27.

A “maldição” da colônia (Caio Prado Jr.), e da Província, baseada sobre o terceto latifúndio-monocultura da cana de açúcar-escravidão, acabava com o sucesso da monocultura do café em pequenas propriedades agrícolas, (e com sua exportação e tributação), a qual, embora não completamente confiável e viável, iria financiar os projetos de reforma da capital e do Estado (governos Muniz Freire e demais governos do começo do século). Tem escrito o especialista de historia econômica, o capixaba Ivan Borgo: “Com o café, criava-se um produto que colocava o Estado na corrente do comércio internacional, superando os bolsões da economia natural. Formava-se na economia interna um inédito nível de acumulação de capital, mesmo que modesto, gerado pela atividade econômica. O que não aconteceu com o ciclo do açúcar que antecedeu o do café… Dizia aquele economista inglês do passado [Nassau William Senior (1790-1864), N.d.A.] que a formação do capital se da’ pela abstinência. Mas foi exatamente o que aconteceu no interior do Espírito Santo, em especial com os emigrantes europeus que ficaram conhecidos pela frugalidade. Foi essa frugalidade que, afinal, possibilitou tantos projetos pessoais de investimento e que são bem conhecidos dos capixabas”28.

Mas, para não deixar incompleta a leitura da immigrant experience, diriam os americanos, que não foi somente um fenômeno brasileiro ou espiritosantense, mas mundial e epocal, nos cabe tentar uma reflexão mais profunda do fenômeno. Demasiadas vezes assistimos ao exercício da superficialidade, com efeitos de espectacularidade sentimental e saudosa, no tratamento de assuntos históricos como na celebração acrítica de feitos do passado comum. A indústria cultural e a mídia eletrônica são mestres na construção e no marketing desses ‘produtos’. Pessoalmente, eu vejo ao centro do fenômeno das comunidades migrantes o trabalho do ideal da esperança, palavra que tem uma rica historia conceitual e moral. Spes, ultima dea na religião romana, virtude teologal para os cristãos, a esperança vai além de ser um sentimento piedoso, um psicologismo pequeno e consolatório. No pensamento do filosofo neo-marxista Ernst Bloch, Das Prinzip Hoffnung (o principio esperança) é um impulso primordial da consciência humana, que transcende o presente e o existente rumo à dimensão do futuro. E’ a espera que permite de pensar e realizar um projeto de vida norteado pelo sonho do bem supremo (summum bonum) e do bem comum (common good). Bloch sugeria detectar esse pulo dentro do futuro, que chamava de “espírito da utopia” e “ontologia do ainda não”, até nas varias manifestações da arte de consumo, como a musica popular ou o cinema. Poderia ser, por exemplo, a novela televisiva da Rede Globo “Esperança”, que retratava a epopéia da emigração italiana ao Brasil. Ou seja, sinais lançados tanto pela cultura alta quanto pela cultura pop podem revelar a capacidade de transformação contida nos elementos de esperança, desejo, imaginação do futuro de uma especifica experiência social e histórica.

Numa das ultimas cenas de Canaã de Graça Aranha, “… Milkau seguia sem propósito, vagando para as bandas do Queimado, a região abandonada, onde fora a antiga cultura do lugar, e que atravessara no dia de esperança em que chegou à colônia” (Cap. XI). Na pagina conclusiva do romance, um Milkau desenganado e cansado de tanto fugir e sofrer entrega a Maria um testamento visionário de esperança:

Não te canses em vão… Não corras… E’ inútil… A terra da Promissão, que eu te ia mostrar e que também ansioso buscava, não a vejo mais… Ainda não despontou à Vida. Paremos aqui e esperemos que ela venha vindo no sangue das gerações redimidas. Não desesperes. Sejamos fieis à doce ilusão da Miragem. Aquele que vive o Ideal contrai um empréstimo com a Eternidade… Cada um de nos, a soma de todos nos, exprime a força criadora da utopia; é em nos mesmos, como num indefinido ponto de transição, que se fara’ a passagem dolorosa do sofrimento… Todo o mal esta’ na Força e so’ o Amor pode conduzir os homens… (Cap. XII).

Não existem mais comunidades como o solidário bairro paulista de Anarquistas, graças a Deus de Zélia Gattai, nem a colônia da Karina de Virginia Tamanini, com sua vida dura e corajosa. Admitimos até que não seja mais viável o velho humanismo que acreditava no surgimento de “novos homens” (Canaã, Cap. XII). Mas a pré-história daquela temporada de solidariedade e cooperação não pode ser esquecida. Hoje, La comunità che viene visa uma humanidade planetária fora de todas as pertenças e as identidades fortes. Ela propõe “uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e absolutamente exposta”29, capaz finalmente de comunicar na época neoautoritária do Estado-Império, da midiocracia e do triunfo da pequena burguesia mundializada.

