O Projeto Várzea: uma história relacional da ciência na Amazônia brasileira (1945-2019) | Décio de Alencar Guzmán

Contar uma história que pudesse, ao mesmo tempo, dar conta da complexa realidade biofísica das Amazônias brasileiras e da profusão de relações humanas no desenvolvimento da pesquisa científica na região. Essa foi a tarefa que Décio de Alencar Guzmán propôs e desenvolveu em O Projeto Várzea: uma história relacional da ciência na Amazônia brasileira (1945- 2019). Pesquisador de longa data das histórias amazônicas, Guzmán expõe com clareza seu foco de pesquisa e sob qual perspectiva pretende analisar suas fontes históricas: o livro é a “história relacional de um grupo de pesquisa: o Projeto Várzea (PV)[…] grupo científico voltado ao estudo das várzeas, áreas inundáveis no vale amazônico” (p. 15). Apontando para a relativa escassez de pesquisas científicas sobre esse biótopo específico das regiões amazônicas, o autor indica a relevância do trabalho de pesquisa desenvolvido pelo PV como um dos principais fatores que o conduziram à pesquisa. Leia Mais

History/ Philosophy and Science Teaching: A Personal Story | Michael Matthews

Tomas de Aquino por Bartolome Science Teaching
Tomás de Aquino | Bartolomé Esteban Murillo (1650)

History, Philosophy and Science Teaching: A Personal Story is a captivating academic autobiography, published in 2021, by Michael R. Matthews, Australian philosopher of education, known for his contribution to the advancement of the use of history and philosophy of science to enhance science education. As Matthews chronicles his own intellectual and career trajectory, he ends up outlining the history of the research in History and Philosophy of Science and Science Teaching (HPS&ST). I began my own journey into HPS&ST around 2009, as I moved to Salvador, Bahia, Brazil, to pursue a PhD at the Graduate Program in Teaching, Philosophy and History of Sciences UFBA-UEFS2 – after having already been well trained in the history and philosophy of science at the Federal University of Minas Gerais (UFMG) over ten years. In what follows, I endeavor to outline a personal review of Matthews’ book: History, Philosophy and Science Teaching: A Personal Story.

I had the pleasure of meeting Mathews twice after beginning my journey into HPS&ST. Firstly, in 2010, at a time I was still a novice in HPS&ST research, on the occasion of the 1st Latin American Conference of the International History, Philosophy, and Science Teaching Group, which took place in Maresias, Brazil. A few years later, in 2012, in Boston, USA, when I was a Fulbright visiting scholar at STS MIT, I attended a colloquium at the Boston University’s Center for Philosophy and History of Science, where Matthews gave a talk entitled “HPS&ST: Looking Back and Going Forward”. Leia Mais

Canguilhem e a gênese do possível. Estudo sobre a historização das ciências | Tiago Santos Almeida

ALMEIDA Tiago S Science Teaching
ALMEIDA T Canguilhem 2 Science TeachingMarlon Salomão e Tiago Santos Almeida. “VI Colóquio de História e Filosofia da Ciência: As ciências humanas”. Goiânia, 2019 | Foto: PPGH/UFG

Este libro es la reelaboración de la tesis doctoral defendida en la Universidad de Sao Paulo por Tiago Santos Almeida, profesor en la Facultad de Historia de la Universidad Federal de Goiâs, y sin duda una de los mejores conocedores actuales de la obra del filósofo, médico e historiador de las ciencias Georges Canguilhem. La monografía ha sido prologada Carvalho Mesquita Ayres, profesor de Medicina Preventiva en la Universidad de Sao Paulo, y esto no es una casualidad. A diferencia de lo acontecido en España, los estudios sobre Salud Colectiva y Medicina Preventiva fueron marcados decisivamente en Brasil, desde su despegue en la década de 1970, por algunos de los trabajos más representativos de la tradición francesa en historia de las ciencias, en particular textos como Lo normal y lo patológico de Canguilhem y El nacimiento de la clínica, de Michel Foucault.

El desafío del libro consiste en dilucidar, a través de distintas calas en la obra de Canguilhem, hasta qué punto existe un “estilo francés” a la hora de pensar la historicidad de las disciplinas científicas. En su indagación, el autor no recurre sólo a los volúmenes publicados por Canguilhem. Avalado por una prolongada estancia de investigación en el CAPHÈS (Centre d’Archives de Philosophie, Histoire et Èdition des Siences), donde frecuentó a algunos de los principales especialistas y discípulos del pesador francés (Limoges, Debru, Braunstein), utiliza entrevistas y artículos poco conocidos del filósofo de Castelnadaury, y lo más importante, un importante acopio de los manuscritos inéditos procedentes del Fond Canguilhem, sito en el mencionado centro. Leia Mais

Wittgenstein and the Sciences: History and Philosophy of Science and Science Education | Transversal | 2021

Still under the terrible impacts of the pandemic, we have reached the tenth issue of Transversal: International Journal for the Historiography of Science. In this edition, we could honor Ludwig Wittgenstein, the man who was not only one of the greatest philosophers of the twentieth century but, with no fear of being mistaken, one of the greatest philosophers of all time. The 100th anniversary of the publication of Wittgenstein’s first book, the Tractatus Logico-Philosophicus, was our inspiration for the proposal of this special issue. However, most of the articles presented here do not deal specifically with the first philosophy of the Austrian philosopher but mainly with the later Wittgenstein’s work and its possibilities to analyze sciences.

Wittgenstein’s work reaches its centenary, but this obviously does not mean that we have already had the possibility of understanding it completely. An affirmation that becomes more dramatic, when considering the second phase of his thought, not only for being more recent but, above all, for presenting a disconcerting philosophical innovation, thus confronting more than two thousand years of philosophy. Therefore, more than a work of reference, Wittgenstein’s thought constantly offers us new possibilities with each new look that we cast upon it. Leia Mais

Pasteur’s empire: bacteriology and politics in France, its colonies and the world | Aro Velmet

Fruto de tese de doutorado, Pasteur’s empire combina ferramentas analíticas próprias à história da ciência, à história da medicina e à história global a fim de mapear as consequências políticas e científicas do encontro entre a microbiologia e o império francês. Cronologicamente, o livro abarca uma faixa de tempo compreendida entre o início da colonização francesa na Indochina, na última década do século XIX, até a capitulação de 1940, que encerra oficialmente a Terceira República. Geograficamente, embora tenha uma pretensão quase totalizante expressa em seu título, o livro recobre sobretudo a França e as colônias da Indochina (atuais Vietnã, Laos e Camboja), da Tunísia e do Senegal (este último parte integrante da então África Ocidental Francesa).

Aro Velmet trabalha um tema em particular em cada capítulo, indo desde a gestão de doenças epidêmicas como a peste bubônica, a febre amarela e a tuberculose em alguns desses espaços coloniais, passando pela tentativa dos pasteurianos em estabelecer um monopólio sobre a produção e venda de álcool na Indochina ou pela transformação geral dos pasteurianos, “monges ascetas” na metrópole, em grandes capitalistas coloniais. Após essa viagem por pelos menos três continentes ao longo de quase 50 anos, Velmet conclui que essa época pasteuriana na história da medicina possui características muito próximas da era atual: trabalho em rede, conectado ao mercado global e capaz de fornecer soluções orientadas para as causas biológicas e não sociais dos problemas. Em razão dessa similaridade, Velmet afirma que o deslocamento da microbiologia da França para as suas colônias desvela uma possível origem da saúde global. Leia Mais

Frontiers of Science: Imperialism and Natural Knowledge in the Gulf South Borderlands, 1500-1850 – STRANG (THT)

STRANG, Cameron B. Frontiers of Science: Imperialism and Natural Knowledge in the Gulf South Borderlands, 1500-1850. Williamsburg, VA: Omohundro Institute of Early American History and Culture and Chapel Hill, NC: The University of North Carolina Press, 2018. 376p. Resenha de: CLUXTON, Hadley Sinclair. The History Teacher, v.52, n.4, p.728-730, ago., 2019.

On the cusp of the nineteenth century, astronomers employed by Spain and the United States set out to survey the boundary between Spanish Florida and the United States as negotiated in the 1795 Treaty of San Lorenzo. Armed with a variety of scientific apparatus and a bevy of enslaved black men, the two imperial parties—both, ironically, headed by men of British descent—began the arduous task of making the astronomical observations that would establish the new line between nations. Each side boasted of their astronomical prowess, and each side denigrated the other’s supposed failures. However, it was not these imperially funded astronomers who ultimately decided the fate of this expedition. By their own admission, the surveyors never could have hacked their way through the dense foliage or persevered through the Mississippi River’s swamplands without the involuntary assistance of the enslaved black men rented out from nearby plantations. Furthermore, the entire expedition came to a screeching halt in 1800, when the armed resistance of Creek and Seminole peoples forced the empires to abandon their boundary survey. This is but one of many fascinating case studies that historian Cameron B. Strang presents on the production of natural knowledge in the Gulf South in Frontiers of Science: Imperialism and Natural Knowledge in the Gulf South Borderlands, 1500-1850.

Taking cues from one of his mentors, the inimitable historian Jorge Cañizares- Esguerra, Strang joyously exhumed from the archives rich and entangled narratives on the production of natural knowledge in the Gulf South borderlands and presented these histories in all their glorious complexity. The positive influence of other mentors can also be seen in Strang’s work: Jan Golinski’s constructivism, James Sidbury’s work on race, and Julia Rodriguez’s histories of science in Latin America. In Frontiers of Science, Strang presents a mosaic of case studies highlighting a diversity of Gulf South borderlands places, voices, and branches of natural knowledge. Incorporating a variety of knowledge practices—including astronomy, cartography, conchology, now-debunked phrenology, botany, and ethnography—these case studies defy the myth that only Anglo-Americans in the original thirteen colonies participated in the production of natural knowledge in America, or that scientific knowledge merely diffused outward from metropole to periphery. Rather, Strang argues that “natural knowledge and imperialism evolved together” (p. 21) and that indigenous peoples; free and enslaved blacks; Europeans from France, Spain, and Britain; Anglo-Americans; and creoles all formed part of a rich, polycentric network of intellectual exchange often characterized by loyalties as malleable as political boundaries.

The case studies in Frontiers of Science could make worthwhile readings for undergraduate or graduate classes in the history of science, intellectual history, U.S. history, Latin American history, indigenous history, or black history, just to name a few. Although Strang regularly emphasizes the interconnectedness between imperialism and the production of knowledge, he also builds a strong case demonstrating the importance of free and enslaved blacks in the history of natural knowledge that could (and should) be included in any classroom, given appropriate professorial curating. Until U.S. imperialism ossified the United States’ control over the region, blacks in the Gulf South participated at nearly every level of natural knowledge production. In addition, Anglo-American plantation owners who generously supported the advancement of science did so with wealth created through the labor of enslaved blacks—blacks who were actively oppressed intellectually as well as physically. To this end, Strang presents evidence that white supremacists in the Gulf South wielded science to actively construct the lie of black intellectual “inferiority” in order to justify slavery. As Strang stated, “the routes that supported slavery and science were often one and the same throughout the greater Caribbean” (p. 178). Students at every age deserve to learn about the historical ways in which Anglo-Americans created and perpetuated the structural inequality that persists to this day.

One challenge with incorporating this book into a pre-existing curriculum is the fact that it defies easy categorization. While the book flows well through a variety of case studies, Strang does not oversimplify his narratives. Furthermore, the histories stretch from 1500 to 1850 and include multiple imperial, indigenous, and African or African-descended groups, which poses serious issues of periodization.

This (much-needed) presentation of the entangled nature of knowledge production creates problems when trying to squash a round story into a square framework.

If a curricular rewrite is not feasible, one suggestion might be to excerpt case studies where they fit into a pre-existing outline. Another suggestion is to change the frameworks within which we study and teach history.

Strang calls for diversity in places and voices, as well as a more inclusive understanding of what constitutes “science.” Apart from a dearth of female perspectives, this book achieves that goal. Frontiers of Science is an intellectual love song to the Gulf South’s forgotten histories of natural knowledge, a quilt of intriguing case studies that relish in their inability to be readily categorized and constrained within our narrow historiographic frameworks. Strang’s book is a solid contribution to a burgeoning field—the history of natural knowledge in the Atlantic World—a field perhaps not in the process of consolidation, but rather in the process of decolonization.

Hadley Sinclair Cluxton – Odyssey School (Asheville, North Carolina).

