História e Literatura / Diálogos / 2019

O presente dossiê teve como intuito selecionar artigos que propusessem diálogos tanto na metodologia do estudo quanto na análise da literatura considerada em suas dimensões históricas e culturais. Abordagens e perspectivas que desenvolvessem a análise de obras, formas e expressões literárias com atenção aos contextos subjacentes sejam do processo, da produção, da autoria, das práticas, do público e da recepção, da crítica e da teoria.

A seleção e organização foi um trabalho de grande aprendizagem e satisfação, pela diversidade e qualidade dos estudos apresentados. Desafio agradável e envolvente foi o de pensar uma ordem na disposição e sequência dos textos. As temáticas eram resistentes às formas mais convencionais de organização cronológica ou geográfica. A variedade também resistia a uma ordenação por categorias, tais como estudos sobre romances, teatro, relatos de viagens, memórias etc.

A estratégia foi a de considerar proximidades, paralelos, simetrias, contrastes e pontos especulares entre as perspectivas, temas e abordagens. Os artigos selecionados são desenvolvimentos de pesquisas que não se relacionam diretamente umas com as outras, são independentes, ainda que todos explorem relações entre história e literatura.

Não é o caso de se expor todas as ideias suscitadas e animadas com as leituras durante o processo de organização. Apresento apenas o roteiro das aproximações e confrontos que me ocorreram e que definiram uma ordem em meio às possibilidades.

Como abertura, em um primeiro ato, imaginei um possível diálogo entre o ciclope Polifemo e o Mercador de Veneza, de Shakespeare. Uma voz tópica do mundo primitivo e selvagem, onde reinaria a irracionalidade, as paixões e a música. Outra voz, a de uma cidade-república, em que a jurisprudência tem valor crucial e se discute se os contratos e dívidas devem seguir as letras da lei ao seu extremo. Tópicas e representações da civilização e da barbárie, que não excluem ambiguidades e inversões. Problemas relativos à diacronia e sincronia, interpretações e ressignificações.

Em um segundo ato, entram em cena o epítome Heidelberg e o romance El general en su laberinto. Uma fonte histórica, relato síntese do século XV, parte do Códice Palatino Grego, composto de quatro excertos sobre a história dos sucessores de Alexandre Magno. E um romance de Gabriel García Márquez, que mostra as contradições nas representações de Simón Bolívar em confronto com a historiografia sobre o general. Questões e polêmicas que envolvem a produção de memórias e expressões histórico-literárias, com implicações políticas, de duas personificações do poder. A fonte histórica como literatura e a imagem literária como mote historiográfico.

O terceiro ato, em verdade, seria propriamente um colóquio: far-se-ia entre as duplas Jorge Amado/Graciliano Ramos e Gilberto Freire/Pedro Nava. Os dois primeiros falam a partir de relatos de viagem, memórias e romances históricos autobiográficos, “gêneros de fronteiras” em que se expõem o engajamento político de intelectuais e suas visões sobre a URSS. A segunda dupla apresenta-se em excertos de Assombrações do Recife Velho (1955) e Baú de ossos (1972). A articulação entre elementos históricos e ficcionais perpassam as memórias, as obras e também marcam as perspectivas políticas e sociais. Nesse colóquio entra, em seu compasso, Mário de Andrade com seu caderninho de anotações de campo que usava em suas pesquisas sobre as manifestações populares e o folclore brasileiro, realizadas entre as décadas de 1920 e 1940. A observação e os estudos culturais se entrelaçam com a produção ficcional. No autor de Macunaíma, temos uma outra perspectiva literária, pode-se dizer antropológica, que dialoga, com certo viés de classe, com as perspectivas política, sociológica e memorialística dos outros literatos e intelectuais.

Concluem o dossiê duas vozes diversas do Brasil do século XIX, opostas segundo os manuais de retórica dos antigos. Simá, “romance épico” de 1857, escrito por Lourenço da Silva Araújo Amazonas, que segue os modelos da Ilíada e da Eneida. Voz em que ecoa o trágico e o estilo sublime, grandiloquente, ainda que em prosa do dezenove. Outra voz se ouve na “linguagem clara e compreensível do povo”, o cancioneiro Trovador: coleção de modinhas, recitativos, árias, lundus, etc… (1876). Apropriada ao estilo baixo, didático, humilis. Simá fala da colonização, da derrota e do massacre indígena e os lundus falam do progresso e da civilização. Curiosas inversões, ou deslocamentos, que propõem possibilidades e questões para a historiografia e para a literatura.

A sequência, descrita quase em forma de libretto, não impede aos leitores de encontrarem outros diálogos no conjunto dos artigos. A ordem aqui não é absoluta, ainda que não seja tampouco arbitrária. Pode e deve ser desconstruída, repensada, revirada.

Por fim, deixo os agradecimentos a todos os que colaboraram na realização desse dossiê: autores, avaliadores, revisores, editores e à artista Júlia Maria Antunes, cuja aquarela, como uma invocação às musas, é um belo convite à imaginação e à reflexão dos leitores.

Marco Cícero Cavallini –  Universidade Estadual de Maringá, UEM, Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

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