História e epistemologia da Educação Profissional / História Revista / 2020

O presente dossiê reúne contribuições de abordagens teórico‐metodológicas históricas, historiográficas e/ou epistemológicas cujos objetos são os tempos, os espaços, as memórias e as experiências da Educação Profissional e Tecnológica, no Brasil e alhures.

Os artigos estão vinculados a dois eixos. No primeiro, dedicado a uma reflexão sobre a Epistemologia da Educação Profissional, os textos abordam os processos epistemológicos da constituição do campo, bem como o engendramento histórico das relações trabalho‐educação. No segundo eixo, voltado à História e Memória da Educação Profissional e Tecnológica, estão presentes contribuições acerca da história de instituições educativas  ‐ sobretudo na esfera do mundo do trabalho  ‐, dos agentes e dos sujeitos da Educação Profissional (gestores, docentes, técnico‐administrativos e discentes).

Ainda nesse eixo, os pesquisadores apresentaram estudos sobre os processos de produção, circulação e adoção de memórias em experiências relacionadas ao campo da Educação Profissional. Por fim, outros manuscritos se detêm mais particularmente na história da política educacional brasileira, apontando as mudanças e tensões socioeconômicas e políticas em desenvolvimento na sociedade contemporânea. Face a esse cenário mais amplo, apresentamos abaixo, em linhas gerais, o conteúdo dos artigos e suas possíveis articulações.

Os autores Julie Thomas, Olivia Morais de Medeiros Neta e Avelino Aldo de Lima Neto, no texto Educação Profissional e Técnica na França e no Brasil: histórias cruzadas, estabelecem uma comparação, em sentido histórico, entre as concepções e a organização da Educação Profissional na França e no Brasil a partir do século XIX. Para tanto, foi adotada a abordagem da história cruzada, num rico entrelaçamento bibliográfico entre estudiosos de ambos os países. Como ponto de encontro dessas histórias, assinalaram‐se    as tensões entre, de um lado, os defensores de uma profissionalização a serviço do capital e, de outro, os educadores que postulavam a possibilidade de uma formação integral das classes operárias.

Maria Augusta Martiarena de Oliveira escreveu sobre Memórias de uma instituição em construção: a narrativa imagética do IFRS‐Campus Osório (2010‐2013). Com uma abordagem metodológica na qual a fotografia é empregada como fonte de pesquisa, o texto revela possibilidades outras de escrever, com riqueza, a história da Educação Profissional. Ao explorar as potencialidades das imagens, o olhar aguçado da historiadora das instituições educativas indica caminhos teórico‐metodológicos para a preservação da memória da formação profissional e tecnológica no Brasil, sobretudo através da articulação com o Núcleo de Memória do IFRS.

Ainda no contexto do recurso à imagem em nossas investigações, a autora Renata Reis, no artigo Imagem e história: desafios metodológicos para o campo trabalho‐educação, problematizou o uso da fotografia como fonte para a pesquisa histórica no campo trabalho‐ educação, a partir do diálogo com alguns autores que pensam o objeto fotográfico, seu caráter monumental e documental, o estatuto e valor da fotografia como fonte arquivística disponível para uso.

O autor José Mateus do Nascimento no texto Ensino profissional brasileiro no século XIX: ações assistencialistas e de reeducação pela aprendizagem de ofícios escreveu sobre ensino profissional brasileiro no século XIX, abordando as ações assistencialistas e de reeducação pela aprendizagem de ofícios. São reflexões sobre a existência do ensino profissional pela organização de instituições de amparo e de aprendizagem de ofícios, sob a ótica do assistencialismo e da reeducação de menores.

É com esse contexto que dialoga a contribuição de Renan Santos Mattos, no texto O amparo à infância como projeto social: educação e trabalho no Espiritismo de Santa Maria/RS (1930‐1945). O autor enfatizou a atuação de grupos espíritas da cidade gaúcha de Santa Maria, no que se refere às preocupações com a infância entre 1930 a 1945. O tema da profissionalização aparece concatenado à vulnerabilidade social e à consolidação das instituições voltadas a acolher e a instruir meninos e meninas. O manuscrito revela, com originalidade, a importância do Espiritismo no seio das reflexões sobre a educação profissional no Brasil, uma vez que a formação para o trabalho emerge como tema no contexto mais amplo das práticas filantrópicas espíritas e das políticas educacionais da época.