Acessar publicação original

[IF]

Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história – IEGELSKI (AHSS)

IEGELSKI Francini Science Teaching
Francine Iegelski/Divulgação UFF

IEGELSKI F Astronomia das constelações humanas Science TeachingIEGELSKI, Francine. Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história. São Paulo: Humanitas, 2016, 422 p. Resenha de: BRANDI, Felipe. Annales.  Annales. Histoire, sciences sociales, v.2, p.450-452 2019. Acessar publicação original.

En 1949, Claude Lévi-Strauss publiait, dans un numéro de la Revue de métaphysique et de morale consacré aux « Problèmes de l’histoire », l’article « Histoire et ethnologie », devenu dix ans plus tard la célèbre introduction d’Anthropologie structurale 1. Les deux disciplines qui donnent son titre à l’article y sont montrées comme un Janus bifrons : deux sciences soeurs, solidaires, mais investies de missions opposées. Alors que l’histoire s’en tiendrait au domaine du particulier et à l’étude des expressions conscientes de la vie sociale, l’ethnologie paraît atteindre un degré plus élevé d’abstraction àmême d’explorer les « possibilités inconscientes » et d’opérer le passage à l’universel. Les historiens ont vite compris que leur discipline se trouvait menacée d’être reléguée aux tâches subalternes d’une science de second rang : la collecte consciencieuse des matériaux empiriques dont il reviendrait à d’autres d’opérer la synthèse. Méfiants, ils sentaient que l’anthropologue n’avait insisté sur la complémentarité des deux disciplines que pour mieux les hiérarchiser. Conquérante et forte de ses attraits, la jeune ethnologiemontrait qu’elle s’apprêtait à détrôner son aînée. Depuis lors, le thèmede l’histoire dans la pensée de Lévi-Strauss a suscité l’un des grands débats qui, en France et ailleurs, ont marqué les sciences de l’homme du second XXe siècle – un débat que nous aurions tort d’imaginer dépassé. Le livre de l’historienne brésilienne Francine Iegelski en témoigne. Issu d’une thèse de doctorat soutenue à l’université de São Paulo en 2012, le volume, préfacé par François Hartog et enrichi d’une présentation de Sara Albieri, fraye son chemin au milieu d’une vaste littérature par l’originalité d’une démarche qui allie histoire des idées et réflexion théorique, afin de montrer que les questions posées par Lévi-Strauss à l’histoire peuvent encore nous guider parmi les interrogations actuelles de l’historiographie.

L’ouvrage d’Iegelski présente un triple intérêt. Tout d’abord, il se centre sur les écrits de Lévi-Strauss et montre que celui-ci a enrichi l’histoire, suivant lemêmemouvement par lequel il en a fait une espèce de contrepoint à son projet d’anthropologie sociale. Ensuite, ce travail se lance dans une histoire intellectuelle qui retrace les débats et les controverses ayant jalonné la réception historienne des idées de Lévi-Strauss, depuis l’article de Fernand Braudel sur la longue durée jusqu’aux écrits d’Hartog. Enfin, il change à nouveau de peau et s’engage dans une réflexion, plus théorique, sur les « expériences du temps ». Ce livre est en effet celui d’une historienne de métier, dont le but est de réfléchir sur l’histoire.

On lit avec profit les chapitres qui déclinent les significations diverses dont l’histoire apparaît investie au sein de l’oeuvre de Lévi-Strauss : elle désigne tantôt les expériences vécues des sociétés (le « champ événementiel », si l’on veut), tantôt l’attitude subjective que les différentes sociétés adoptent face au devenir, tantôt un savoir constitué au sein des sociétésmodernes, que ce soit sous la forme de l’histoire qu’écrivent les historiens ou d’un grand récit aux mains des philosophes et des idéologues. Des thèmes bien connus sont utilement revisités : les rapports entre histoire et ethnologie, le problème des discontinuités culturelles, celui de la contingence irréductible de l’événement et, finalement, la mise à nu des rapports entre mythe et histoire. Le mérite essentiel de cette traversée repose sur la gerbe d’informations moissonnées et sur un effort de décryptage d’autant plus estimable que la matière est spécialement compliquée. Au fil de ce parcours, le thème de l’histoire se diffracte au sein des écrits de Lévi-Strauss, tout en restant une constante.

Si l’analyse de l’oeuvre occupe la plus grande part du livre, l’originalité de l’initiative d’Iegelski est de ne pas s’y arrêter. L’autrice couronne son étude par l’histoire du retentissement des idées de Lévi-Strauss chez les historiens, au fil d’un récit truffé d’aperçus nouveaux. Elle propose une lecture intéressante du discours de Lévi-Strauss à l’occasion de la 5e Conférence Marc Bloch, que les Annales publient en 1983 sous le titre « Histoire et ethnologie », comme un écho à son article de 1949 qui ne fait qu’accuser l’écart entre leur conjoncture polémique respective. Cette dernière contribution de Lévi-Strauss dans les Annales atteste que le rapport entre les deux disciplines s’était radicalement transforméentre-temps ; en témoigne aussi, dans le même numéro, un autre article, cette fois signé Hartog, sur l’anthropologie de l’histoire où apparaît pour la première fois, sous une forme encore embryonnaire, la notion de « régimes d’historicité 2 ».

Un quart de siècle après que Braudel a proposé la longue durée comme une réponse à l’avancée de l’anthropologie structurale, Hartog lit Marshall Sahlins et envisage qu’un nouvel échange entre historiens et anthropologues soit désormais placé au niveau de l’événement, et non des « structures », mettant ainsi à l’épreuve l’idéequelerefusduchangement serait l’attitude prédominante des sociétés traditionnelles, supposées « froides », face à l’histoire. La rencontre de ces deux articles de Lévi-Strauss et d’Hartog est explorée par l’autrice comme une coïncidence pleine de sens, qui marque le moment où une conjoncture intellectuelle s’achève afin qu’une autre commence. En amont, l’étude des sociétés dépourvues d’écriture (donc sans archives ni histoire) s’opposait aux recherches consacrées aux sociétés engagées dans le devenir ; en aval, la manière dont les sociétés conçoivent leur inscription dans l’histoire devient un champ problématique commun, partagé par les spécialistes des deux disciplines.

D’une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, l’ouvrage se transmue ainsi en une histoire intellectuelle de la réception historienne de ses écrits, avant de se convertir en un essai sur la genèse de la réflexion sur les « expériences du temps » dans le travail d’Hartog. Les pages finales sont particulièrement novatrices, dédiées à l’influence des écrits de Lévi-Strauss sur le tournant réflexif de l’historiographie des années 1980 et sur l’avènement de cet outil d’investigation historique du temps qu’est la notion de « régimes d’historicité ». L’enjeu touche ici à l’actualité qu’acquiert au sein du travail d’Hartog la réflexion de Lévi-Strauss sur l’histoire. Après avoir remis en question l’idéal de progrès, Lévi-Strauss fut aussi l’un des savants à avoir reconnu les signes avant-coureurs d’un bouleversement des rapports au temps qui allait toucher les sociétés modernes en cette fin de siècle.

En 1993, Lévi-Strauss revient sur le binôme sociétés froides/sociétés chaudes qu’il avait autrefois proposé et signale que les « états » auxquels correspondent ces deux catégories ne sont pas figés, mais eux-mêmes soumis au devenir historique.

Il constate alors une double évolution, symétriquement opposée, qui atteint autant les sociétés traditionnelles (froides) que les sociétés modernes (chaudes) lors du dernier quart du XXe siècle : les premières, s’insurgeant contre le pouvoir des anciens colonisateurs, s’engagent dans l’histoire et « se réchauffent », tandis que les secondes suivent un mouvement inverse de « refroidissement », né de leur effort pour neutraliser les effets du temps et résister au devenir. Signe d’une perte de confiance dans l’avenir provoquée par les expériences traumatiques du XXe siècle (guerres, explosion démographique, ravages de la civilisation industrielle), ce processus de refroidissement au sein des sociétés chaudes recoupe, selon l’autrice, ce qu’Hartog appelle le basculement du « régime moderne d’historicité » vers le « présentisme ». Visiblement, les deux diagnostics convergent et se recouvrent. Pour Iegelski, ce refroidissement dont parle Lévi-Strauss est une expression de la fermeture du futur et de la montée d’un présent omniprésent qui caractérisent le moment « présentiste ». Dans sa préface, Hartog accepte volontiers ce rapprochement, mais se demande si l’on ne peut voir dans le présentisme un « hyper-réchauffement », où l’accélération est telle que le devenir se consume aussitôt, jusqu’à ne laisser de place qu’à un présent perpétuel.

De nouvelles perspectives de recherche s’ouvrent ainsi aux spécialistes de l’historiographie. Elles témoignent de la fécondité des réflexions actuelles sur la conscience historique des sociétés et leur rapport au temps 3. Dans une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, on peut certes regretter que l’autrice effleure seulement le thème des théories diffusionnistes, lequel recèle une piste importante pour comprendre comment les analyses des mythes chez l’anthropologue se situent face à un débat relatif aux processus d’acculturation précolombiens ainsi qu’aux guerres et aux migrations qui ont tantôt rapproché, tantôt séparé les hautes civilisations et les cultures de la forêt et de la savane. On eût aimé qu’Iegelski posât le problème des organisations dualistes en tant que traces de l’histoire perdue d’un ancien syncrétisme, des contacts et d’un vieux fonds culturel commun d’où seraient dérivées les cultures des hautes et des basses terres. L’obscurité enveloppant le passé américain a représenté, sans conteste, un redoutable obstacle qui n’a pas été sans déterminer très tôt les positions adoptées parLévi-Strauss à l’égard de l’histoire. Ces remarques n’enlèvent pourtant rien à la portée d’une étude qui se lance dans une lecture résolument historienne de la pensée vivante de Lévi-Strauss, en convoquant ses différentes réflexions sur l’histoire, en vue de mieux s’armer pour répondre aux défis historiographiques qui sont aujourd’hui les nôtres.

Felipe Brandi. E-mail: [email protected] AHSS, 74-2, 10.1017/ahss.2020.20.

Notas

1- Claude LÉVI-STRAUSS, « Histoire et ethnologie », in Anthropologie structurale, Paris, Plon, [1949] 1958, p. 3-33.

2 – Id., « Histoire et ethnologie », et François HARTOG, «Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire », Annales ESC, 38-6, 1983, respectivement p. 1217-1231 et p. 1256-1263 ; François HARTOG, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Éd. du Seuil, 2003.

3 -Dossier « L’anthropologie face au temps », Annales HSS, 65-4, 2010, p. 873-996.

Women in Sciences: Historiography of Science and History of Science – on the Work of Women in Sciences and Philosophy | Transversal | 2019

Women’s participation in the advancement of science and the discussions of philosophical issues have a long history. In fact, their participation in the production of knowledge is as old as mankind itself, or in order to avoid the generic use of “man” and to use gender-neutral language, it would better to say that it is as old as humanity itself.

In 1690, Gilles Ménage published the first-ever history of women philosophers, Historia mulierum philosopharum (History of women philosophers), which provides an account of 65 female philosophers from the past 2,500 years. The Paris intellectual, Ménage, advocated for the appointment of women to the Académie française, arguing that their contribution had greatly enriched science and philosophy. Nearly 100 years later, in 1775, Christian August Wichmann wrote the German encyclopedia entitled Geschichte berühmter Frauenzimmer (History of famous women). Leia Mais

Methods and Cognitive Modelling in the History and Philosophy of Science–&–Education | Transversal | 2018

In order to inquire into the foundations of the History and Philosophy of Science & its connection to Education, more specifically, teaching science-NoS, the Inter-Divisional Teaching Commission (IDTC)3 reached high-level researchers to share their most recent works and findings in methods and cognitive modelling as the IDTC Special Issue on HPS-&- Education. By combining approaches of natural sciences & humanities in the investigation of the topics and promoting the cooperation between teaching educators, historians of science, historians and philosophers of science and specialist, the following articles offer an interesting influence on the actual debate from scientific, educationally and culturally standpoints.

In the context of nowadays constraints and technological progress regarding the teaching of physical and mathematical sciences, the investigation of the relevant scientificeducational questions is becoming more and more emergent. As such, and since science is synonymous with modernity and progress, research has to be evolving with its time as well as Nature of Science, Scientific Mediation, Popularization of Science and Technique, and Teaching methods and contents. Moreover, physics (Pisano 2009; Pisano and Capecchi 2015), mathematics (Dhombres 1992) and science education (Pisano and Bussotti 2015a, 2015c) are also a complex social phenomenon (Pisano 2016) since they are influenced by the labour market and the elementary knowledge of sciences required by anyone in the social-economic daily life. Leia Mais

Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência – CONDÉ (PH)

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência. Curitiba: ED. UFPR, 2017. 171 pg. Resenha de: SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da. Internalismo versus externalismo em história da ciência: uma proposta de integração. Projeto História, São Paulo, v.62, Mai-Ago, pp. 388-395, 2018.

