História e medicina: os médicos, seus projetos, suas práticas e suas instituições / Intellèctus / 2016

As aproximações entre História e Medicina, que se expandiram fortemente como profícuo veio da historiografia a partir das últimas décadas do século XX, permitiram a exploração de dimensões as mais variadas e a construção de narrativas as mais distintas acerca do atendimento à saúde e da definição das práticas médicas e de suas instituições. O volume que ora apresento aos leitores é boa mostra da pluralidade decorrente das aproximações sugeridas e encetadas aqui em artigos distintos, mas, também, conectados em seus recortes e possibilidades.

Os artigos presentes neste dossiê movimentam-se no tempo longo entre o século XVII e o século XXI, evidenciando não apenas a multiplicidade de perscrutações decorrentes da própria natureza do objeto proposto, as aproximações entre História e Medicina, como, ainda, a construção de narrativas históricas referidas a temporalidades mais afastadas e a temporalidades nomeadas como da História do Tempo Presente.

Em “Artes de curar no Brasil holandês: a construção do conhecimento médico e dietético na relação entre o Velho e Novo Mundo”, Elisielly Falasqui da Silva nos apresenta os debates sobre o saber médico em relação ao mundo natural por meio da experiência do médico Guilherme Piso, integrante da comitiva de Nassau durante a ocupação holandesa de Pernambuco. O contexto da chamada revolução científica é aqui discutido por meio das articulações entre objetos da natureza classificados, as percepções do mal e suas possibilidades de cura colocadas pela ciência nova que então se professava e os textos do referido médico.

Julie Hamacher Liepkaln, em “A saúde pública entre a Medicina e a Política: as propostas de Ribeiro Sanches no Portugal das Luzes”, nos leva ao mundo iluminista da Península Ibérica e nos apresenta aos textos de Antônio Nunes Ribeiro Sanches que, articulando ciência e urgências de conservação da saúde em Portugal, parecia compreender as relações entre a saúde da população e o fortalecimento da Monarquia bragantina. A leitura do artigo, especialmente quando referenciada aos estudos sobre a história da filantropia, é um excelente suporte pata as teorias que apontam as transfigurações da filantropia ibérica entre o Iluminismo e o enraizamento do capitalismo nas primeiras décadas do século XIX.

Já Márcia Maria de Medeiros e Tânia Regina Zimmermann, em “Apontamentos sobre as práticas e representações em relação ao enterro de mortos-vivos na segunda metade do século XVIII”, movimentam-se pela bibliografia produzida especialmente entre a Alemanha, a França e a Inglaterra sobre a percepção do medo da morte e do enterro de mortos-vivos. A partir do debate profícuo que estudam, as autoras deslindam os discursos que, em meio aos debates que já se configuravam iluministas, permitem observar a transformação do morto em objeto de estudo e as tensões entre tais discursos sobre a morte e os mortos-vivos e a filosofia das Luzes em sua busca da felicidade pública e das boas virtudes.

Carmen Silvia da Fonseca Kummer Liblik, por sua vez, no artigo intitulado “A atuação médica-sanitária nos municípios rurais do Paraná (1918-1930)”, desenvolve argumento caro aos historiadores que, na esteira dos trabalhos de Michel de Foucault, se debruçam sobre as perspectivas de controle social por meio dos discursos médicos de atendimento à saúde. A autora alinhava o saber médico presente nos Cadernos e Relatórios de viagens dos médicos que atuavam no interior do estado do Paraná com as medidas sanitárias do Serviço de Profilaxia Rural nas primeiras décadas do século XX na região. Além disso, também são discutidas as leis e decretos que, propondo regulações, permitem observar processos de institucionalização de uma profilaxia rural marcada por modelos de controle social, higienização e saneamento.

Em “Um estudo sobre aspectos da loucura e do controle social: Análise dos prontuários do Sanatório Pinel de Pirituba (1929-1934), Tuanny Folienei Antunes Lanzellotti, também acompanhando a bibliografia que articula práticas médicas de higienização com controle social, estuda os prontuários dos chamados doentes mentais do Sanatório Pinel entre 1929 e 1934. Indagando-se sobre os sentidos do isolamento dos referidos doentes, Lanzellotti perscruta uma prática institucional que, herdeira das teses eugenistas, fabulava a construção de uma ordem normatizadora na qual os sanatórios teriam papel fundamental, posto que lócus do isolamento soa sujeitos infensos à ordem desejada.

