Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin | Franscismary Alves da Silva

A institucionalização da Ciência Moderna, como a conhecemos hoje, tem a sua origem associada às transformações conceituais e metodológicas pelas quais o desenvolvimento científico passou, essencialmente, entre os séculos XVI e XVII. Tais transformações com o tempo passaram a ser trabalhadas pela historiografia sob a designação de “revolução científica”. A dinamicidade e a amplitude com que este conceito foi problematizado ao longo do século XX é o foco central da pesquisa realizada pela professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Francismary Alves da Silva em sua dissertação de mestrado, Historiografia da Revolução Científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, defendida junto ao Departamento de História da UFMG em 2010 e publicada recentemente (2015) com o mesmo título. Nesse estudo a autora discute de maneira didática, a partir de uma perspectiva histórica, as principais questões com que a História da ciência se deparou com relação aos conhecimentos humanos sobre a natureza, fundamentalmente, em três momentos específicos: na consolidação, no apogeu e o declínio da expressão “revolução científica”.

Os trabalhos do autor de Estudos Galiláicos (1939) e Do mundo fechado ao universo infinito (1957), o filósofo francês de origem russa Alexandre Koyré (1892- 1964) considerado o “pai da atual História da ciência” [1], serviram como ponto de partida para a professora. De acordo com ela, o filósofo, ao se insurgir contra a concepção positivista da história da ciência, produzida até o início do século XX – que descrevia o desenvolvimento da ciência “como sendo a acumulação do conhecimento, desde o seu estágio inicial até o estágio atual” – inaugurou uma nova tradição de análise. Ao considerar as transformações dos conhecimentos científicos-filosóficos de meados do século XVII “a partir da estrutura do conhecimento da época” [2] que ele julgou ser possível apreender por meio da análise das obras e tratados científicos, segundo Silva, o autor superou o status das narrativas whigs, até então predominantes. Em oposição a estas narrativas que estavam fortemente preocupadas com a “descrição do pensamento dos gênios ou pela concepção de desenvolvimento científico acumulativo e autônomo”(2015:15), Alexandre Koyré, a partir da historicidade das transformações, acabou forjando um conceito de revolução científica intimamente conectado tanto com as mudanças nas estruturas científicas e filosóficas como “também vinculado a uma nova forma de entender o desenvolvimento científico: por rupturas e não pela acumulação linear dos fatos científicos”(2015: 25).

Silva atentou para a repercussão que a obra do filósofo francês acendeu entre seus contemporâneos. Karl Mannheim, Robert King Merton, Boris Hessen, Henry Guerlac, entre outros filósofos e cientistas que viriam a constituir o conhecido Círculo de Viena e a Sociologia da ciência, chamaram a atenção para a importância do contexto externo mais amplo. Para esses pensadores, os aspectos políticos, econômicos e religiosos estabelecidos ao redor do empreendimento científico o influenciavam tanto quanto as perspectivas científicas e filosóficas endossadas por Koyré. Nessa perspectiva, de acordo com a professora, Alexandré Koyré foi intensamente acusado de criar uma narrativa preocupada excessivamente com aspectos teóricos-conceituais em detrimento das “áreas extracientíficas”. “Seus trabalhos foram taxados de “internalistas”, isto é, que “despendiam atenção apenas aos aspectos internos à ciência stricto sensu, desprezando a participação sociocultural na revolução científica”(2015: 47). Todavia, a autora acabou por realizar uma abordagem indireta ao centrar-se, basicamente nas obras de cunho científico do filosofo francês, uma vez que ele antes de se tornar um historiador da ciência era conhecido pelos seus trabalhos em filosofia da religião. Apesar disso, faz-se necessário sublinhar a originalidade do trabalho da autora. Indo mais longe e na contramão destas críticas, Silva advoga que embora os trabalhos do filósofo francês enfocassem os aspectos científico-filosóficos, eles não o limitaram. Em sua análise a autora é capaz de demonstrar como as transformações sociais estavam presentes ao longo da narrativa de Koyré, uma vez que, segundo ela, “não seria possível descrever a emergência de uma nova teoria científica sem considerar a unidade de pensamento em que essa nova proposta de pensamento estaria envolvida” [3].

Esse debate proveniente das diferenças entre as narrativas de Koyré e seus críticos, conhecido como querela Internalismo versus Externalismo, ganhou um novo capítulo com a narrativa híbrida desenhada pelos estudos do físico e filósofo das ciências, o norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996). Comumente apresentado como legatário da vertente inaugurada pelo filósofo francês, Kuhn, de acordo com a autora, também deve ser associando à ampliação desta vertente historiográfica, uma vez que ele analisa tanto o pensamento dos cientistas e das teorias por eles formuladas como “as questões sociais, as possibilidades de divulgação das descobertas, os costumes sociais da época, as questões políticas, econômicas, religiosas entre outras”[4].

A apreciação realizada por Silva nos trabalhos do norte-americano não se deu exclusivamente a partir de sua obra mais sua mais célebre, “considerada um dos mais importantes livros da área”(2015: 61), a Estruturas das Revoluções científicas, publicada em 1962 e traduzida para 25 idiomas, mas também das respostas kuhnianas aos problemas apontados por seus críticos contidas nas reformulações do posfácio do Estruturas intitulado Reflexões sobre os meus críticos (1969), em A tensão essencial (1977) e na coletânea de artigos Caminhos desde a estrutura (2000).