Mais do que uma análise histórica sobre uma das maiores controvérsias existentes na História da Ciência, entre as escolas internalista e externalista de teoria científica, o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, do Professor Titular de História da Ciência na UFMG Mauro Lúcio Leitão Condé, desenvolve a ideia de superação da dicotomia entre essas duas perspectivas metodológicas. O objetivo da obra é construir a categoria epistemológica “historicidade da ciência”, uma proposta que promoveria a articulação entre os elementos sociais com as dimensões empíricas do real.

O livro é resultado do minicurso ministrado em setembro de 2013, por Condé, na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência – ligada ao Departamento de Filosofia da UFPR. Observada a trajetória acadêmica do autor, podemos concluir que esse estudo apresenta uma síntese de investigações que Condé vem desenvolvendo há quase três décadas. Em Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência o autor faz uso tanto de autores com os quais trabalha desde o início da carreira, como Wittgenstein e Thomas Kuhn, quanto de pensadores que começou a discutir com mais frequência nos últimos tempos, como Alexandre Koyré, Ludwik Fleck e Edgar Zilsel.

Como o problema da historicidade da ciência é de natureza epistemológica, esse estudo deve ser visto em um contexto disciplinar mais amplo. Para além das fronteiras da História da Ciência, o livro se alinha com outras áreas que investigam os pressupostos metateóricos que fundamentam a produção do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Antropologia. Embora o texto atinja uma notória profundidade teórica, é desenvolvido em uma linguagem simples e inteligível, sendo sua leitura indicada tanto aos iniciantes interessados em compreender a dicotomia externalismo versus internalismo, quanto aos iniciados que buscam aprofundar-se na temática.

Para operacionalizar sua análise, ou seja, para inter-relacionar as duas perspectivas metodológicas, Condé se utiliza do método comparativo. Em um primeiro momento, o autor elege representantes de cada uma dessas linhas teóricas – Koyré e Zilsel – e lança luz sobre seus principais pontos de divergência. Constatada a querela, Condé passa a analisar como a proposta externalista ganhou, a partir de Kuhn, proporções inimagináveis, ofuscando, inclusive, o que há de meritório na análise internalista. Por fim, o autor, resgatando ideias de Fleck e fazendo uso da filosofia da linguagem de Wittgenstein, procura desenvolver uma proposta de integração na qual tanto o internalismo como o externalismo são utilizados na confecção de uma epistemologia que analisa as influências socioculturais do cientista sem negligenciar o papel da natureza, a historicidade da ciência.

O livro se divide em prefácio, introdução, quatro capítulos e uma conclusão. O prefácio, escrito pelo professor da UFPR Eduardo Salles de O. Barra, busca introduzir o conceito de historicidade da ciência. Para Barra, o esforço de Condé se dá em compreender como o conhecimento científico é produzido por um profissional que está inserido em um determinado contexto. O que Condé, aos olhos de Barra, quer dizer é que o cientista não se encontra em uma ilha isolada quando pratica seus experimentos. Na realidade, existe um conjunto de valores sociais, de pressupostos, de imaginários, que, mesmo não intencionalmente, condicionam o cientista em suas atividades. A “esterilização” laboratorial não levaria em conta que o próprio cientista, na prática da ciência, já estaria partindo de pressupostos, tradições, consensos acadêmicos, refutando, assim, a possibilidade de se atingir um conhecimento pretensamente positivo.

Mas essa forma de analisar a ciência como uma prática social observando seus condicionantes externos – ou seja, a visão externalista – teria se radicalizado em estudos do final do século XX, valorizando em demasia a abordagem sociológica da ciência e atingindo nuances próprias ao relativismo (p. 16). Estudos sobre a teoria científica desenvolvidos pelo Programa Forte da escola de Edimburgo acabariam por retirar a importância da natureza na prática científica, dando, assim, excessivo valor às dimensões sociais presentes no “fazer ciência”. Para Barra, o grande  mérito do livro de Condé está, justamente, em propor uma epistemologia ligada aos estudos sobre a teoria da ciência que, como veremos, pense a atividade científica como um produto da interação linguística entre o aspecto social, próprio do contexto do cientista, que não negligencia o papel do dado empírico proveniente da investigação do mundo natural.

Na Introdução, denominada A ciência tem uma história, Condé anuncia uma de suas teses centrais: a de que, para além da conclusão óbvia de que as ciências têm uma história, a forma como essas histórias são construídas também influenciam o próprio processo de produção científica. Isto é, constatada que a visão dos homens é condicionada historicamente, essa premissa é estendida aos cientistas e às atividades laboratoriais: “Todo conhecimento da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística” (p. 28). Mais do que história, as ciências possuem historicidade.

O Capítulo 1, intitulado O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate internalismo versus externalismo, tem como objetivo mostrar que as origens desse debate remontam à controvérsia sobre as origens da ciência moderna. Os internalistas, representados na figura de Alexandre Koyré, defendem que a Revolução Científica aconteceu por conta de uma mudança na “atitude metafísica” (p. 32), uma alteração de pensamento no plano teórico, que desbancou a escolástica medieval e instaurou um novo cenário intelectual que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna e, consequentemente, das novas tecnologias. Do lado oposto, os externalistas, representados por Edgar Zilsel, advogam que a Revolução Científica foi protagonizada pelas mudanças oriundas da união do saber prático dos artesãos-engenheiros (o “saber-fazer”) com a racionalidade e o saber teórico da tradição filosófica (o “saber-pensar”), gerando o método experimental que caracterizou a ciência moderna. A emergência do capitalismo e a valorização da tecnologia e da mercadoria teriam influenciado esse processo. Assim, enquanto Koyré e os internalistas entendem a Revolução Científica como uma mudança de “atitude metafísica”, Zilsel e os externalistas a compreendem como uma consequência do novo contexto social e econômico que caracterizou a Modernidade.

Condé argumenta que, embora Koyré e Zilsel tenham lançado duas importantes perspectivas metodológicas para os historiadores da ciência, seus modelos continham imprecisões. O internalismo koyreniano, amplamente baseado no realismo matemático de perfil platônico e cartesiano, desconsiderava a influência do contexto na atividade dos cientistas. Já o externalismo, na forma como apresentada por Zilsel, além de não produzir o conceito de historicidade, já que não desenvolveu a ideia de que a história de uma ciência afeta o seu resultado, dava excessiva importância à tese de que a ciência moderna surgiu da união do “saber-fazer” com o “saber-pensar”. Este argumento foi questionado pelos internalistas que observaram que os antigos romanos também contavam com essas duas práticas em sua sociedade e não produziram a ciência moderna. Assim, mais do que desenvolvimento técnico, os internalistas defendiam que as mudanças trazidas pela Revolução Científica se davam na “atitude metafísica”.

No Capítulo 2, O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade da ciência, Condé mostra como a ideia de historicidade da ciência, amplamente divulgada por Kuhn na década de 1960, já existia desde a década de 1930, desenvolvida pelo médico e filósofo Ludwik Fleck. Este pensador teria sido o primeiro a refletir sobre as conexões que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Segundo Condé, Fleck inaugura uma nova epistemologia para se pensar a prática científica na qual a ciência não pode ser vista separada de seu contexto histórico e social. O conhecimento científico não seria apenas fruto do “estilo de pensamento” de um determinado coletivo de cientistas, mas de toda a sociedade na qual o praticante da ciência está inserido. A partir dessa constatação, Condé conclui que não existe conhecimento fora do social e, consequentemente, fora do tempo. Essa seria a noção de historicidade da ciência que Fleck chamaria, na década de 1930, de “ciência das ciências”. Essas ideias entrariam em conflito com o objetivismo característico do neopositivismo do Círculo de Viena, vertente epistemológica hegemônica da época, o que acabou por relegar Fleck ao ostracismo.

No Capítulo 3, “Um papel para a História”: historicidade versus relativismo em Thomas Kuhn, Condé analisa Kuhn em dois momentos. No primeiro, quando, na década de 1960, publica A Estrutura das Revoluções Científicas, afirmando a importância do contexto histórico no “fazer científico” – premissa que foi de encontro às pretensões de objetividade do “racionalismo crítico” de Popper. E, em um segundo momento, a partir da década de 1970, quando alguns de seus seguidores conduziram o estudo da dimensão social da prática científica às últimas consequências, o que acabou por ocasionar o surgimento de grupos de pesquisas que desabilitavam qualquer pretensão objetiva de investigação da natureza – o Programa Forte de David Bloor seria um exemplo. Estes grupos, chamados socioconstrutivistas, foram considerados por Kuhn como relativistas. Segundo Condé, o autor da A Estrutura das Revoluções Científicas passaria o resto da carreira tentando desenvolver uma teoria que conciliasse a dimensão social com a natural. Entretanto, teria morrido antes de terminar esse projeto. Assim, a “tensão essencial” para Kuhn seria o paradoxo insolúvel no qual “sociedade” e “natureza” são, supostamente, inconciliáveis. Mas Kuhn teria deixado algumas pistas que apontavam para uma possibilidade de inter-relação linguística entre esses dois mundos. Abandonando a noção dos paradigmas, Kuhn passaria a estudar o diálogo entre os diferentes grupos científicos a partir da teoria da linguagem e da tradução dos seus respectivos “campos léxicos”.

Entretanto, segundo Condé, a teoria da linguagem científica desenvolvida por Kuhn defendia a “coisa em si” kantiana, o que o teria impedido de levar a análise linguística às últimas consequências. E é a partir desse horizonte que Condé, no Capítulo 4, Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico, utiliza a filosofia da linguagem desenvolvida por Wittgenstein para estudar uma possibilidade de congregar os três conceitos: a sociedade, a linguagem e a natureza. A partir da ideia de “gramática da ciência” o autor propõe que a “historicidade do conhecimento” é feita pela linguagem, a partir da “tessitura”, ou entrelaçamento, dos aspectos sociais e dos dados empíricos obtidos do mundo natural.

Condé nega qualquer tipo de essência transcendental na linguagem, assumindo, por meio de Wittgenstein, que seu uso nos diferentes contextos é regido por regras – as “gramáticas” –, e que essas categorias de linguagem estão em permanente construção, sendo, portanto, produto da “práxis social”. O que Condé está defendendo é que a “coisa em si” kantiana é questionável nessa abordagem linguística e que a própria cultura científica estabelece, em um movimento permanente, as regras que normatizam as práticas científicas. Diferente do relativismo socioconstrutivista do Programa Forte, Condé admite que essa construção linguística da prática científica é feita, também, em diálogo com a natureza, compreendida como “objetos, fatos, ações” (p. 150). Assim, o autor argumenta que a epistemologia sugerida pela historicidade da ciência reconhece na linguagem a possibilidade de articulação da dimensão social com a natural e empírica do trabalho científico.

Na Conclusão do livro, Condé, além de desenvolver uma síntese das discussões dos capítulos anteriores, afirma que a historicidade da ciência pode ser um horizonte epistemológico produtivo para os analistas interessados em compreender a prática científica como um fenômeno de linguagem que congrega tanto a dimensão social quanto a natural.

O livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, mais do que apresentar de forma relevante uma possibilidade de superação do problema internalismo versus externalismo, fornece, com agudeza, novas diretrizes epistemológicas para o estudioso da teoria da ciência interessado em refletir sobre as historicidades possíveis na relação entre o “sujeito” e o “objeto” a partir de uma perspectiva linguística.

Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva – Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, é aluno do Programa de Pós-graduação em História da UNESP/Assis. Tem experiência na área de História da Ciência. Número ORCID: 0000-0001-8697-2799. E-mail: [email protected].

Pierre Duhem’s Philosophy and History of Science | Transversal | 2017

We are pleased to present in this issue a tribute to the thought of Pierre Duhem, on the occasion of the centenary of his death that occurred in 2016. Among articles and book reviews, the dossier contains 14 contributions of scholars from different places across the world, from Europe (Belgium, Greece, Italy, Portugal and Sweden) to the Americas (Brazil, Canada, Mexico and the United States). And this is something that attests to the increasing scope of influence exerted by the French physicist, philosopher and historian.

