História e literatura: aproximações e diferenças | Escritas do Tempo | 2021

“By such examples taugth, I paint the cot,

As truth will paint it, and as bards will not”

No trecho em epígrafe do poema intitulado The village (1783), de autoria do inglês George Crabbe (1754-1832), descortina-se um contraste, segundo os especialistas e seus intérpretes, entre as formas de representação de uma narrativa bucólica da Antiguidade, do Neoclassismo e de sua própria escrita, pois “Tal como manda a verdade”, diz a passagem – conforme a nossa tradução livre – “eu retrato os campos e não como cantam os bardos em seus cantos”. Ou seja, para o poeta, de certa forma seu texto figura como alegoria de um determinado tempo e espaço, de acordo com os estudos de Raymond Williams (1921-1988) sobre as literaturas do campo e da cidade, quase antecipando, portanto, algumas das premissas básicas que, posteriormente àquele século, seriam firmadas e, hoje, acham-se ainda perenes junto ao ofício de historiador(a). Assim, o presente Dossiê, na trilha do poema setecentista, propõe-se a refletir sobre as possibilidades do estabelecimento de laços entre a História e a Literatura, atento às suas aproximações e diferenças que emergem, paulatinamente, seja à boca pequena ou com mais estardalhaço, feito porta-vozes de cada época, dando a ler ao mundo as suas conexões.

Por isso, buscamos reunir trabalhos que pudessem discutir as relações da emergência da figura-autor com os escritos que são materializados, para debater aspectos tais como os trânsitos – nacionais ou internacionais – da cultura escrita, as apropriações ou economias de leituras, além das práticas letradas, de circulação e recepção de impressos literários. E, por outro lado, visamos igualmente coligir textos que versem e problematizem a historicidade de contos, poesias, crônicas, romances, peças de teatro, coleções, projetos editoriais etc., considerando textos ficcionais provenientes dos mais variados estilos e condições sociais de produção.

Como se sabe, ao menos desde fins da década de 1960, o chamado Linguistc turn era municiado e composto, entre outras referências, por ensaios como A morte do autor (1968), de Roland Barthes (1915-1980), que pode ter motivado a realização da conferência, na Sociedade Francesa de Filosofia, das reflexões de O que é um autor? (1969), de Michel Foucault (1926-1984). Este último se firmou como marco na agenda ocidental da Escrita da História de então ao defender que o essencial não era constatar o desaparecimento da figura autoral, mas descobrir os locais onde sua função era ou prosseguia sendo exercida. Alguns anos mais tarde, apareceria talvez a mais foucaultiana de todas as teses, A ordem do discurso (1971), como Aula Inaugural do Collège de France, cuja observação da realidade sinalizava que a constituição de quaisquer dispositivos discursivos é controlada, selecionada e organizada para tentar dominar seu acontecimento aleatório e se livrar de sua pesada e, sobretudo, temível materialidade.

Dois decênios se passariam até que A ordem dos livros (1992), de Roger Chartier, viesse incrementar o debate – muito distante de um viés pós-moderno –, ao apontar a necessidade de investigação do conjunto de hierarquias e convenções que traçam, continuamente, as fronteiras entre os objetos de estudos históricos legítimos e os que não o são e, logo, acham-se excluídos ou censurados. Mais do que isso: o historiador Chartier argumenta que todo discurso, para se efetivar, depende de suportes para existir, circular, serem lidos e apropriados mediante o estabelecimento de complexas relações engendradas por agentes e instituições que os legitimam e os conferem sentido, viabilizando ou não a emergência da função-autor que é, num só tempo, dependente e reprimido de um cem número de configurações.