O termo “paradigma”, por exemplo, de acordo com o proposto pelo próprio físico em 1962, pode, grosso modo, ser entendido como “uma constelação de crenças (teorias ou fórmulas), técnicas e valores partilhados pelos membros de uma comunidade científica” (2015: 89) ou ainda como “um conjunto de regras ou práticas de laboratório descritas em um manual” (2015:89). Quando um determinado paradigma não consegue resolver os problemas científicos ou uma questão crucial “tem-se a eleição de uma nova teoria” (2015:77) completamente diferente, com novos argumentos que visam responsabilizar-se pelas respostas necessárias. Assim, “quando isso ocorre, um novo paradigma é aceito e, com ele, um novo aparato de crenças, técnicas, fórmulas, teorias e valores”(2015:77).

Este conceito de “paradigma”, depois de ser duramente criticado por possuir uma polissemia de sentidos, mas principalmente por reforçar a noção de incomensurabilidade, acabou sendo transformado por Kuhn em “matriz disciplinar”. A partir dessa nova concepção o desenvolvimento das ciências passou a ser entendido “como um processo lento e contínuo aos moldes darwinistas” [5]. Concomitante a isso, o físico forjou um novo entendimento para o termo “incomensurabilidade”; ligando-o diretamente à existência da “relação linguística entre a linguagem científica e a natureza” [6], duas teorias poderiam “até ser intraduzíveis, mas não inteligíveis” [7]. A ruptura se manifestaria na “impossibilidade de tradução entre diferentes matrizes disciplinares ou léxicos, e na não impossibilidade de interpretação e aprendizado, pois, pela intepretação/gestalt”(2015: 102). Essa atitude de Kuhn, na prática, além de amenizar “a drástica interpretação da incomensurabilidade”(2015: 170), de um lado aproximou a concepção kuhniana da tradição evolucionista e do conceito de “estilo de pensamento” desenvolvido por Ludwik Fleck em Gênese e desenvolvimento de um fato científico (1935), e de outro “continuou vinculada à ideia de revolução científica como descontinuidade” [8].

As contextualizações de outros conceitos instrumentalizados pelo filósofo norte-americano – “ciência normal”, “ciência extraordinária”, “quebra-cabeça”, “anomalia”, “revoluções” e “crise” – também sofreram alterações conceituais que minimizavam a ideia de ruptura abrupta defendida pelo físico. Contudo, do mesmo modo como o sucedido com os conceitos de “paradigma” e “incomensurabilidade”, Silva concluiu que “apesar de se aproximar das tendências evolucionistas da História das ciências, Kuhn manteve-se atrelado ao conceito de revolução como ruptura, isto é, manteve-se fiel à tradição fundada por Koyré”[9].

Em contrapartida a essa “vertente canônica da historiografia da ciência” [10] ,a autora contrapôs os estudos do historiador e sociólogo da ciência, o norte-americano Steven Shapin, comumente associado à derrocada do termo “revoluções científicas”, que parte do “pressuposto de que a ciência é uma atividade histórica e socialmente situada, contextualizada”(2015: 110). Contudo, como adverte a professora, Shapin “não pretende negar as importantes transformações ocorridas no começo da Idade Moderna, mas defende a tese de que a revolução científica, tal como fora narrada pela vertente histórica inaugurada por Koyré, nunca teria de fato existido” [11].

A principal preocupação do autor de O leviatã e a bomba de ar (1985, coautoria com Simon Schaffer) e A revolução científica (1996) é saber “como os cientistas se comportam ao longo do processo de negociação que permitirá a validação das teorias” [12]. Para isso, centra sua investigação na querela científica setecentista ocorrida entre o Programa Experimental de Robert Boyle e as teorias científicas de Thomas Hobbes.

Para Shapin, embora ambos propusessem soluções distintas para às necessidades da época, quais sejam, econômicas, políticas, religiosas e culturais, “as respostas só alcançariam êxito à medida que assegurassem o estabelecimento do poder restaurado” [13]. Nesse sentido, o autor conclui que os processos de negociação social, os jogos de poder, as influências políticas e sociais realizadas por Boyle, estavam mais de acordo com o pensamento da sociedade do que os de Hobbes.

Silva, em concordância com as críticas realizadas por Thomas Kuhn, nos elucida que é exatamente esta concepção shapiniana que negligencia a importância de um determinado conhecimento científico stricto senso em prol “de um processo de negociação entre a comunidade científica e a sociedade”(2015: 151), que se constitui o calcanhar de Aquiles da obra de Shapin. Em suas palavras, “Shapin está mais interessado em saber como determinado conhecimento se tornou seguro ao invés de analisar a importância desse conhecimento para a ciência em si e, sobretudo, para a História da ciência” [14].

Embora Historiografia da revolução científica seja um livro denso, rico de informações e com uma análise profunda, ele é, do mesmo modo que A Estrutura das Revoluções Científicas, acessível à comunidade não acadêmica. E por último, mas não menos importante, o livro cumpre com o seu objetivo de fazer uma reflexão sobre a “flexibilidade com que a História das Ciências tem narrado a revolução científica”[15].

Notas

1. SILVA, Francismary Alves da. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin. São Bernardo do Campo: EdFABC, 2015, p.9.

2. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.3.

3. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.51.

4. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.68.

5. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.95-96.

6. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.91.

7. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.101.

8. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.103-104.

9. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.107.

10. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.151.

11. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.109.

12. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.157.

13. _______. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.124.

14. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.157.

15. SILVA. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, p.3.


Resenhista

Valquiria Ferreira da Silva – Doutoranda em História Social Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]

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Referências desta resenha

SILVA, Francismary Alves da. Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin. São Bernardo do Campo: EdFABC, 2015. Resenha de: SILVA, Valquiria Ferreira da. Temporalidades. Belo Horizonte, v.8, n.1, p.516-521, jan./abr. 2016.

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