It is quite true that since his passing, Duhem has been remembered in the writings of many of those who knew him directly. However, with very few exceptions (Manville et al. 1927), the comments devoted to him exhibited clear biographical and hagiographic characteristics of a generalist nature (see Jordan 1917; Picard 1921; Mentré 1922a; 1922b; Humbert 1932; Pierre-Duhem 1936; Ocagne et al. 1937). From the 1950s onwards, when the studies on his philosophical work resumed, the thought of the Professor from Bordeaux acquired an irrevocable importance, so that references to La théorie physique: Son objet et sa structure became a common place in the literature of the area. As we know, this recovery was a consequence of the prominence attributed, firstly, to the notorious Duhem-Quine thesis in the Englishspeaking world, and secondly to the sparse and biased comments made by Popper that generated an avalanche of revaluations of the Popperian “instrumentalist interpretation”. The constant references Duhem received from Philipp Frank, translator of L’évolution de la mécanique into German as early as 1912, certainly cannot be disregarded (see Duhem 1912 [1903]). As it happened, the reception of Duhem’s ideas conditioned the subsequent debate on the prevailing preferences in the English-speaking world, namely, the thesis of underdetermination of theories by data, the merely representative value of theories, the criticism of the inductive method, and, especially, the holism and criticism of the crucial experiment, culminating in the volume edited by Sandra Harding (1976). Leia Mais

Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin | Franscismary Alves da Silva

A institucionalização da Ciência Moderna, como a conhecemos hoje, tem a sua origem associada às transformações conceituais e metodológicas pelas quais o desenvolvimento científico passou, essencialmente, entre os séculos XVI e XVII. Tais transformações com o tempo passaram a ser trabalhadas pela historiografia sob a designação de “revolução científica”. A dinamicidade e a amplitude com que este conceito foi problematizado ao longo do século XX é o foco central da pesquisa realizada pela professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Francismary Alves da Silva em sua dissertação de mestrado, Historiografia da Revolução Científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin, defendida junto ao Departamento de História da UFMG em 2010 e publicada recentemente (2015) com o mesmo título. Nesse estudo a autora discute de maneira didática, a partir de uma perspectiva histórica, as principais questões com que a História da ciência se deparou com relação aos conhecimentos humanos sobre a natureza, fundamentalmente, em três momentos específicos: na consolidação, no apogeu e o declínio da expressão “revolução científica”. Leia Mais

Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas – GALILEI (SS)

GALILEI, Galileu. Sidereus nuncius – O mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas de Henrique Leitão. Porto:  Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. Resenha de: SILVA, Paulo Tadeu da. A mensagem, o mensageiro e o tradutor: a propósito da tradução portuguesa do Sidereus nuncius. Scientiæ Studia, São Paulo, v.11, n. 4, p. 937-46, 2013.

A Fundação Calouste Gulbenkian publicou, em 2010, a primeira tradução portuguesa de um dos textos mais importantes da história da ciência e, sem qualquer dúvida, aquele que causou o mais profundo impacto no mundo científico europeu das primeiras décadas do século xvii, a saber, o Sidereus nuncius, de Galileu Galilei. A publicação dessa tradução ocorreu quatrocentos anos após a primeira publicação do Sidereus nuncius, ocorrida em março de 1610 e, como diz Sven Dupré (p. 8), que escreve a nota de abertura à tradução portuguesa, no momento em que o pó de intensas e numerosas atividades e eventos comemorativos do Ano Internacional da Astronomia começava a assentar. Segundo Dupré, diversos estudiosos têm voltado sua atenção para esse pequeno texto, explorando diferentes aspectos, como, por exemplo, a importância do mecenato, a relação entre o contexto artístico e as imagens lunares produzidas por Galileu, os aspectos literários do texto ou, ainda, os aspectos técnicos relacionados com a produção de lentes e a invenção do telescópio. Essa diversidade de abordagens, como afirma Dupré (p. 8), coloca em evidência o caráter interdisciplinar dos estudos dedicados ao texto, bem como mostra a sua importância não apenas no contexto científico mais restrito, mas também no âmbito cultural mais amplo.

Apenas a tradução do texto para a língua portuguesa já mereceria destaque e reconhecimento. Contudo, Henrique Leitão vai além de uma tradução segura e cuidadosa do original latino. Além dela, Leitão oferece ao seu leitor um estudo introdutório e um bom conjunto de notas explicativas que contribuem para uma melhor compreensão dos aspectos históricos, filosóficos e científicos com os quais o livro de Galileu esteve envolvido. Antes de considerar o estudo introdutório, convém destacar alguns pontos do prefácio de Leitão.

Henrique Leitão inicia o prefácio afirmando que o Sidereus nuncius é “uma obra que pode, sem qualquer exagero, ser considerada a mais emblemática, a mais perturbadora, mas também a mais acessível de todas quantas compõem o excepcional panteão dos textos da ‘revolução científica’” (p. 11). Tal importância, entretanto, contrasta justamente com a ausência, em Portugal, de uma tradução desse texto. Como sabe o leitor brasileiro, não se trata da inexistência de qualquer tradução para a língua portuguesa. E, de fato, Leitão não deixa escapar esse detalhe. Depois de uma breve referência no prefácio, Leitão faz uma menção mais detalhada no estudo introdutório, avaliando as duas edições da tradução brasileira, feita por Carlos Ziller Camenietzki, bem como o estudo introdutório e as notas que a acompanham. De acordo com Leitão, a tradução brasileira visou um público bastante amplo, ao passo que a tradução portuguesa, ainda que não esteja endereçada ao especialista na obra de Galileu, tem em vista um público culto e informado. O principal motivo da afirmação quanto ao escopo da tradução portuguesa está no fato de que “o especialista nunca dispensará a leitura do texto de Galileu na sua versão latina original” (p. 12). Não obstante os propósitos alegados por Leitão, cumpre avaliar a natureza e o alcance desta edição do Sidereus nuncius, bem como o lugar deste pequeno texto de Galileu no longo processo que marcou a defesa do copernicanismo.

O primeiro aspecto que chama a atenção é justamente o título da primeira seção do estudo introdutório: “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”. Como Leitão adverte na nota 8 do estudo, bem como na nota 1 da tradução, o termo gazeta foi adotado por Carlos Solís Santos, responsável pela tradução espanhola do Sidereus nuncius. Santos, além de deixar clara sua decisão de romper com a tradição, justifica que o termo avviso,1 além de significar “notícia” ou “noticiário”, pode ser entendido como “gazeta”. A decisão de Santos, como afirma Leitão, pretende colocar em evidência o caráter “sensacional e jornalístico do livro de Galileu”. Leitão, pelo contrário, opta pela tradução que, segundo ele, é a mais habitual. O debate em torno da tradução do título do livro de Galileu é um assunto largamente discutido, sabemos disso. Contudo, gostaria de apresentar algumas rápidas considerações sobre a decisão de Leitão, em contraste com outras soluções de tradução como, por exemplo, aquela adotada na primeira edição da tradução brasileira. Em primeiro lugar, Leitão discute nas notas 1 e 22 da tradução as duas opções quanto ao título (cf. p. 207 e 212), entretanto, ele mesmo reconhece que o sentido que Galileu tinha em mente era de “mensagem”. Em segundo lugar, na primeira nota, Leitão observa que a segunda edição da tradução brasileira apresenta uma alteração com respeito à primeira edição, substituindo “mensagem” por “mensageiro”. Mas é importante notar que essa decisão foi tomada pelos editores da segunda edição da tradução brasileira e não por Carlos Ziller Camenietzki. Como adverte Ulisses Capazzoli na nota de apresentação à segunda edição, a opção por “mensageiro” teve em vista seguir a tradição, ainda que Camenietzki “tenha justificado devidamente a opção que fez” (Galilei, 2009[1610], p. 6). De fato, Camenietzki justifica sua escolha tendo em vista o modo como Galileu referiu-se ao livro em algumas cartas. Mas certamente um dos pontos importantes quanto à tradução “mensageiro das estrelas” está relacionado a Kepler. Como adverte Mourão na apresentação da primeira edição da tradução brasileira, “é a Kepler que se deve o sentido de ‘o mensageiro das estrelas’ para a obra de Galileu que, na realidade, usou a expressão sidereus nuncius no sentido de ‘a mensagem das estrelas” (Galilei, 1987 [1610], p. 6).2 Entre a manutenção daquilo que Galileu tinha em mente e o respeito à tradição, Leitão prefere a segunda alternativa. Mas então qual a razão do título da primeira seção do estudo introdutório de Leitão? Ao referir-se a “Uma Gazeta Sideral com ‘osservazioni di infinito stupore”, o tradutor português não estaria reconhecendo justamente a pertinência do título “A mensagem das estrelas”? Feitas essas breves considerações, voltemos ao estudo introdutório.

Leitão abre sua exposição enfatizando os impactos do livro de Galileu: “é difícil encontrar na história científica um outro exemplo que se lhe compare, quer na estrondosa comoção que causou imediatamente, quer nas dramáticas consequências a que deu origem” (p. 19). Tais impactos serão destacados por Leitão nos parágrafos seguintes, quando ele trata, por exemplo, da propagação das descobertas galileanas não somente no mundo europeu, mas também para além dele, na Índia e na China. A ênfase na relevância dessas descobertas se vê fortalecida na continuidade do texto de Leitão, na medida em que discorre sobre um conjunto de aspectos relacionados à natureza das observações telescópicas de Galileu, sua adesão às teses copernicanas, as consequências da publicação do texto de 1610 para sua carreira e os efeitos das novidades por ele relatadas no meio científico e filosófico da primeira metade do século xvii. Tais aspectos estão presentes nos blocos temáticos do estudo introdutório, os quais poderiam ser resumidos da seguinte maneira: (1) breve exposição sobre a história do telescópio; (2) descrição da estrutura do Sidereus nuncius e das observações telescópicas nele contidas; (3) a redação da obra e sua relação com os Medici; (4) as observações astronômicas de Galileu depois da publicação do Sidereus nuncius; (5) os impactos da obra na comunidade científica e filosófica do período; (6) a recepção das novidades telescópicas de Galileu em Portugal.

O trajeto percorrido por Leitão ao longo desses blocos temáticos conduz seu leitor a compreender, em linhas gerais, o contexto no qual o livro de Galileu está inserido. O destaque inicial, claramente vinculado ao estupor ocasionado pelas novidades anunciadas por Galileu, dá lugar ao desenvolvimento de um panorama que coloca sob nossos olhos os aspectos técnicos, cosmológicos, filosóficos e sociais que cercam a obra em questão. Tal panorama começa com um breve histórico sobre a invenção do telescópio, a maneira como Galileu toma conhecimento do mesmo, seu trabalho na construção de telescópios cada vez mais potentes e as dificuldades práticas envolvidas nesse processo (como, por exemplo, o polimento adequado das lentes). Esse histórico prepara o leitor para o significado das observações contidas no Sidereus nuncius e, consequentemente, fortalece o papel decisivo e revolucionário desse instrumento científico. Como afirma Leitão: “o telescópio é, pois, parte integrante e essencial da ‘mensagem’ que Galileu queria dar” (p. 29). E, de fato, isso se faz notar nas primeiras páginas do texto de Galileu, nas quais encontramos o seguinte.

Grandes coisas, na verdade, são as que proponho neste pequeno tratado para que sejam examinadas e contempladas por cada um dos que estudam a natureza. Coisas grandes, digo, pela própria excelência do assunto, pela sua novidade absolutamente inaudita e ainda por causa do instrumento com o auxílio do qual elas se tornaram manifestas aos nossos sentidos (Galilei, 2010 [1610], p. 151).

Tais grandes coisas, resultado das observações astronômicas de Galileu, serão anunciadas logo após um brevíssimo relato sobre como a notícia do surgimento do telescópio chegou ao seu conhecimento e de como ele construiu esse instrumento. De acordo com Leitão, o Sidereus nuncius contém basicamente dois tratados: o primeiro sobre a Lua e o segundo sobre Júpiter, separados por algumas páginas dedicadas às estrelas fixas. Cada uma dessas partes possui caráter e consequências particulares. Como sabemos, as observações da superfície lunar determinam sérias dificuldades para a cosmologia aristotélica. Se a existência de vales, crateras e montanhas (o que se conclui a partir das imagens obtidas por intermédio do telescópio) demonstra que a superfície da Lua não é “perfeitamente polida, uniforme e exatamente esférica, como um exército de filósofos acreditou” (Galilei, 2010 [1610], p. 156), a natureza da luz secundária que banha o corpo lunar reforça a sua similaridade com a Terra para além das suas semelhanças de relevo.

As páginas que seguem ao relato sobre a superfície lunar, ainda que denominadas por Leitão como uma digressão, abordam outro aspecto importante para a cosmologia e a astronomia do período. A observação telescópica das estrelas fixas revela aos olhos do observador moderno um número muito maior desses astros e o seu papel na constituição de determinadas regiões celestes, como a constelação de Órion (até então compreendida como uma nebulosa) e a Via Láctea. Duas passagens do texto de Galileu ilustram muito bem tais aspectos.

