História e Imprensa / Projeto História / 2007

Por ocasião das comemorações dos 200 anos da imprensa no Brasil, somando esforços com iniciativas de outros centros universitários e outras publicações, a Revista Projeto História traz a público um número temático sobre “Imprensa e História”.

Cientes que a importância crucial dos meios de comunicação de massa faz da reflexão sobre a comunicação social um campo interdisciplinar estratégico para a compreensão da vida contemporânea e, motivados pela oportunidade da comemoração, a intenção foi organizar um número da Projeto História que abrisse espaço para a reflexão crítica sobre a História da Imprensa na atualidade. Logo de início algumas questões se impunham para a crítica histórica: No espaço do Bicentenário o que se comemorar? Quem podia comemorar o quê? Que marcos de memória seriam atualizados? O que seria lembrado? O que seria esquecido? Que significados do passado revivido seriam articulados às disputas sobre o lugar e o papel dos meios de comunicações e, em particular, da imprensa brasileira na atualidade? E, principalmente, como os estudiosos da imprensa, com diferentes estudos, temas e abordagens, poderiam contribuir para este debate?

Nos últimos dois anos, os meios acadêmicos foram mobilizados por diferentes apelos e se organizaram para participar das comemorações do Bicentenário. Professores e pesquisadores ligados às diversas áreas envolvidos com a temática – da Comunicação às Ciências Sociais, da Arquivologia à História – desenvolveram pesquisas e debates e preparam livros e artigos sobre a história da imprensa e do impresso. Várias revistas acadêmicas destas áreas organizam dossiês sobre o tema. As semanas de jornalismo de vários cursos, os encontros e seminários de diversas associações acadêmicas propuseram destaque em suas agendas à história da imprensa e a comemoração dos 200 anos. A tônica de preparação destes eventos e publicações tem sido a chamada para a reflexão e a avaliação sobre o desenvolvimento dos estudos sobre a atuação da imprensa e os meios de comunicação entre nós.

No diálogo com agenda pública nacional que coloca em pauta a questão da democratização dos meios de comunicação e do direito a informação e a canais de audiência como questões urgentes da democracia brasileira, a intenção da Revista Projeto História ao organizar um número especial foi também trazer para o espaço das comemorações estudos e pesquisas sobre Imprensa e História, que dando vitalidade as nossas reflexões sobre memória e História neste campo, contribuam para o desenvolvimento da reflexão crítica e para o repensar das perspectivas de presente sobre o tema.

Na configuração de diferentes áreas de pesquisa do pensamento social brasileiro nas últimas décadas e, particularmente, no campo da historiografia, é crescente a presença de estudos sobre a imprensa e / ou que fazem uso de jornais e outras publicações periódicas como principal fonte de pesquisa. Tais estudos, desenvolvidos sob a ótica de diferentes abordagens e procedimentos metodológicos, abrem-se para inúmeros campos teóricos e temáticos.

Este número sobre “História e Imprensa” é composto por artigos, notícias de pesquisa e resenhas que dão visibilidade a reflexão teórico-metodológica e campos e temáticas de pesquisa que na atualidade articulam a diversidade do trabalho de historiadores e outros pesquisadores sobre a Imprensa.

As reflexões que emergem de suas páginas nos remetem tanto à análise da própria imprensa e sua atuação nas diversas conjunturas e situações históricas, quanto a própria atividade jornalística, representada pelos profissionais da área, assim como às análises que fazem emergir das páginas de diferentes veículos impressos múltiplos aspectos da história de nossa sociedade. Remetem também a preocupação com dimensões teórico-metodológicas do trabalho de pesquisa e análise histórica da imprensa e suas relações com outras dimensões da vida social.

Os artigos abordam temas e publicações de diferentes períodos e regiões do Brasil, incorporando também reflexões sobre a atuação da imprensa no contexto da América do Sul. Destaque-se como emergente para os estudos sobre história da imprensa entre nós, a importância assumida pela reflexão voltada para nosso passado mais recente e que indaga sobre facetas diversas das relações imprensa e ditadura no Brasil. Demonstrando o desenvolvimento da pesquisa em diferentes espaços do campo social articulado pela comunicação impressa, para além de sinalizar a importância crucial dos jornais comerciais que a cada conjuntura constituem o que se convencionou chamar de grande imprensa, o trabalho de pesquisa diversifica-se abrangendo publicações da imprensa regional, da imprensa feminina, da imprensa operária, entre outras. A pesquisa nestes diferentes materiais dá visibilidade a um repertório de indagações instigantes e que remetem a campos essenciais da reflexão histórica na área, tais como: as relações entre imprensa, poder e a configuração dos sistemas políticos em diferentes situações; a atuação da imprensa como espaço de mobilização, difusão e generalização de diferentes projetos, valores e personagens de grupos que disputam / afirmam a hegemonia a cada conjuntura histórica; os mecanismos de controle e censura que a cada momento regulam os conteúdos e o acesso aos meios impressos de maior circulação bem como a atuação de publicações alternativas.