Francisco das Chagas Silva Souza e Karla da Silva Queiroz, no artigo Processos formativos na Unidade de Ensino Descentralizada da ETFRN/Mossoró: uma história de expectativas, adesões e resistências, objetivaram analisar os processos formativos realizados na Unidade de Ensino Descentralizada (UNED) da Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte (ETFRN). A partir de fontes orais construídas através de entrevistas com servidores que atuaram à época da instalação da UNED, em 1995, bem como recorrendo a jornais e outros documentos publicados naquele momento, os autores enfatizam o desejo institucional de formar pedagogos e docentes para a inovadora proposta curricular da escola recentemente instalada na cidade de Mossoró. Souza e Queiroz ressaltam, ademais, as críticas e resistências, por parte desses servidores, a esse processo de formação continuada.

Num contexto similar  ‐  centrada, porém, de modo mais direto na prática pedagógica entre o professor e o aluno  ‐  localiza‐se a contribuição de Rogério Chaves da Silva. O manuscrito, intitulado A história na interseção entre o ensino e a pesquisa: reflexões sobre uma experiência docente na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, compartilha o percurso de uma experiência de docência em História, no contexto do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional. Num entrelaçamento rico e criativo entre vivências de cunho pedagógico e historiográfico, o autor apresenta uma possibilidade de convergência entre o ensino de história ‐ com ênfase na história regional e local ‐ e a prática da pesquisa histórica. Trata‐se de uma contribuição cujos desdobramentos poderão ser explorados por inúmeros licenciandos e docentes em seus processos de formação inicial e permanente para atuação na Educação Profissional.

Natália Conceição Silva Barros Cavalcanti e Gustavo Barbosa, no artigo Ser Professor na Escola Técnica Federal do Pará – ETFPA nos tempos da Ditadura Civil‐Militar investigaram, no período que compreende as décadas de 1970 e 1980 no Instituto Federal do Pará, a construção e o desenvolvimento da carreira docente e das relações políticas e sociais tecidas dentro de uma instituição centenária, voltada para formação profissional da juventude trabalhadora. Ao longo do texto, notamos as interlocuções entre o momento histórico vivido pelo país e as políticas e práticas pedagógicas postas em marcha na então ETFPA.

Tiago Martins da Silva Goulart e Isabel Bilhão, no texto Cursos Técnicos em Agropecuária Integrados ao Ensino Médio: aspectos de sua implementação no Instituto Federal do Rio Grande do Sul – IFRS, analisaram aspectos da criação dos cursos técnicos em Agropecuária integrados ao Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – IFRS. Ao lançar mão dos Planos de Curso dessas ofertas enquanto documento, os autores cotejam os pressupostos legais e pedagógicos do Ensino Médio Integrado. Ao mesmo tempo, trouxeram à tona contribuições de autores da área sobre essa experiência formativa, articulando essa reflexão às realidades de implementação dos cursos nos campi Bento Gonçalves, Ibirubá e Sertão do IFRS. Os resultados apontam para uma ampliação das formas de interpretação, apropriação e embasamentos das políticas educacionais no campo da Educação Profissional.

Os últimos dois manuscritos dialogam fortemente com o texto assinado por Irlen Antônio Gonçalves. Em Chaves de leitura para a análise do discurso político sobre o ensino profissional, apresenta uma interlocução fecunda entre os campos da Educação Profissional e da Análise do Discurso. Embrenhando‐se no discurso político do senador Virgílio Martins de Mello Franco enquanto prática linguageira mediadora da produção histórica, o pesquisador oferece‐nos chaves de leitura para a compreensão das relações entre educação e trabalho na virada do século XIX para o XX. Ao pôr a noção de discurso em diálogo com a História Política, a História dos Conceitos e a História da Linguagem, o autor faculta‐nos tensionar os modos tradicionais da escrita historiográfica da Educação Profissional no Brasil.

Ricardo dos Santos Batista, no artigo Bolsas da Fundação Rockefeller para estudo na Johns Hopkins University: o caso do sanitarista Heraclídes Cesar de Souza Araújo, analisa a viagem internacional do médico Heraclídes César de Souza Araújo para os Estados Unidos, com o objetivo de se aperfeiçoar profissionalmente. Explorando documentos epistolares, o cartão do médico quando bolsista, o periódico O Brazil‐Médico e uma entrevista, o autor perscruta minuciosamente um modelo educacional voltado à saúde pública. A contribuição mostra‐se relevante para a compreensão da história dos intelectuais brasileiros, mormente àqueles que exercerão influência significativa sobre o campo da Educação Profissional em Saúde.

Em direção semelhante se situa o texto assinado por José Geraldo Pedrosa e Nívea Maria Teixeira Ramos, intitulado A educação profissional brasileira dos anos 1920 aos 1950 na escrita de Francisco Montojos (1900–1981). Os autores discorreram sobre a Educação Profissional (EP) no Brasil dos anos 1920 a 1950. Ao longo da argumentação, puseram em relevo a atuação, a escrita e as representações do engenheiro‐educador Francisco Montojos, que atuou no Governo Federal de 1927 a 1961. Forneceram‐nos, dessa maneira, elementos nevrálgicos para a história dos intelectuais da EP.