Na verdade, com a luneta poderá ver-se uma tal multidão de outras estrelas abaixo da sexta grandeza, que escapam à vista desarmada, tão numerosa que é quase inacreditável, pois podem observar-se mais do que seis outras ordens de grandeza (…). Aquilo que foi por nós observado em terceiro lugar foi a essência ou matéria da própria Via Láctea que, com auxílio da luneta, pode ser observada com os sentidos, de modo que todas as disputas que durante gerações torturaram os filósofos são dirimidas pela certeza visível, e nós somos libertados de argumentos palavrosos. De fato, a galáxia não é outra coisa senão um aglomerado de incontáveis estrelas reunidas em grupo (Galilei, 2010 [1610], p. 175-7).

A última parte do Sidereus nuncius é dedicada ao anúncio dos quatro satélites de Júpiter, cujas implicações vão desde a sua nomeação de “estrelas mediceias” até seu papel como argumento em favor do copernicanismo. Os comentários de Leitão a respeito dessas implicações são, mais uma vez, bastante esclarecedores. Quanto ao primeiro tipo de implicação, ele dedica atenção não somente na breve análise que faz desta parte do texto de Galileu, mas também em outro momento do estudo introdutório, no qual discorre exclusivamente sobre a relação entre a publicação do Sidereus nuncius e a homenagem de Galileu à família Medici. Quanto ao segundo tipo de implicação, Leitão recupera o processo de observação de Júpiter, evidenciando a crescente importância do fenômeno para a conversão explícita e militante de Galileu ao copernicanismo (cf. p. 82). As observações posteriores à publicação do Sidereus nuncius, como foi dito acima, são brevemente tratadas por Leitão no estudo introdutório. Dentre elas, as observações das fases de Vênus e das manchas solares fortalecem a convicção de Galileu em prol do copernicanismo e, portanto, são elementos igualmente importantes para a sua defesa do novo sistema astronômico. De fato, encontramos na carta endereçada a Benedetto Castelli, datada de 21 de dezembro de 1613 (cf. EN, 5, p. 281-8), o uso de um argumento em defesa de Copérnico claramente vinculado às observações das manchas solares. A fim de demonstrar de que maneira a famosa passagem de Josué é compatível com o sistema copernicano e, por outro lado, não pode ser explicada pelo sistema ptolomaico, Galileu afirma no penúltimo parágrafo da carta:

Tendo eu, portanto, descoberto e demonstrado necessariamente que o globo do Sol gira sobre si mesmo, fazendo uma rotação completa em cerca de um mês lunar precisamente naquele rumo em que se fazem todas as outras rotações celestes; sendo, ademais, muito provável e razoável que o Sol, como instrumento e ministro máximo da Natureza, como que coração do mundo, dê não apenas, como ele claramente dá, luz, mas também movimento a todos os planetas, que giram em torno dele (Galilei, 2009, p. 25-6).

Se as observações astronômicas tiveram consequências importantes no posicionamento adotado por Galileu, o conhecimento daquelas que estão presentes no Sidereus nuncius causaram, por sua vez, profundos efeitos no ambiente científico e filosófico do período. Leitão avalia esses efeitos nos dois últimos momentos de seu estudo introdutório. O primeiro deles apresenta um exame geral desses impactos no mundo científico da época, ao passo que o segundo é particularmente dedicado à análise das novidades telescópicas de Galileu em Portugal. Mas os dois momentos não estão separados. Pelo contrário, aquilo que Leitão descreve acerca do que ocorreu em Portugal está claramente associado às repercussões das observações astronômicas de Galileu na Companhia de Jesus e entre os astrônomos do Colégio Romano. De modo geral, a exposição de Leitão sobre o impacto do Sidereus nuncius procura colocar em evidência a recepção e a avaliação dessa obra por Kepler e pelos astrônomos do Colégio Romano. No primeiro caso, trata-se da aprovação do maior astrônomo do período, a quem Galileu solicita expressamente a opinião. A resposta de Kepler à solicitação de Galileu ocorre alguns dias após receber uma cópia do Sidereus nuncius. A carta enviada por Kepler a Galileu é posteriormente corrigida e ampliada, sendo publicada sob o título Dissertatio cum nuncio sidereo. A avaliação de Kepler é marcada pelo tom elogioso e entusiasmado, não obstante ele advirta que Galileu não inventou o telescópio, como também não foi o primeiro a “falar da natureza rugosa da superfície lunar e que não fora também o primeiro a referir que havia muito mais estrelas no céu” (p. 106). Se a avaliação de Kepler depositava nas mãos de Galileu um trunfo de enorme valor, a confirmação de suas observações por parte dos astrônomos do Colégio Romano lhe conferia crédito importantíssimo no âmbito institucional e científico vinculado ao poder eclesiástico. A resposta às demandas encaminhadas pelo cardeal Roberto Bellarmino (cf. EN, 11, p. 87-8) aos membros daquela instituição não confirma apenas as observações presentes no pequeno texto de 1610, mas ainda as outras que se seguiram à publicação do Sidereus nuncius (cf. EN, 11, p. 92-3). Embora essa fosse uma vitória da maior relevância, ela não significou, no âmbito dos jesuítas, a adoção do sistema copernicano. As dificuldades oriundas das observações astronômicas requeriam uma nova explicação dos céus e dos movimentos planetários e durante algum tempo os jesuítas estiveram envolvidos com os problemas cosmológicos que então se apresentavam, resultantes das observações astronômicas com o auxílio do telescópio. Depois da morte de Clávio, em 1612, os debates continuaram de modo intenso na Companhia de Jesus. Segundo Leitão, “a verdade é que, em 1620, com a publicação da Sphaera mundi seu cosmographia, de Giuseppe Biancani (1566-1624), o sistema de Tycho Brahe passou a ser ‘oficialmente’ adotado pela Companhia de Jesus” (Leitão, 2008, p. 31).

Os reflexos das descobertas astronômicas de Galileu têm, na última parte do estudo introdutório de Leitão, um destaque especial, ainda que não exaustivo. É neste momento que o tradutor português trata particularmente das repercussões da invenção do telescópio e das observações astronômicas de Galileu entre os jesuítas da Companhia de Jesus, mais precisamente na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. A chegada dessas notícias foi favorecida em virtude das relações entre a Companhia de Jesus e o mundo europeu culto daquele período, como, por exemplo, a estreita relação entre a “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão com a Academia de Matemática de Clávio. Se a chegada dessas notícias a Portugal foi resultado desse tipo de relação, é igualmente o papel desempenhado pela Companhia de Jesus que permite que as novidades astronômicas sejam recebidas em países mais distantes da Europa, como a Índia e a China, nos quais se encontravam, respectivamente, o padre Giovanni Antonio Rubino (cf. p. 118) e o jesuíta Manuel Dias Júnior (cf. p. 120). Mas a atenção de Leitão está dirigida para a recepção e desenvolvimento da astronomia na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão, o que o leva a tratar do debate cosmológico que então se desenvolveu naquela instituição com as notícias sobre as observações telescópicas de Galileu. Nesse contexto, dois personagens merecem destaque, Giovanni Paolo Lembo, responsável pela construção de telescópios no Colégio Romano, e o jesuíta italiano Cristoforo Borri, que teve um papel importante nos debates cosmológicos do período (cf. p. 129). O primeiro deles, Lembo, foi o grande responsável pela introdução de Galileu e suas descobertas astronômicas em Portugal, ao passo que Borri foi um notável divulgador das novidades astronômicas naquele mesmo país. Ambos têm passagem pelo Colégio de Santo Antão, no qual lecionaram alguns cursos. Lembo lecionou entre 1615 e 1617, período no qual se desenvolveu o longo e intenso debate cosmológico e teológico em torno das hipóteses copernicanas e, Borri, entre 1627 e 1628. É por meio da trajetória desses dois personagens na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão que Leitão oferece ao seu leitor um quadro geral sobre a introdução das observações celestes de Galileu em Portugal, bem como sobre o posicionamento dos jesuítas portugueses frente ao debate cosmológico das primeiras décadas do século xvii. Nesse último contexto, ele mostra que os matemáticos jesuítas, embora abandonem o modelo astronômico ptolomaico (pois ele não se mostrava mais sustentável frente às descobertas feitas com o telescópio), não adotam o sistema copernicano. Como dito anteriormente, os jesuítas optam pelo modelo proposto por Tycho Brahe, ou alguma variante desse modelo.

Como dito no início desta resenha, Leitão afirma que a tradução portuguesa está endereçada ao público culto e informado e que o especialista jamais dispensará a leitura do original latino do Sidereus nuncius. Além disso, no prefácio, ele lamenta que “quase nada do que Galileu escreveu foi alguma vez traduzido em Portugal” (p. 11). Tais declarações merecem agora algumas ponderações, uma vez que a tradução é dirigida àquele público ao qual Leitão se refere. O trabalho de Leitão merece o justo reconhecimento, não apenas pela tradução cuidadosa, mas também pelo estudo introdutório. Trata-se, sem dúvida, de uma leitura fundamental para todos os interessados na obra de Galileu. Contudo, esse mesmo público, culto e informado, não deixará de perceber algumas ausências notáveis naquilo que diz respeito às traduções disponíveis, seja de textos do próprio Galileu, seja de outros que estão diretamente relacionados com a contenda em torno do copernicanismo. Nesse sentido, lamenta-se, por exemplo, a falta de referência a algumas traduções brasileiras, dentre as quais destaco as seguintes: (1) a tradução brasileira de O ensaiador, realizada por Helda Barraco (cf. Galilei, 1978); (2) a tradução brasileira comentada do Commentariolus, de Copérnico, feita por Roberto de Andrade Martins (cf. Copérnico, 1990); (3) a tradução brasileira das cartas relacionadas com o debate teológico e cosmológico com o qual Galileu esteve envolvido, realizada por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (cf. Galilei, 2009); (4) a tradução brasileira comentada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, feita por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2011 [1632]); (5) as traduções brasileiras comentadas da Carta de Galileu a Francesco Ingoli e da Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico, de Francesco Ingoli de Ravena, realizadas por Pablo Rubén Mariconda (cf. Galilei, 2005; Ingoli, 2005). Essas últimas traduções, feitas por Mariconda, merecem destaque especial tendo em vista a relação dos estudos que as acompanham com a defesa galileana do copernicanismo. A tradução do Diálogo, cuja primeira edição é de 2001, conta com um valioso estudo introdutório, intitulado “O diálogo e a condenação”, a partir do qual é possível compreender, com riqueza de detalhes e profundidade de análise, todo o período no qual Galileu esteve envolvido com a defesa do modelo copernicano. As traduções do texto de Ingoli e da resposta de Galileu são, por sua vez, acompanhadas de um estudo intitulado “O alcance cosmológico e mecânico da carta de G. Galilei a F. Ingoli” (Mariconda, 2005). Tais estudos ampliam significativamente o quadro apresentado por Leitão. Todas essas traduções são anteriores àquela de Leitão e, assim, esperaríamos que estivessem referidas no prefácio, no estudo introdutório ou nas notas à tradução.

Não há dúvida de que trabalho realizado por Leitão deve ser colocado ao lado das traduções acima referidas, bem como da tradução portuguesa de As revoluções dos orbes celestes, de Copérnico, feita por A. Dias Gomes e Gabriel Domingues (cf. Copérnico, 1996 [1543]). De fato, não é difícil notar que a tradução do Sidereus nuncius preenche uma lacuna importantíssima naquela prateleira da estante, nossa e principalmente de nossos alunos. A meu ver, são especialmente estes últimos que ganham uma contribuição de valor inquestionável com o trabalho de Leitão. É por meio da tradução da mensagem enviada por Galileu, que o tradutor português lega ao futuro especialista mais uma peça para montagem do quadro de uma época que ainda reclama nossa atenção. De fato, este novo volume na estante não mostra apenas um retrato do céu que os filósofos naturais da primeira metade do século xvii descobriram, mas nos auxilia a compreender o significado de um dos períodos mais importantes da história da ciência. Cabe ao leitor manter seus olhos atentos aos detalhes desse retrato, bem como às interpretações que dele já se fizeram.

Notas

1 Note-se que ele não utiliza o termo “nuncius”, mas refere-se ao termo italiano utilizado por Galileu em algumas ocasiões como, por exemplo, em uma carta redigida em 30 de janeiro de 1610 e endereçada a Belisario Vinta (cf. EN, 10, p. 280-1).