Neste sentido, as formas de autoria que permeiam o conjunto de artigos integrantes do Dossiê História e Literatura: aproximações e diferenças, foram organizados por nós, coordenadores da proposta, segundo critérios que os dividiu em duas partes: a primeira denominada Originalidade compartilhada, composta por estudos de autoria solo (se é que se pode assim intitular quaisquer produção letrada / intelectual, sempre marcada por uma dimensão coletiva de reflexões); e a segunda nomeada Compartilhamento de originalidades (sequenciada pelos textos assinados por mais de duas mãos, em literais coautorias). Além disso, convém sublinhar que um outro parâmetro que buscamos adotar diz respeito à nossa tentativa de considerar, para cada seção, um ordenamento cronológico no tocante ao conteúdo dos textos submetidos, avaliados e, enfim, aprovados.

Assim, Originalidade compartilhada reúne seis artigos: iniciamos com a pesquisa acerca das Cartas de Erasmo ao Imperador sobre a emancipação: José de Alencar e o cultivo da dependência entre senhores e escravizados, de Cristina Ferreira, Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professora da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Depois temos o estudo sobre Anna Howarth e as guerras das fronteiras: literatura, Lei de Terras e colonialismo em “Sword and Assegai” (África do Sul, década de 1890), de Evander Ruthieri Saturno da Silva, Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Na sequência há o texto “Os livros sujos brotam como cogumelos”: cultura impressa e obscenidade no Brasil (1880-1900), de Érika Natasha Cardoso, Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pesquisadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da mesma instituição. Em quarto lugar inserimos o artigo denominado Trajetórias de um clássico: autorias, edições e leituras do “Pavão misterioso”, de Antonio Helonis Borges Brandão, Doutor em História pela citada UFF e Professor da Secretaria de Educação do Estado do Ceará (SEDUC-CE). Logo em seguida, acha-se o trabalho “A palavra é o meu domínio sobre o mundo”: circulação e recepção da obra de Clarice Lispector em Portugal, de Natália de Santanna Guerellus, também Doutora em História pela UFF e Professora da Université Jean Moulin – Lyon III, França.

Por fim, mas não menos importante – até porque fecha a primeira parte igualmente em grande estilo –, há o estudo intitulado Guimarães Rosa, leitor de Simões Lopes Neto: práticas de leitura e afinidades histórico-literária, de Jocelito Zalla, Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor do Colégio de Aplicação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A segunda parte, Compartilhamento de originalidades, também com seis artigos, é aberta com as Vozes da Amazônia na trilha de Spix e Martius, de Willi Bolle – Doutor em Literatura pela Ruhr-Universität Bochum, Alemanha, e Professor Titular Sênior da Universidade de São Paulo (USP), em coautoria com Eckhard Kupfer – Graduado em Literatura pela Universität Stuttgart, Alemanha, e Diretor do Instituto Martius-Staden. Ato contínuo, passamos aos Diálogos entre a História da Educação e Literatura: a Escola Normal no romance “A normalista”, de Adolfo Caminha (1893), de Caio Corrêa Derossi – Mestre em Educação pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), feito a quatro mãos, com Joana D’arc Germano Hollerbach – Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Professora da referida UFV. A terceira pesquisa, intitulada História e Literatura: Jorge Amado e seus escritos literários nos anos 30, é assinada por Rafaela Mendes da Silva – Mestranda Interdisciplinar em História e Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Professora da Secretaria Municipal de Educação, em Quixeramobim (CE), que divide sua originalidade com Francisco Wilton Moreira dos Santos – Doutorando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Professor do Colégio de Educação Básica Luiz Albuquerque, em Senador Pompeu (CE).

Na sequência, chegamos ao texto denominado Nos rastros da memória: uma revisitação da Guerra de Canudos pelo olhar de Vargas Llosa, de Solange Regina da Silva – Mestranda em Letras / Teoria da Literatura pelo Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com Isis de Paula Oliveira de Albuquerque – Mestranda em Letras pela citada UFPE e Professora do Espaço Tereza Albuquerque, em Recife (PE), que se somam ainda a Brenda Carlos de Andrade – Doutora em Letras / Teoria da Literatura pela UFPE e Professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). O Dossiê é finalizado com as Narrativas de mulheres sobre o passado da América: da exclusão histórica ao protagonismo ficcional, de Amanda Maria Elsner Matheus – Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), com Gilmei Francisco Fleck – Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Professor da UNIOESTE, que se juntam ainda à Tatiane Cristina Becher – Doutoranda em Letras pela UNIOESTE, que é a terceira autoria responsável pelo artigo.