A tradução do artigo clássico de Raymond Williams sobre imprensa e a cultura popular na Inglaterra do século XIX, citado por inúmeros estudos, mas de difícil acesso aos pesquisadores, busca contribuir para a expansão das perspectivas históricas do debate na área. Nele, Williams desenvolve perspectivas teóricas e metodológicas instigantes para o estudo das relações entre Imprensa e História Social. No estudo sobre a experiência inglesa no século XX, o artigo aborda temas fundamentais como o dos caminhos e sentidos históricos da popularização da imprensa comercial e o da emergência de espaços alternativos, radicais ou dissidentes no campo da comunicação impressa.

Desde fins do século XIX até períodos bem recentes, atribui-se à imprensa múltiplos significados e finalidades, tais como já o haviam feito desde tempos imemoriais, por exemplo, Olavo Bilac e Lima Barreto, os quais a consideravam válida quando cumpria sua função de auxiliar na implantação de reformas tidas como essenciais à sociedade brasileira. Tal finalidade atribuída à imprensa é recuperada no artigo em que se discute como um Jornal como o Rio News, discute, no período abolicionista, os preceitos e os projetos abolicionistas, assim como as propostas de reorganização da sociedade brasileira depois da abolição. Ou ainda quando se observa a contribuição de um noticiário para o processo de transformação de uma cidade, suas lutas sociais, ou seja, para a constituição de sua identidade. Particularmente, observa-se esta relação no desenvolvimento do primeiro jornal santista, a Revista Commercial, desde fins do século XIX até meados de 1930. Conforme o autor, “a repercussão que tiveram os movimentos abolicionista, republicano e operário em Santos se deve, em larga medida, ao vigor do jornalismo e da imprensa na cidade, que estimularam e potencializaram a circulação de novas idéias”.

Muito distante da atuação em prol do bem público conforme enfatizava Lima Barreto, observa-se em outro artigo, o uso do poder de formar opinião, inerente a este veículo de comunicação de massa, em prol de interesses privados. Com tal ótica dois enfoques se destacam. De um lado, o historiador que recupera o uso da mídia impressa como facilitador da aceitação de acordos internacionais firmados entre nações e de outro, o uso deste mesmo canal de comunicação para fazer ascender à cena pública indivíduos a serviço de interesses privados.

No primeiro caso a historiadora espanhola analisa como os jornais do Chaco (região entre o Paraguai, a Bolívia, Argentina e Brasil) traduziram, no início do século XX, a expectativa da população de participar da vida nacional, na ilusão de que, para tanto, deveriam acompanhar a dinâmica norte-americana. Tomando como documento o principal jornal dessa região que aspirava ser província, demonstra como esse divulga notícias internacionais em detrimento dos acontecimentos locais ou regionais, embora contasse com a colaboração de “todos los chaqueños para exponer problemas y proponer soluciones y manifestar las diversas inquietudes”.

No segundo aspecto, emerge para o leitor o uso da imprensa como veículo de ascensão de figuras inexpressivas à cena pública. Observa-se como tal uso tem sido possível quando os períodicos de grande circulação passam a asociar a imagem do indivíduo à determinadas expectativas da população. Tal perspectiva é aqui analisada a partir da visibilidade que adquire, no início do segundo quartel do século XX, um político como Jânio Quadros, o qual, através da imprensa, vai construindo “uma figura sedutora aos olhos do eleitorado, cuja desconfiança aumentava progressivamente em relação aos seus oponentes”.

No entanto, assim como as associações podem ser positivas para os interesses político / particulares, o podem também ser negativas para indivíduos que atuam na área. Tal se observa, por exemplo, em artigo que analisa a “saia justa” em que se vêem, tanto o próprio jornal, quanto seus colaboradores, jornalistas e proprietários, após terem, de alguma forma, pactuado com ditaduras militares, das quais a burguesia se utiliza para fazer valer seus interesses de forma autocrática. Nesta perspectiva, resgata-se das páginas de grandes matutinos em tempos bem recentes, os esforços empreendidos por estes sujeitos, para desvincular sua imagem da última ditadura vigente no país. Analisa-se, não a trajetória do jornal, mas a de “jornalistas íntimos ou não do círculo policial repressivo, os quais trocaram intencionalmente a narrativa de um acontecimento pela publicação de versões que acabam por corroborar o ideário autoritário oficial, interpretado tanto como autocensura como colaboração e nos tempos subseqüentes, o acompanhamento da trajetória destes indivíduos, quando não se afastam das atividades jornalísticas, se readaptam ou mesmo constroem para si uma imagem positiva e ‘até mesmo heróica’”.