2 Seguramente Mourão refere-se nesse momento ao texto no qual Kepler apresenta sua avaliação sobre o livro de Galileu, intitulado Dissertatio cum nuncio sidereo.

Referências

COPÉRNICO, N. As revoluções dos orbes celestes. Tradução A. D. Gomes e G. Domingues. Introdução e notas L. Albuquerque. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 [1543].

_____. Commentariolus. Pequeno comentário de Nicolau Copérnico sobre suas próprias hipóteses acerca dos movimentos celestes. Tradução, introdução e notas R. de A. Martins. Rio de Janeiro: Coppe/Mast, 1990.

FAVARO, A. (Ed.) Edizione nazionale delle opere di Galileo Galilei. Firenze: Barbera, 1933 [1891]. 20 v. (EN)

GALILEI, G. O ensaiador. Tradução H. Barraco. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

_____. A mensagem das estrelas. Tradução, introdução e notas C. Z. Camenietzki. Revisão crítica A. da G. Kury. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins/Salamandra, 1987 [1610].

_____. Carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Tradução P. R. Mariconda. Scientiae Studia, 3, 3, p. 477516, jul./set. 2005.

_____. O mensageiro das estrelas. Tradução, introdução e notas C. Z. Camenietzki. São Paulo: Scientific American Brasil/Duetto, 2009 [1610].

_____. Ciência e fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano com a Bíblia. Organização e tradução C. A. R. do Nascimento. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

_____. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo introdutório e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610].

GALILEI, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas P. R. Mariconda. 3. ed. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2011 [1632].

INGOLI, F. Discussão a respeito da posição e do repouso da Terra contra o sistema de Copérnico. Tradução A. M. Ribeiro e L. Mariconda. Scientiae Studia, 3, 3, p. 467-76, jul./set. 2005.

LEITÃO, H. O debate cosmológico na “Aula da Esfera” do Colégio de Santo Antão. In: Leitão, H. (Org.) Sphaera mundi: a ciência na “Aula da Esfera”. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2008. p. 27-44.

_____. Estudo introdutório. In: Galilei, G. Sidereus nuncius: o mensageiro das estrelas. Tradução, estudo e notas H. Leitão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010 [1610]. p. 19-136.

MARICONDA, P. R. O alcance cosmológico e mecânico da carta de Galileu Galilei a Francesco Ingoli. Scientiae Studia, 3, 3, p. 443-65, jul./set. 2005.

_____. Introdução. O “Diálogo” e a condenação. In: Galilei, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano. Tradução, introdução e notas P. R. Mariconda. 3. ed. São Paulo: Editora 34/Associação Filosófica Scientiæ Studia, 2011 [1632]. p. 15-76.

Paulo Tadeu da Silva – Centro de Ciências Naturais e Humanas. Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo, Brasil. E-mail: [email protected]

[DR]

 

Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência / Mauro L. L. Condé

O presente livro de coletâneas sobre Ludwik Fleck foi organizado por Mauro Lúcio Leitão Condé [1] por ocasião do I Colóquio de História e Filosofia da Ciência [Ludwik Fleck] da UFMG, o qual ocorreu no ano de 2010. Nessa coletânea de sete capítulos, quatro conferências do referido Colóquio foram transformadas em capítulos.

O livro se destina a um público interessado na obra, vida e contribuição das ideias de Fleck, e de sua importante obra Gênese e desenvolvimento de um fato científico, escrito por especialistas brasileiros e estrangeiros que estão preocupados com a difusão do conhecimento desse pensador polonês, que à sua época modificou pensamentos e práticas científicas, e que ainda hoje é atual.

Da orelha do livro, o organizador destaca uma breve biografia de Ludwik Fleck e ressalta que as reflexões de caráter filosófico e sociológico de Fleck, que foram publicadas em seu livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico, de 1935, e em alguns poucos artigos, têm sido utilizadas por diversos campos de conhecimento. Finaliza resumindo o pensamento fleckiano, que é diferente do pensamento de outros teóricos, como Kuhn, pois Fleck acredita que “o conhecimento não avança por meio de rupturas e sim de modo incremental, quando ações e ideias trafegam de diferentes modos entre estilos de pensamento criados pelos diferentes coletivos de pensamento” (CONDÉ, 2012).

Na Apresentação, o organizador apresenta o livro, ressaltando a biografia de Fleck e sua contribuição para vários campos de conhecimento, destacando a ênfase na dimensão social do conhecimento, bem como nas dinâmicas de práticas em contexto, e as implicações políticas advindas de sua afirmação do caráter democrático do conhecimento.

Após a publicação da obra principal de Ludwik Fleck, Gênese e desenvolvimento de um fato científico, em português, no ano de 2010, a presente publicação é a primeira em português que analisa a obra do pensador polonês, tendo sido escrita por especialistas brasileiros e estrangeiros. Isso demonstra o grande interesse da comunidade acadêmica nacional e internacional pelo pensamento desse autor.

Visando a uma melhor divulgação e visibilidade dos textos e da competência dos autores dessa coletânea, segue-se a listagem dos sete capítulos que a compõem: Capítulo 1 – Fleck em seu tempo, Fleck em nosso tempo: Gênese e desenvolvimento de um pensamento – Ilana Löwy; Capítulo 2 – Ludwik Fleck – Sua vida e Obra – Johannes Fehr; Capítulo 3 – Mannheim, Fleck e a compreensão humana do mundo – Carlos Alvarez Maia; Capítulo 4 – Ciência e linguagem: Ludwik Fleck e Ludwig Wittgenstein – Mauro Lúcio Leitão Condé; Capítulo 5 – Fato e pensamento em Ludwik Fleck e Walter Benjamin – George Otte; Capítulo 6 – Os circuitos de Fleck e a questão da popularização da ciência – Bernardo Jefferson de Oliveira; e Capítulo 7 – Escrever a história para ver e aprender a perguntar: a indefinição e a história da medicina reprodutiva (um esboço) – Martina Schlünder.

A obra se insere no contexto da historiografia da ciência ao debater questões relativas à comunidade científica, bem como às práticas dessa comunidade, e os desdobramentos advindos dessas ideias que são veiculadas pelos pesquisadores convidados a escrever sobre a temática.

As questões levantadas por Fleck dizem respeito aos estilos de pensamento que são criados por diferentes coletivos de pensamento, pois para ele, essas mudanças são gradativas, diferindo assim do conceito de revolução de Thomas Kuhn.

A partir da leitura dessa obra, o leitor perceberá as grandes possibilidades do uso da obra de Fleck não apenas no domínio das ciências, mas também das artes, da política e gestão, entre outras áreas de conhecimento. As contribuições de Fleck se inserem na dimensão social do conhecimento com foco na dinâmica das práticas científicas em um contexto, além das implicações políticas, visto que o campo da pesquisa é permeado por questões além de científicas: econômicas, principalmente nos dias atuais.

Em suas análises, os autores utilizaram como fio condutor a biografia de Fleck e suas contribuições para a ciência, no caso, em sua especialidade primeira, a medicina. Esse esforço de escrita foi realizado após a publicação em português da obra magna de Fleck – Gênese e desenvolvimento de um fato científico em 2010, e agora o leitor brasileiro é agraciado com mais uma obra em português que realiza uma análise da obra do pensador polonês.

Percebemos, através da exposição das temáticas presentes na publicação que ora resenhamos, que mesmo na sua pluralidade de assuntos, essas temáticas trazem o fio condutor da análise e aplicação da obra de Fleck como proposta pertinente tanto no âmbito teórico quanto metodológico para os interessados no estudo do pensamento desse grande autor polonês ainda pouco explorado.

Trata-se de uma iniciativa coletiva louvável e que vai de encontro às tendências da ciência no momento atual, pautando-se pelo trabalho coletivo e com objetivo de disseminar conhecimento para um público interessado nessas questões.

Enfim, a presente obra é de interesse não apenas para historiadores, e seu conteúdo traz para o debate historiográfico atual, questões pertinentes à ciência e a todos os desdobramentos advindos das práticas científicas de seus participantes. Ressaltamos que a obra cumpriu seu papel de disseminação do pensamento fleckiano entre os leitores brasileiros e tem uma escrita clara e concisa, incluindo os capítulos que foram traduzidos.

Recomenda-se a leitura para todos aqueles que estão interessados em novas aplicações de metodologias e em avançar no debate historiográfico acerca da comunicação científica e comunidade científica.

Agradecimentos

Esta resenha é resultado da oficina na disciplina “Produção e circulação do conhecimento histórico nos periódicos científicos: análises, desafios e práticas de publicação” no 2º semestre/2012, ministrada pela Profa. Regina Horta Duarte no Programa de Pós Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Agradeço aos colegas pelos debates e revisões dos textos.

Notas

  1. Mauro Lúcio Leitão Condé é professor associado de História e Filosofia da Ciência na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Filosofia pela UFMG, Pós-Doutor pela Boston University. Coordenador do Scientia – Grupo de Teoria e História da Ciência da UFMG. Autor e organizador de livros em história e filosofia da ciência, além de autor de artigos publicados em periódicos especializados.

Letícia Alves Vieira – Universidade Federal de Minas Gerais.


CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão (org.). Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. 160 p. Resenha de: História, histórias. Brasília, v.1, n2, p.248-250, 2013. Acessar publicação original. [IF]

Biopunk: DIY Scientists Hack the Software of Life | Marcus Wohlsen

O movimento punk emergiu na década de 1970, na América do Norte e na Inglaterra, em resposta às mudanças causadas pelas guerras e pelos rearranjos geopolíticos ocorridos na época. Teve como principais adeptos jovens londrinos, de famílias tradicionalmente operárias, ou que viram-se frustrados com as políticas conduzidas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Provocou rupturas estéticas e conceituais, buscando autonomia política e social. Cunharam o termo do it yourself (DIY) para propagar a ideia do faça-vocêmesmo.

Em contraponto da estética hippie que, uma década atrás, cultuava valores espitituais, ligação com a natureza e o viver em comunidade. O punk trouxe a estética do improviso, do escuro, do sujo, como representação da sociedade que, para o movimento, desprezava as práticas e os contextos que não se adequavam ao sistema capiltalista.

Quase meio século depois, na década de 2010, o conceito de punk é revisitado. Surge o biopunk: um movimento diverso que busca possibilidades de pesquisa, produção e engajamento em processos muitas vezes restritos aos moldes da comunidade científica contemporânea, fomentados em instituições de ensino e pesquisa tradicionais ou em grandes laboratórios.

Biopunk: DIY Scientists Hack the Software of Life (em tradução livre, BioPunk: Cientistas do faça-você-mesmo raqueando o software da vida) do jornalista científico Marcus Wohlsen, publicado em 2011, traz uma abordagem lúdica da ciência, enquanto relata experiências possíveis, aplicadas em laboratórios estabelecidos em cozinhas ou garagens. O livro reforça que biopunks não precisam de estruturas perfeitas ou honrarias acadêmicas pois estão focados a equacionarem suas pesquisas.

Wohlsen revisita a ciência como atividade secular, e afirma que o DIYbio (a ciência do faça-você-mesmo) não é uma nova ciência, mas sim uma nova forma forma de fazer ciência: na maioria das vezes autodidata, baseada em processos de tentativa-erro, encontra-se sob os pilares da ciência clássica que abrange experimentação, observação e análise de resultados.

A obra faz alusão ao movimento hacker que, em meados de 1980, concebeu descobertas e criações revolucionárias, conectou pessoas e ideias a partir de um modelo descentralizado e compartilhado, proporcionado pela internet. Assim como o movimento biohacking que compartilha informações sobre biotecnologia e desenvolve pesquisas descentralizadas em plataformas que proporcionam a inteligência distribuída, como: redes sociais, redes peer-to-peer e grid computing [1].

O livro traz exemplos de biohackers que estão usando o crowdsourcing [2] no desenvolvimento de medicamentos para a cura do câncer, e reconfigurando bactérias presentes no iogurte para gerar análises de contaminação do leite. Wohlsen enfatiza que a tecnologia de manipulação do DNA está disponível, e já é utilizada por cientistas DIY em suas garagens ou cozinhas, com baixo custo, de forma descentralizada e inovadora.

Notas

1. Modelo que permite alta taxa de processamento dividindo as tarefas entre diversas máquinas.

2. Utiliza a inteligência e os conhecimentos espalhados na internet para desenvolver novas tecnologias.


WOHLSEN, Marcus. Biopunk: DIY Scientists Hack the Software of Life. Inglaterra: Penguin Group, 2011.Resenha de: BEGALLI, Maira. A História da Ciência revisitada: os cientistas do faça você mesmo. Revista Ágora. Vitória, n.15, p.210-212, 2012. Acessar publicação original [IF].