A Seção Livre conta com o estudo sobre as Estratégias de ensino e aprendizagem para surdos no Ensino Superior, de Joelaini Martins dos Reis Brasil – Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com Taise Gomes dos Santos Cá – Mestre em Políticas Públicas e Gestão Educacional pela UFSM, Tradutora e Intérprete de Língua de Sinais da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), e Silvia Maria de Oliveira Pavão – Doutora em Educação pela Universidad Autónoma de Barcelona, Espanha, e Professora da UFMS.

O número fecha com um retorno ao Dossiê História e Literatura: aproximações e diferenças, pois nós, os coordenadores da proposta, inserimos uma entrevista que nos foi concedida no dia 07 de maio do ano corrente, pelo historiador Sidney Chalhoub – Doutor em História pela já mencionada UNICAMP, onde atuou por décadas e na qual permanece como Professor Titular Colaborador, encontrando-se igualmente, hoje, na condição de Professor do Departamento de História da Harvard University, nos Estados Unidos. Especialista em História do Brasil no século XIX, com publicações em temas como a História do Rio de Janeiro, a abolição, a escravidão, a saúde pública, as epidemias e a literatura, suas atenções se voltaram nos últimos anos para a obra de Machado de Assis (1839-1908).

Na entrevista, Kivia Pires Rosa, então graduanda do Curso de História – Campus Xinguara –, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), juntou-se a nós e, posteriormente, transcreveu o encontro com nossas orientações e revisões, como parte de suas atividades enquanto bolsista do Programa de Monitoria Geral de 2021 (edital 20/2020), fomentado pela Pró-Reitoria de Ensino de Graduação (PROEG) e da Diretoria de Planejamento e Projetos Educacionais (DPROJ) da UNIFESSPA, onde é estudante membra dos laboratórios História, Memória e Natureza na Amazônia (HiMeNA), que liderou a atividade, e do Centro de Estudos em Teorias da História e Historiografias (CETHAS).

Amplamente conhecido e reconhecido, Chalhoub ingressa na presente publicação como um forte registro que completa a excelente edição do periódico de forma eloquente. Número este, aliás, que reúne – como se pode observar em nossa rápida descrição – estudantes, professores e pesquisadores de Norte a Sul e Leste a Oeste do Brasil (somando autorias oriundas de oito estados do país), sem falar das inserções estrangeiras (na Europa e no referido EUA) e que, se levarmos em conta as origens das formações acadêmicas e das atuações profissionais, somam mais de vinte instituições.

Desse modo, esperamos que o Dossiê possa abrilhantar os trabalhos já acumulados dos nossos colegas da UNIFESSPA do Campus de Marabá, desejando vida longa ao projeto da revista Escritas do Tempo, bem como convidando aos leitores para se deleitarem com a temática, pois, nas palavras do Professor Sidney Chalhoub, cuja entrevista oferecemos um trecho convidativo, “a história pulsa na literatura: não existe uma relação de exterioridade entre uma coisa e outra, e muitos aspectos sociais podem ser investigados por meio da análise de obras ficcionais”. Portanto, acessem a edição e descubram os mundos que suas páginas revelam.

Campus Xinguara, Verão Amazônico de 2021.


Organizadores

Anna Coelho – Doutora em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA).

André Furtado –  Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, com estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, e professor da UNIFESSPA).


Referências desta apresentação

COELHO, Anna; FURTADO, André. Apresentação. Escritas do Tempo. Pará, v. 3, n. 8, p. 04-08, mai./ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

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