O artigo “A lepra na perspectiva médica: Antônio Justa e o saber médico sobre a lepra no Ceará (1930)”, de Francisca Gabriela Bandeira Pinheiro, aborda o tema da lepra do ponto de vista de um médico cearense que produziu importante conjunto de textos com a intenção de informar a população sobre a doença. Seus textos estão relatados à sua experiência no Leprosário de Fortaleza e constituem importante conjunto documental sobre os processos de isolamento e de exclusão dos portadores da doença, mesmo quando o médico apontava a necessidade de abrandar o segregacionismo.

Ainda em torno do tema da lepra, bastante forte nos estudos sobre História e Medicina nos últimos anos, Débora Michels Mattos, em “A campanha contra a ‘lepra’ no Brasil e em Santa Catarina: entre a filantropia e a exclusão social dos filhos sadios de enfermos”, estuda os processos de exclusão dos filhos de pessoas diagnosticadas com a doença na primeira metade do século XIX no estado de Santa Catarina. A Sociedade de Assistência aos Lázaros e defesa Contra a Lepra de Santa Catarina, assim como a instituição preventorial Educandário de Santa Catarina, assim como as campanhas de educação e prevenção que desenvolveram, são apresentadas como representação de uma estratégia de prevenção que aliou Estado e entidades filantrópicas e que acabou por promover discriminação e o confinamento dos doentes e dos seus filhos sadios.

Priscila Vitalino Severo Pais, em “Sentidos políticos da saúde pública no Brasil do século XX e nos projetos da 6° Conferência Nacional de Saúde”, perscruta os projetos, as ideias e os consensos possíveis produzidos no âmbito da 6° Conferência Nacional de Saúde que teve lugar no ano de 1977, em meio ao crescimento dos movimentos populares de oposição à Ditadura Militar e às tentativas do governo de legitimar suas ações em saúde. Os debates que a autora esquadrinha e nos apresenta permitem observar um espaço de luta política em que grupos de oposição à Ditadura se movimentam dentro das instituições políticas e públicas do regime e, desta forma, contribuem para o seu enfraquecimento.

Os debates estudados por Priscila traziam já o tema que é desenvolvido por Fernando Diório Alves dos Santos e Tatiana dos Santos Thomaz em “O hospital e sua centralidade no complexo industrial de saúde”. Se em 1977 já era evidente que o papel central do hospital no sistema de saúde, aprofundado pelo modelo previdenciário fortalecido pela criação do INPS durante a Ditadura, trazia prejuízos para o atendimento à saúde das populações mais pobres, especialmente aquelas sem carteira assinada, no tempo presente estudado pelos dois autores deste artigo, tais prejuízos aparecem potencializados pelos conteúdos de inovação tecnológica. Lócus de formação de profissionais que serão formuladores de políticas públicas, o hospital do nosso tempo presente, com toda sua racionalidade técnica e política tem sido, no mais das vezes, instrumento de desumanização do paciente e do médico.

Por último, João Nemi Neto, em “Herbert Daniel e a luta contra o estigma da AIDS”, oferece uma reflexão incômoda ao final deste volume da revista Intellèctus: os preconceitos e exclusões produzidos por diversas políticas públicas aqui referenciadas e pelo modelo hospitalocêntrico de atendimento à saúde, parecem se ressignificar a cada nova epidemia que recai sobre a humanidade, como se pode perceber nos textos de Herbert Daniel. Morto em decorrência de AIDS em 1992, o ensaísta e ficcionista engajou-se em campanhas de prevenção e de esclarecimento sobre a AIDS e, por meio dos seus textos experimentais, cumpriu um importante papel como intelectual militante entre a Ditadura, a redemocratização e a luta contra a AIDS no Brasil.

Apresento, pois, leitor, dez artigos que, em uma visada de tempo longo, trazem temas de historiografia decorrentes da aproximação entre História e Medicina, mas que, especialmente, permitem vislumbrar práticas e saberes médicos em meios às suas instituições e às resistências, derrotas e lutas daqueles que enfrentaram esses saberes. Se doenças como a AIDS ainda produzem pânicos de ordem moral e o fortalecimento de teses higienistas, o que nos poderia levar a afirmar que os conteúdos civilizatórios saídos dos movimentos iluministas que professavam a igualdade e a liberdade como princípios ordenadores das sociabilidades humanas, não se teriam jamais efetivado, é certo também que é em nome desses princípios que o SUS, saído das entranhas dos movimentos populares em saúde nascidos na luta contra a Ditadura, e com todas as suas dificuldades de financiamento, talvez seja o maior indicativo de que seja possível articular igualdade e liberdade em nome da felicidade pública.


Apresentadora

Ana Nemi

Julho de 2016


Referências desta apresentação

NEMI, Ana. Apresentação. Intellèctus. Rio de Janeiro, v.15, n.1, 2016. Acessar publicação original [DR]

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