Notas

2. Seja dito en passant que hoje em dia assistimos a manifestações freqüentes de retomada da escrita histórica e memorial: memórias pessoais, familiares, o modismo das arvores genealógicas etc. Outro fenómeno que deve ser analizado atenciosamente é o retorno da ‘grande’ historia (civilizações, batalhas, líderes…) promovido pela industria cultural com suas inúmeras publicações nas bancas: “retorno do reprimido”, consumismo cultural entre nostalgia e new age, etc. ?

3. Veja-se “De como se descobriu esta província e a razão que se deve chamar Santa Cruz e não Brasil”, capitulo primeiro da Historia da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576) de Pero de Magalhaes de Gandavo, primeiro livro impresso de historia do Brasil.

4. TEIXEIRA de OLIVEIRA, José. Historia do Estado do Espírito Santo. 3ª edição. Vitoria: Arquivo Publico do Estado do Espírito Santo, 2008, p. 368.

5. TdO. Ob. cit., pp. 420-21.

6. Ibidem, p. 372

7. RODRIGUES HEES, Regina e PIMENTEL FRANCO, Sebastião. A república no Espírito Santo. Vitoria: Univila, 2003. pp. 25-26.

8. “o grande condutor e inspirador político dessa família que merece um profundo e isento estudo”, o chama Leal In: TdO . Ob. cit., p. 533.

9. HEES e FRANCO. Ob. cit., p. 28.

10. SANTOS NEVES, Luis Guilherme. In: TdO. Ob. cit., p. XXVII.

11. “Não é verdade que o Espírito Santo tem 470 de historia desde a chegada de Vasco Fernandes Coutinho na Prainha de Vila Velha, ou 445, considerando a fundação da Vila Nova da Vitoria. Isto pode fazer parte da mitologia das origens capixabas, confirmando o modismo de correr atrás da Missa de Porto Seguro de Cabral, ou seja, o mito da descoberta portuguesa. Na verdade o Espírito Santo é muito recente: não tem mais do que um século e meio”. TACITUS. “A mitologia das origens”. In: Essa, n. 1. Maio 2005, p. 45.

12. TdO. Ob. cit., p.355.

13. CHAVES de RESENDE, Maria Leonia. “Sertão mineiro loteado à força”. In: Revista de Historia da Biblioteca Nacional. n. 4, julho 2008, p. 37.

14. CHAVES de RESENDE. Ibidem.

15. Veja-se o livro de memórias de um sacerdote torinense, que ao começo de 1900 acompanhou inteiras comunidades de camponeses italianos em Santa Caterina: MARZANO, Luigi. Coloni e missionari italiani nelle foreste del Brasile. Firenze: Tipografia Barbèra, 1904. Reimpresso em 1991.

16. DERENZI, Luiz Serafim. Os italianos no Espírito Santo. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1974, pp. 28-29.

17. LEAL. Ob. cit., p. 520.

18. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. pp. 353-54.

19. ALENCASTRO. Ob. cit., pp. 354-55.

20. TdO. Ob. cit, p. 329

21. LEAL, cit., p. 521. O relato do Governador Rubim enviado à corte em 1816 confirma Vitoria como cidade militar. Assim resume Leal: “Impressionante era a enormidade de grupos militares aquartelados: Corpo de Tropa de Linha, Companhia de Infantaria, Corpo de Pedestres, três Corpos Milicianos, Batalhão de Artilharia, Companhia dos Henriques e Regimento de Infantaria, com duas Companhias de Cavalaria, todos eles assistidos por um Hospital Real Militar” (p. 526).

22. LEAL. Ob. cit., p. 524.

23. TSCHUDI, Johann Jakob von. Viagem à Província do Espírito Santo: imigração e colonização suíça 1860. Vitoria: Arquivo Publico do Estado do Espírito Santo, p. 68.

24. DERENZI. Ob. cit., p. 28.

25. TSCHUDI. Ob. cit., p. 45.

26. DERENZI. Ob. cit., pp. 61 e 161.

27. LEAL. Ob. cit., p. 533.

28. BORGO, Ivan. “Café e mudança no Espírito Santo”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. N. 62, dezembro, 2008, pp. 147-50.

29 .AGAMBEN, Giorgio. La comunità che viene. Torino: Einaudi, 1990, p. 44.

Paolo Spedicato – Graduado em Letras na Universidade de Padua e com Ph.D. em Literatura Italiana da New York University, é autor de dois livros e vários ensaios sobre a Renascença, o Romantismo, as vanguardas artísticas do século XX, questões de teoria literária, entre outros temas. Foi Professor de Língua e Literatura Italiana na New York University, Brooklyn College (CUNY), UFES de Vitória, e visiting na USP e na UFRJ.


OLIVEIRA, José Teixeira. História do Estado do Espírito Santo. 3. ed. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo e Secretaria de Estado da Cultura, 2008. Resenha de: SPEDICATO, Paolo. Uma história maciça das elites. Dimensões. Vitória, n.24, p. 340-352, 2010.

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