Um conjunto de textos do dossiê toca questões hoje centrais à história e à epistemologia da Educação, a saber, o gênero e a sexualidade. O primeiro deles é assinado por Francinaide de Lima Silva Nascimento e Andrezza Maria Batista do Nascimento Tavares e intitula‐se Gênero, Sexualidade e Educação Sexual: apontamentos sobre um campo epistemológico em ascensão. Nele, as autoras dialogam com autores da educação e do trabalho para enfatizar o fortalecimento das pesquisas em torno de temáticas pouco usuais no campo da História e da Epistemologia da Educação Profissional.

As investigadoras recorreram a repositórios públicos brasileiros e, a partir de parâmetros bibliométricos, constituíram um corpus documental de 821 produções acadêmicas. Os resultados apontam que as categorias Gênero, Sexualidade e Educação Sexual mostram‐se cada vez mais presentes na comunidade científica brasileira, em diversas matizes epistemológicas, cujos interlocutores em destaque são Michel Foucault, Joan Scott, Guacira Lopes Louro e Judith Butler. Registra‐se ainda um aumento no interesse dos pesquisadores por historicizar, delimitar, demarcar e refletir sobre o campo em diferentes perspectivas, assim como tensões e esforços por sua consolidação em seus diversos âmbitos.

No interior dessa temática insere‐se a contribuição de Raul Velis. No texto La feminización de la universidad y su relación con la filosofía feminista en Europa, analisou o processo de feminização das instituições de ensino. Em sua análise, o autor evidenciou variados processos, envolvendo não só dimensões pedagógicas e didáticas, mas também aspectos sociais, antropológicos e filosóficos.

Na esteira das reflexões anteriores se encontra a autora Ana Cristina Pereira Lima, no artigo Meninas órfãs, irmãs vicentinas e profissionalização feminina no século XIX em Fortaleza (CE). O manuscrito trata do contexto de instalação do Colégio da Imaculada Conceição no Ceará. Na metade do século XIX, vários discursos e práticas sobre a educação feminina viraram pauta importante na imprensa e na legislação, indicando a atuação de diferentes agentes na fabricação ideal de mulher e de mãe. A partir de periódicos da época, fontes oficiais, regulamentos do Colégio, romances e livros de memória, a pesquisadora de debruçou sobre o cotidiano de meninas pobres que recebiam educação profissional e religiosa no recolhimento organizado pelas Irmãs de São Vicente de Paula.

Por fim, encerrando o conjunto de contribuições em torno do gênero e/ou da sexualidade na história e na epistemologia da Educação Profissional, encontra‐se a contribuição das pesquisadoras Ilane Ferreira Cavalcante e Sebastiana Estefana Torres Brilhante, no artigo Mulheres no ensino de Química: questões de gênero no discurso de professoras do IFRN. Inicialmente, as autoras põem em relevo as discrepâncias estatísticas entre homens e mulheres na formação superior em Química e no acesso aos cargos de docentes. Em seguida, por meio de entrevistas com professoras dessa disciplina do Instituto Federal do Rio Grande do Norte, apresentam nuances relativas à influência do gênero no desempenho de papéis sociais, na estruturação de desigualdades em relação as homens e no exercício profissional.

Com a organização e publicização do Dossiê História e epistemologia da Educação Profissional, esperamos que as pesquisas sobre Educação Profissional nas Ciências Humanas e Sociais se ampliem em duas direções: no campo epistêmico, através da mobilização de investigações sobre novos temas, objetos e problemas; no campo das parcerias acadêmicas, por meio da expansão das reflexões para além dos limites brasileiros, mobilizando pesquisadores(as) da América Latina e da Europa e fecundando a Educação Profissional e Tecnológica com outros olhares.

Desejamos uma boa leitura!

Avelino A. de Lima Neto –  Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte Programas de Pós‐Graduação em Educação Profissional (PPGEP/IFRN) e em Educação (PPGEd/UFRN). E-mail: [email protected]

Julie Thomas –  Université Jean Monnet – Saint Étienne/França Centre Max Weber – UMR 5283.

Olívia Morais de Medeiros Neta –  Universidade Federal do Rio Grande do Norte Programas de Pós‐Graduação em Educação Profissional (PPGEP/IFRN) e em Educação (PPGEd/UFRN). E-mail: [email protected]

Organizadores (as)


LIMA NETO, Avelino A. de; THOMAS, Julie; NETA, Olívia Morais de Medeiros. Apresentação. História Revista, Goiânia- GO, v. 25, n. 2, p. 1‐6, mai/ago, 2020. Acessar publicação original [DR]

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