The Emergence of a Scientific Culture | Stephen Gaukroger || Nature, Empire and Nation | Jorge Cañizares-Esguerra

O objetivo da presente resenha é apresentar e discutir dois livros publicados em 2006, porém de pouca repercussão no meio acadêmico brasileiro. O primeiro é The Emergence of a Scientific Culture, do historiador britânico Stephen Gaukroger, enquanto o segundo é Nature, Empire and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra, estudioso da América hispânica colonial na chamada primeira modernidade ou early modern period. A pequena recepção das duas obras não deixa de ser estranha visto serem ambos os autores já conhecidos do público brasileiro; de Stephen Gaukroger se publicou em 2000, pouco após sua edição original em língua inglesa, uma biografia intelectual de René Descartes [2] , enquanto Cañizares-Esguerra é o autor de How to write the history of the New World, livro ao qual, se não se lhe pode dar a pecha de influente, não obstante encontrou seu caminho nas bibliografias de alguns artigos e importantes estudos [3] . Ao longo do texto, contudo, não procurarei entender os dois livros aqui estudados com relação às trajetórias acadêmicas dos seus autores, e sim os lerei a partir das concepções – e, por que não, projetos – acerca da história da ciência que ambos veiculam. Apresentarei, portanto, primeiro o livro de Gaukroger, apontando algumas das problemáticas em que se envolve e algumas questões que podem ser tratadas nele, para, num segundo momento, discutir a obra de Cañizares-Esguerra e algumas reflexões que podem ser feitas a partir dele, procurando pontos de contato e distanciamentos entre os dois.

The Emergence of a Scientific Culture faz parte de um projeto maior acalentado por Stephen Gaukroger visando retraçar a “transformação dos valores cognitivos e intelectuais na era moderna”, do qual este é apenas seu primeiro livro. Com relação à história da ciência, sua proposta é perceber como a ciência passou a moldar os valores sociais, culturais, políticos e/ou morais da sociedade contemporânea, constituindo-se, ao menos em sua auto- imagem, como parte intrínseca da modernidade. Com isso, procura atender à condição que coloca de escrever uma “história conceitual e cultural da emergência de uma cultura científica no Ocidente” e, embora não problematize explicitamente o que considera ser uma “cultura científica”, ela não obstante está presente no modo como redescreve seu objeto de estudos. Desse modo,

Este estudo trata a ciência no período moderno como um tipo particular de prática cognitiva e como uma espécie particular de produto cultural, e meu objetivo é mostrar que se explorarmos as conexões entre esses dois, nós podemos aprender algo acerca das preocupações e dos valores do pensamento moderno que não poderíamos aprender de ambos separadamente (GAUKROGER, 2006, p.3) [4].

Ao perceber a ciência imbricada na cultura de sua época, o autor se coloca a questão de explicar a singularidade da Revolução Científica ocidental, contrapondo-se a outras culturas e civilizações que tiveram culturas científicas avançadas, mas não conseguiram imprimir a elas o mesmo caráter de expansão e inovação constantes tampouco conseguiram remodelar suas culturas a partir da ciência. Por isso, sua caracterização da ciência, percebe o autor, é ao mesmo tempo uma confirmação e uma refutação da conceituação oferecida por Thomas Kuhn. Seu objeto quebra com a lógica kuhniana porque apesar de se articular em torno às sucessivas mudanças de paradigmas, sempre influenciadas pela sociedade, também advoga a ruptura entre os desenvolvimentos científicos ocidentais e os dos demais lugares do mundo. Sua problemática, logo, escapa da mera escrita da história da ciência e entra no domínio das discussões acerca da modernidade, metamorfoseando seu objeto no da percepção da inter-relação entre um contínuo desenvolvimento da ciência e rupturas estruturais mais profundas, as quais explicam a singularidade da ciência ocidental. Não deixa, portanto, de se incluir no mesmo programa já perseguido pelo historiador italiano Paolo Rossi, em especial em seu Naufrágios sem espectador [5], livro que também procura correlacionar – embora sem determinar um e outro de forma causal – o desenvolvimento da ciência e o de certos aspectos da modernidade. Da mesma forma, também a obra de Frances Yates, em especial os volumes sobre Giordano Bruno e sobre o movimento rosacruz, [6] são referencias para a compreensão do projeto de Gaukroger, embora se deva destacar com relação a ambos os autores tanto a atualização dos debates nos quais se inserem por este último como também o fôlego de seu projeto, que afeta o próprio estatuto da história da ciência por dedicar igual atenção às doutrinas científicas elaboradas por suas personagens e à condição social do filósofo natural – muito embora se possa questionar se a delimitação temporal de seu livro, terminando no final do século XVII, dá conta de explicar esses desenvolvimentos decisivos ou se se trata apenas de um prelúdio para uma abordagem mais direta dessas questões [7].

O livro, dividido em cinco partes, começa sua narrativa propriamente dita em sua segunda seção, a qual trata da própria colocação em cena da filosofia natural pelo encontro da tradição cristã com a filosofia aristotélica. Nesse sentido, seu segundo capítulo descreve a solução agostiniana para o problema da interpretação do mundo na esteira do fim da Antiguidade e o desafio que representou a essa solução a introdução do aristotelismo no Ocidente. O terceiro capítulo trata do desafio à nova “amálgama” aristotélica representada pelo neoplatonismo renascentista e, por fim, o quarto capítulo aborda a transformação interior à própria filosofia natural no que toca a seus critérios de validade. Se antes a leitura do mundo tentava captar o significado religioso do que nele estava presente, as transformações na leitura das Escrituras, derivadas de desenvolvimentos na filologia, na história e no direito implicaram que a própria filosofia natural sofreria mudanças. Essas mudanças, aliadas às descobertas do Novo Mundo, abrem espaço para a inserção da experiência e da observação direta nos domínios da ciência, fazendo-a deixar de ser apenas a dedução de princípios primeiros a partir da realidade sensível. Percebe-se, nessa segunda parte de seu livro, a preocupação do autor de relacionar as transformações da ciência a mudanças maiores que acontecem no âmbito da cultura, o que lhe permite sustentar seu argumento mais recorrente, o de que ao invés de uma autonomia com relação ao mundo religioso, a ciência nascente se modela e se pensa através da própria religião.

É tendo esses problemas em vista que se articula a terceira seção do livro. Os capítulos cinco, seis e sete do livro são seus capítulos centrais porque são onde mais claramente se apresenta sua proposta de perceber a ciência como parte de uma cultura mais ampla. Dessa forma, os capítulos questionam, respectivamente, a prática da filosofia natural, seu praticante e o lugar que ele ocupa na sociedade. Quanto à primeira, o autor descreve o movimento da filosofia natural de se afirmar a partir de sua relação com a verdade para sua relação com a utilidade; quanto à segunda, demonstra como são transferidas as características do filósofo moral para o filósofo natural, isto é, para aquele que virá a ser o cientista, do qual se espera agora comportamento condizente com sua ocupação. Esse comportamento, que lhe faz ocupar o papel de sábio, é modelado pelas virtudes morais e religiosas. Por fim, quanto ao lugar do filósofo natural, ele problematiza a afirmação de que as universidades eram o ambiente mais propício a estes, reconstruindo a partir, sobretudo, do exemplo de Galileu Galilei a importância do mecenato aristocrático com relação à prática científica. Concernentes à epistemologia científica, as transformações estudadas implicam, primeiro, que a preocupação com a verdade passa a ser uma preocupação com a objetividade, ou seja, da defesa de modelos de conhecimento se passa à defesa (e ao ataque) dos procedimentos científicos; em segundo lugar, que o modelo medieval do magister de um colégio de artes universitário, o qual pensava a si mesmo livre de dogmas, podendo discutir uma mesma questão de diversas maneiras, é colocado de lado em favor de um intelectual preocupado em oferecer conhecimento útil à sociedade ou, em termos da primeira modernidade, à coroa. A ciência, portanto, estava afastada de um ideal atemporal de verdade e inserida em sua época.

A quarta parte, que ocupa a maior parte do livro, e a quinta problematizam os desenvolvimentos internos à ciência. De um lado, as relações entre os diversos modelos de explicação da natureza disponíveis no século XVII – a história natural, o mecanicismo e, por fim, a aplicação prática da matemática ao estudo da natureza –, deixando em aberto a disputa em torno à compreensão dominante do mundo. Essa inconclusão com que termina o livro – embora dependa de seu caráter de ser parte de um projeto maior – visa ressaltar a inexistência de uma teleologia guiando o desenvolvimento científico, mostrando que não existia (ainda) um ordenamento consensual de suas disciplinas. Ao mesmo tempo, mostra como todos os modelos explicativos visavam apoiar-se na religião ou em alguma concepção de conhecimento revelado para assegurarem sua posição. A quinta e última parte é, por sua vez, um breve excurso sobre as tentativas de unificar a ciência e o conhecimento no século XVII, questão candente e que também é deixada em aberto.

Mesmo que se possa pensar que por vezes Stephen Gaukroger esteja demasiadamente preso a discussões e problematizações epistemológicas, uma vez que discussões acerca de doutrinas científicas ocupam a maior parte do volume, seu livro é bem-sucedido em re- situar a emergência da ciência ou, como chama, de uma cultura científica na história ocidental; também é importante por estar atento às rupturas estruturais com as quais as continuidades culturais, num contexto amplo e de grandes transformações, se relacionam. É a partir deste ponto que se pode problematizar o livro de Jorge Cañizares-Esguerra.

O livro do historiador americano compila artigos escritos num intervalo de mais de dez anos que tocam no tema da história da ciência. Seu principal objetivo é discutir as proposições que afirmam o atraso cultural e científico da Península Ibérica e de seus impérios coloniais. Segundo o autor, o desprezo da história da ciência – e aqui se pode incluir também Gaukroger, pois embora ele afirme que seu projeto partiu de algumas leituras e comparações com o mundo ibérico, ele só o trate marginalmente em seu livro – é derivado de uma auto- narrativa do Norte da Europa com relação à Revolução Científica, que percebe no Sul da Europa apenas o atraso e que, por conseguinte, reafirma apenas as ciências que a teriam encabeçado – matemática, física, astronomia –, deixando de lado os desenvolvimentos, resultado dos impérios coloniais, que os reinos da Península Ibérica fizeram com relação à cartografia, à metalurgia, à engenharia, entre outros conhecimentos, agrupados normalmente como conhecimentos técnicos.

Dessa preocupação resulta também o seu segundo problema de pesquisa. Percebendo que os reinos ibéricos não se opunham ao conhecimento científico – embora tivessem políticas que não combinam com a percepção que hoje temos de ciência, como é o tema de seu primeiro capítulo, o qual aborda a figura do cavaleiro-cientista –, ele passa a demonstrar como esse conhecimento era ressignificado pelos sujeitos coloniais, enfatizando como as elites crioulas se apropriavam do conhecimento científico para defenderem seus privilégios e imporem uma idéia de América frente às metrópoles coloniais. Tendo isso em vista, ele enfatiza os modos pelos quais essas elites crioulas percebiam o mundo, modos os quais, em sua maior parte, enquadram-se numa concepção barroca de ciência e sociedade. Os “cientistas” crioulos participavam e reafirmavam a existência de uma coletividade social, participando de seus rituais e celebrações e, principalmente, eles também procuravam defender sua posição.

Assentado nas doutrinas neoplatônicas e herméticas, o clero crioulo constantemente buscava na natureza assinaturas escondidas e subliminares com significado patriótico. Para eles, o corpo humano, a Terra, e o cosmo eram todos “teatros” barrocos (nos quais os objetos eram reduzidos a uma linguagem de imagens) com analogias micro e macroscópicas inter-relacionadas. Todos os objetos tinham significados polissêmicos e as habilidades exegéticas do clero lhes ajudavam a descobrir sua importância subliminar, revelando um cosmos pleno de desígnios providenciais que favoreciam as colônias. (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006, p.50) [8].

E, principalmente, no capítulo seguinte, “New World, New Stars”, onde procura demonstrar a gênese do conhecimento racial nas tipologias corporais formuladas a partir do Novo Mundo. Essas tipologias – tentativas de lidar e simplificar a heterogênea realidade americana –, criadas sobretudo pelos crioulos, procuravam defender, de um lado, a primazia da América e, de outro lado, a subserviência dos indígenas a esses mesmos crioulos.

