Histórias das violências de gênero contra as mulheres | Manduarisawa | 2021

Parece estranho que, em pleno ano de 2022, o tema das violências de gênero contra mulheres e meninas esteja apenas começando a ganhar um apelo geral entre a sociedade brasileira. Historicamente, a sociedade brasileira legitimou, por meio das instituições públicas, a desigualdade de gênero que, por sua vez, é fruto de heranças histórico-jurídicas que remontam ao período colonial. Exemplo disto é a utilização do termo mulher honesta no Código Penal de 1940, a fim de se fixar parâmetros para auferir um juízo de valor em casos de crimes sexuais cometidos contra mulheres (só foi retirado do ordenamento brasileiro nos anos 2000, por ser considerado um parâmetro comportamental estereotipado). Também o Código Civil brasileiro de 1916 – que trazia pesada carga semântica no tratamento direcionado às relações entre homens e mulheres – só foi alterado nos anos 2000, quando homens e mulheres passaram a receber tratamento normativo equiparado.

Reforçamos, portanto, que ainda que as mulheres tenham obtido grandes conquistas em âmbito internacional e nacional, a violência de gênero contra mulheres ainda é recorrente em nosso país e no restante do mundo. Só no Brasil, no primeiro semestre de 2020, ao menos 648 mulheres foram assassinadas por motivação relacionada ao gênero. O índice representa aumento de 1,9% em relação ao mesmo período, de janeiro a junho, no ano anterior, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP e integram o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Apesar desta pesada herança histórica, as mulheres brasileiras – em sua diversidade de origens e contextos sociais – resistem. A luta por garantias e direitos das e para as mulheres é antiga, no Brasil e no mundo. Se pensamos nos exemplos mais proeminentes, são muitos os nomes que veem à lembrança: Nísia Floresta, Josefina de Azevedo, Bertha Lutz, Antonieta de Barros, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro…

O tema específico das violências contra as mulheres, fruto de uma mudança de sensibilidade em relação aos corpos femininos que vem ecoando publicamente ao longo de pelo menos seis décadas, no Brasil, tem relevância especial entre as vitórias a serem celebradas. Numa sociedade proeminentemente patriarcal, fabricar leis e instituições destinadas a promover conscientização e proteção (ainda que imperfeita) contra violências de gênero não é pouca coisa.

Desde a popularização do lema Quem ama não mata, a incorporação de demandas não seguiu um caminho linear. Entre avanços e recuos, ainda há muito a ser conquistado (e mesmo consolidado, vale lembrar). Mulheres pertencentes a grupos subalternizados, como indígenas e negras, têm enfrentado dificuldades maiores no acesso aos benefícios trazidos pelas conquistas institucionais.

As vitórias não são constatáveis apenas no campo da oficialidade do estado: movimentos sociais passam, cada vez mais, a sensibilizar-se às necessidades de representatividade e respeito, procurando evitar as dinâmicas de violência simbólica e apagamento que foram sempre tão corriqueiras; nos espaços universitários, os debates e pesquisas sobre o tema ganharam, ao longo das últimas décadas, grande projeção; nas ciências sociais brasileiras, particularmente, o tema foi e tem sido amplamente teorizado e pesquisado.

A historiografia ocidental tem, frequentemente, se dedicado ao estudo das histórias das mulheres na sociedade, sendo crescentes os debates intelectuais em torno de gênero e sexualidade desde o século XX. As renovações historiográficas trazidas pela Escola dos Annales, pela Nova História ou pelas interpretações frequentemente colocadas sob o termo generalista “Pós-Modernismo” permitiram a emergência do tema como uma verdadeira subdisciplina. No Brasil, os estudos históricos sobre o tema consagraram nomes como Margareth Rago, Raquel Soihet, Marta Rovai, Giovana Xavier ou Mary Del Priore.

No caso brasileiro, é importante destacar que leituras específicas sobre as histórias das violências de gênero contra mulheres ainda estão longe de dimensionar a forte presença histórica do fenômeno em nosso cotidiano. Isto porque, embora tenha ganhado proeminência nas ciências sociais brasileiras, consagrando nomes como Heleieth Saffioti, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Marilena Chauí e Lourdes Bandeira, o tema ainda tem pouca reverberação na área da história.

Neste sentido, o intuito deste dossiê foi somar-se aos estudos, pesquisas e questionamentos existentes na área de história que, de alguma maneira, procurem encarar os fenômenos de violência de gênero contra mulheres por uma perspectiva diacrônica. Nosso intuito foi reunir trabalhos capazes de abordar a temática, tendo particular interesse – embora não exaustivo – nos seguintes temas: a constituição histórica do conceito de violência de gênero; a cultura patriarcal como cultura histórica; a história da historiografia sobre violências de gênero; relações históricas entre mídia e violências de gênero; os crimes de “defesa da honra” em perspectiva histórica.

Para nossa satisfação, como poderá constatar o leitor interessado, a interdisciplinaridade e pluralidade metodológica marcaram as discussões aqui reunidas. As contribuições colocam em diálogo os estudos históricos com temas tão diversos como democracia, movimentos sociais, justiça, legislação, comunicação. Convidamos os interessados às leituras e desejamos uma excelente leitura!


Organizadores

Angelita Pereira Lima – Doutora, Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos. Diretora da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG.

Ana Paula de Castro Neves – Doutoranda em Direitos Humanos do Programa de Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – (PPGIDH) da Universidade Federal de Goiás. [email protected]

Luciano Rodrigues Castro – Doutorando em Direitos Humanos do Programa de Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos – (PPGIDH) da Universidade Federal de Goiás. [email protected]


Referências desta apresentação

LIMA, Angelita Pereira; NEVES Ana Paula de Castro; CASTRO, Luciano Rodrigues. Apresentação. Mandurarisawa. Manaus, v.5, n.2, p.6-8, 2021. Acessar publicação original [DR]

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