Jornais que no período ditatorial se viram na contingência de se submeterem aos ditames do bonapartismo quanto à censura que se estendeu também ao controle do erotismo e da “pornografia para homens, mulheres e gays” e cujas ações denotam a moralidade vigente nos “procedimentos da sociedade e do governo brasileiro para controlar o sexo no jornalismo. […] Era em nome da vigilância de atos, exposição, desenho, pintura, distribuição ou qualquer objeto obsceno que o discurso repressor se propagava.

Como se observa, os usos que a imprensa possibilita aos historiadores são múltiplos e por isso demandam um repertório de procedimentos teórico-metodológicos capazes de garantir a objetividade no entendimento da imprensa como força social ativa, inerente à historicidade que circunscreve cada conjuntura estudada. Desta assertiva resulta, conforme se recupera nas páginas desta revista, a indicação de instrumentais que possam auxiliar o historiador na empreitada de “articular a análise de qualquer jornal ou material da imprensa periódica que se estude, ao campo de lutas sociais no interior do quais se constituem e atuam”.

Tal instrumental é tanto mais necessário quando se evidencia o uso do material impresso como fonte de informações sobre uma dada realidade, o que abre um leque de muitas outras possibilidades temáticas e de resgate de especificidades históricas. Essa perspectiva se evidencia claramente, por exemplo, no texto em que o autor analisa o papel da imprensa na propagação de conceitos de progresso e civilização versus o arcaísmo, particularmente destacados na contraposição entre o urbano desenvolvido e o rural atrasado. Observa-se como os anúncios publicados nos jornais de cidades como Diamantina e Juiz de Fora permitem ao historiador “indagar sobre o cotidiano, sobre as mudanças nos valores, sobre o impacto dessas novidades sobre aqueles que as consumiam – e também sobre o caráter excludente dessa nova cidade que se vendia nas páginas impressas, nas quais nem todos têm o mesmo espaço, e o consumo passa a ser uma marca distintiva de pertencimento à civilização e ao progresso”. Neste sentido, conforme afirma ainda o autor, “no arfar das caldeiras, no mover das impressoras, os homens de imprensa em Diamantina e Juiz de Fora deixaram no papel suas impressões, sua representação de uma cidade moderna, da tecnologia e do progresso. Através dos anúncios, abriram espaço para produtos e serviços, ligados a uma nova sociabilidade, novos hábitos de higiene e consumo, novas demandas geradas pela civilização moderna. Buscavam atender, também, às necessidades tradicionais, dentro de uma lógica, também esta, moderna – negócios eram negócios, e os anúncios eram parte do negócio da imprensa”.

A partir das informações da imprensa também se recupera as contradições de classe e as lutas sociais que se expressam a partir do noticiário de eventos que, aparentemente, explicitam contendas individuais. Tal perspectiva se destaca no texto em que o autor norte americano radicado no Brasil, a partir de um estudo de caso, identifica as versões antagônicas que emergem dos depoimentos divulgados pela imprensa sobre o assassinato de um líder do MST. Assim, não tanto pela interpretação do jornal, mas pelos depoimentos reproduzidos pelos matutinos, demonstra-se como as entrevistas concedidas pelos protagonistas e reproduzidas nas páginas dos noticiários, auxiliam o historiador na análise das diferentes representações que cada um dos envolvidos elabora, a partir de seus interesses e nas circunstâncias sócio / econômico / culturais que os condicionam. Conforme apontado pelo autor, a “aproximação íntima do atirador e da vítima nos diz mais sobre a realidade brasileira do que uma imagem dos dois como lutadores de classes. Aqui estavam dois vendedores, dois homens que viviam de seus próprios punhos, um dos quais se tornou um porta-voz para os camponeses arrendatários, enquanto o outro se tornou, talvez, por apenas um momento, um agente dos interesses latifundiários”.

As disputas pela memória, agora sobre determinado período histórico, são evidenciadas em análise que toma as repercussões na mídia de dois filmes que têm como pano de fundo a última ditadura militar brasileira. Trata-se do artigo que reflete sobre a repercussão dos filmes Lamarca (1994) e O que é isso companheiro? (1997) em três grandes jornais, a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil.

Recupera-se ainda as representações sobre o feminino vigente em nossa sociedade no início do século XX, particularmente no meio operário que fazia circular jornais em defesa de seus interesses corporativos ou de classe. Toma-se como fonte de informações jornais de tendências anarquistas, os quais, de forma mais enfática, se colocavam como libertários em relação ao gênero feminino. Com a preocupação de ir além da informação e da reflexão crítica sobre a realidade, suas assertivas encontram-se “repletos (as) de opiniões e posições, […] valores, constituindo um campo de tensões no qual surgiram referências variadas ao feminino”. Este universo de informações possibilita hoje ao analista recuperar a posição relativa das mulheres naquele universo, as expectativas de comportamentos, atitudes e preceitos aceitos ou rejeitados, atribuídos ao feminino.

Heloisa de Faria Cruz

Vera Lucia Vieira

Editoras Científicas


VIEIRA, Vera Lúcia; CRUZ, Heloisa de Faria. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 35, 2007. Acessar publicação original [DR]

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