É com relação a este segundo propósito de seu livro que Jorge Cañizares-Esguerra faz suas afirmações mais contundentes e, também, controversas. Embora não se possa rejeitar sua argumentação, pode-se questionar, por exemplo, sua percepção muitas vezes simplificada dos elementos sociais presentes na América hispânica, que percebe os mesmos crioulos, peninsulares, ameríndios e negros por toda a extensão de seu território. Um segundo elemento que pode ser problematizado é a ênfase na reapropriação pelas elites coloniais do conhecimento ibérico visando à construção de uma identidade própria – o revisionismo do autor acerca das posições normalmente aceitas da história ocidental está presente também nos últimos capítulos do livro, onde tenta demonstrar a primazia pelos pintores mexicanos da pintura de paisagens (capítulo sete) e também a origem mexicana das preocupações ecológicas de Alexander von Humboldt (capítulo seis). O revisionismo, sempre bem-vindo, não é, contudo, problemático por si só, pois a argumentação de Cañizares-Esguerra é sólida e sua discussão e revisão bibliográficas bastante bem-feitas. O problema específico que pode trazer sua obra é na consideração das rupturas existentes entre um momento onde essa ciência era formulada – a primeira modernidade trabalha por Stephen Gaukroger – e o momento que lhe é o referencial para contrapor sua visão, a Revolução Científica que tomou forma em contexto e época diferentes. Ao tratar das causas pelas quais o conhecimento racial ibero-americano não deu origem ao racismo oitocentista europeu, o autor refere apenas a motivos secundários, tais como a rejeição da tradição hipocrática-galênica de medicina ou o rechaço da filosofia aristotélica. Dessa forma, Cañizares-Esguerra, ao não conseguir dar conta das transformações estruturais pelas quais passou o conhecimento científico europeu – objeto do livro de Gaukroger – e no qual, se seu argumento pretende adquirir toda a sua importância epistemológica, também o conhecimento ibérico estava inserido, acaba por reiterar a visão que pretende questionar, pois deixa intocado o construto conceitual “Revolução Científica”. Da mesma forma, o principal mérito de sua argumentação – demonstrar que, mesmo de maneiras diferentes, espanhóis peninsulares e americanos participavam do mesmo contexto intelectual – pode ser elemento a jogar contra o autor, uma vez que para sustentar seu argumento ele frequentemente subsume a identidade dessas elites crioulas no orgulho que, frisa ele, sentiam frente à incompreensão de sua realidade por aqueles que tinham a Europa como base de onde partia seu olhar. Pensando nos debates que aconteciam na Espanha bourbônica, pode-se pensar se Cañizares-Esguerra, em seu afã de desestabilizar concepções tradicionais acerca da história iberoamericana não acaba por aceitar demasiadamente fácil a imagem que essas elites crioulas fazem de si mesmas; problema candente ao se considerar as guerras de independência que se avizinham do recorte temporal que escolhe para seus estudos.

Apesar dessas críticas, a contribuição de Cañizares-Esguerra, historiador que procura sempre novas formas de abordar velhos problemas [9], é uma importante adição a uma revisão substantiva da história da ciência. Junto com Gaukroger, ambos os autores fornecem uma reestruturação importante e significativa de seu objeto, a qual certamente servirá de base para historiadores futuros.

Notas

1. Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]

2. GAUKROGER, Stephen. Descartes – Uma biografia intelectual. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. Publicado originalmente em 1997.

3. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. How to write the history of the New World. Stanford: Stanford University Press, 2001; refiro-me, por exemplo, a Esquecidos e Renascidos, de Íris Kantor, livro seminal para o estudo recente da historiografia luso-brasileira setecentista, assim como seu estudo em Júnia FERREIRA FURTADO. Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas, África. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG, 2008.

4. “The study treats science in the modern period as a particular kind of cognitive practice, and as a particular kind of cultural product, and my aim is to show that if we explore the connections between these two, we can learn something about hte concerns and values of modern thought that we could not learn from either of them separately” (GAUKROGER, 2006: 3; todas as traduções são do autor).

5. ROSSI, Paolo. Naufrágios sem espectador. São Paulo: UNESP, 2000; o original é de 1995.

6. YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: Cultrix, 1995; The Rosacrucian Enlightenment. Nova York: Routledge, 2004; sendo os originais, respectivamente, de 1964 e 1972.

7. O que não significa que o autor reifique as diferenças através de um estudo estrutural estanque, pelo contrário. É significativa, nesse sentido, sua crítica ao que chama de “abordagem weberiana” da história da ciência, a qual, segundo ele, ao ficar apenas no âmbito da contraposição entre epistemologias de diferentes civilizações, perde de vista “o valor das dimensões extra de análises, e logo se torna evidente que precisamos ir além do que acabam sendo distinções formais oferecidas por este tipo de abordagem” (GAUKROGER, 2006: 35). Sua abordagem, dessa forma, insere-se em debates recentes acerca do estudo da história política e da história dos discursos; em especial, parece reiterar proposição de Yves-Charles Zarka, em contraposição a Quentin Skinner, para quem a necessidade de relacionar os sujeitos a seus contextos não deve deixar de lado a discussão das idéias que – no interior da história da filosofia – eles esposam. No caso de Gaukroger, a dupla ênfase nas doutrinas científicas e nas condições sociais implica que a história da ciência não pode se resolver facilmente aceitando apenas uma dessas opções e não outra. ZARKA, Yves-Charles. “Que nous importe l’histoire de la philosophie?” in ZARKA, Yves-Charles (dir.). Comment écrire l’histoire de la philosophie? Paris: PUF, 1999, pp. 19-32.

8. “Steeped in Neoplatonic and hermetic doctrines, the Creole clergy constantly searching in nature for underlying hidden signatures with patriotic significance. For them, the human body, the Earth, and the cosmos were all baroque “theaters” (in that objects were reduced to a language of images) interlocked by micro- and macroscopic analogies. All objects held polysemic meanings, and the exegetical skills of the clergy helped discover their underlying import, revealing a cosmos suffused with providential designs that favored the colonies” (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2006: 50).

9. Refiro-me, por exemplo, a Puritan Conquistadors, também do autor, o qual procura demonstrar as semelhanças entre o discurso puritano de conversão dos indígenas e expansão britânica nas América com a “demonologia” indígena veiculada pelos espanhóis. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Puritan Conquistadors – Iberianizing the Atlantic, 1550-1700. Stanford: Stanford University Press, 2006.

Pedro Telles da Silveira – Aluno do segundo ano do curso de mestrado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, cuja pesquisa é feita sob orientação do Prof. Dr. Fernando Felizardo Nicolazzi e que conta com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected]


GAUKROGER, Stephen. The Emergence of a Scientific Culture – Science and the Shaping of Modernity, 1210-1685. Oxford: Clarendom Press/New York: Oxford University Press, 2006. CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Nature, Empire and Nation – Explorations of the History of Science in the Iberian World. Stanford: Stanford University Press, 2006. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Reescrevendo a história da ciência: The Emergence of a Scientific Culture, de Stephen Gaukroger, e Nature, Empire, and Nation, de Jorge Cañizares-Esguerra. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.240-247, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]

A Biologia militante – DUARTE (VH)

DUARTE, Regina Horta. A Biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil – 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, 219 p. Resenha de: PEREIRA, Airton dos Reis; OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco de. “A  voz mais alta da Biologia”: Diálogos entre história política e história da ciência. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

A Biologia Militante, de Regina Horta Duarte, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, é, certamente, uma grande contribuição aos muitos cursos de graduação e pós-graduação em História e permite-nos não apenas aprender sobre o tema analisado, mas compreender os procedimentos teórico-metodológicos do fazer histórico.

A partir da leitura dessa obra temos a certeza de que, além de pesquisas em arquivos, a escrita da história é fruto de escolhas afetivas, de constantes perguntas, da busca por conhecimentos transformadores e do desejo de fazer História como uma aventura intelectual que ressignifica nossas questões referentes à relação presente-passado por meio da construção de narrativas plausíveis.

A Biologia Militante é uma escrita leve, sedutora, clara e traz excelentes análises sobre a história do Brasil no período varguista. O fio condutor adotado foi a história do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1926 e 1945, privilegiando as articulações entre prá-ticas cientificas e vida política, o surgimento das especializações, no caso especifico da ciência biológica, e as experiências de divulgação científica.

O livro nos convida a entrar em contato com os conhecimentos e as práticas de três cientistas do Museu Nacional: Edgar Roquette-Pinto (18841954), antropólogo; Alberto Sampaio (1881-1946), fitobotânico; e Cândido de Mello Leitão (1886-1948), aracnólogo. Ambos haviam passado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro quando esta tinha passado por reformas, com a introdução de novas disciplinas e ênfase no ensino prático. As novas tendências européias de valorização do laboratório e do conhecimento biológico, sob influência da teoria de Pasteur, estiveram presentes na faculdade, nesse período. Esses homens fizeram de suas pesquisas ferramentas para a construção de uma identidade nacional e por meio da noção de saber criativo possuíam a esperança de que este tipo de conhecimento transformaria a sociedade brasileira

Roquete-Pinto foi professor do Museu Nacional desde 1906, sóciofundador da Academia Brasileira de Ciências (ABC), membro fundador da Associação Brasileira de Educação (ABE) e participou ativamente da organização da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro da qual foi seu secretáriogeral. Mello Leitão iniciou sua carreira como zoólogo, em 1913, na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, do Rio Janeiro e no ano de 1916 trabalhou com Roquete-Pinto na Escola Normal do Rio de Janeiro. Sampaio foi contratado como professor de Botânica do Museu Nacional, em 1912, era membro da ABE e participou ativamente das atividades da Rádio Sociedade. Roquete-Pinto e Sampaio, embora que em momentos distintos, participaram de viagens feitas por Marechal Rondon no interior do Brasil.

Além de serem grandes amigos, tais cientistas articulavam, entre si, não só a produção e difusão de conhecimentos, mas o jogo de reconhecimento pessoal e intelectual e, por outro lado, partilhavam grandes expectativas de transformação do Brasil numa grande nação, num contexto de jogo político intenso do governo provisório de Getúlio Vargas. A perspectiva era a construção de uma sociedade sem conflitos, harmônica, corporativa e regida por um Estado forte e centralizado. Estudos como os de Mello Leitão – num processo de negação ao darwinismo -focalizavam a vida social dos animais negando a competição entre os seres vivos, mas a obediência, harmonia, bondade, solidariedade, a hierarquia. Não obstante, as perspectivas de Vargas encontraram eco nas concepções defendidas pelos cientistas do Museu Nacional. Apesar das nuances do jogo político da época, esses cientistas foram atores em sintonia com as perspectivas do governo provisório de Vargas em “curar o corpo e aperfeiçoar o espírito” de um povo desvalido e empobrecido, vítima de elites egoístas.

O livro é composto de três capítulos. No primeiro, “A voz mais alta da biologia”, a autora argumenta que, desde o final do século XIX, a idéia da natureza como patrimônio nacional era um tema importante, e acreditava-se que o Brasil deveria se afinar ao debate internacional para amoldar-se aos padrões de civilidade. A hipótese central deste capítulo era de que, entre 18951930, a biologia se afirmou como saber específico e diferenciado, ganhando importância política e visibilidadede “mestra da vida”. Duarte estabelece sua argumentação a partir de quatro temas: a eugenia nas primeiras décadas do século XX,a biomedicina,a entomologia (médica e agrária) e o que ela vai chamar de a experiência de campo (em que poderíamos denominar de pesquisas para obter a noção da relação teoria e prática dos estudos).

A autora mostra como a biologia se constituiu como campo específico do conhecimento e como este se firmou como um saber decisivo na resolução de problemas políticos, principalmente a partir da emergência da população como objeto de preocupação nacional. Neste capítulo, Duarte trata ainda da participação de Roquette-Pinto, Mello Leitão e Sampaio, autoridades científicas do Museu Nacional, na elaboração de um anteprojeto do Código de Caça e Pesca, solicitado pelo Ministério da Educação e Saúde, em 1933, cujo decreto foi assinado pelo Presidente da República, no ano seguinte. O Código de Caça e Pesca seria um instrumento importante na regularização e preservação do patrimônio flora-faunístico. Naquela época era notória a extinção de espécies animais cujas peles eram exportadas para compor a moda da “alta sociedade”. Os cientistas advogaram a necessidade do Governo Federal regular os “apetites” das elites em favor dos interesses de todos. Duarte destaca os êxitos e as frustrações dos cientistas no tocante ao texto final da Lei.

No segundo capítulo, A miniatura da Pátria, a historiadora inicia discorrendo sobre um churrasco realizado na Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, por contingentes das forças armadas gaúchas que visitavam a capital do Brasil. Edgar Roquette-Pinto, diretor do museu, convidou os soldados e os acomodou no Museu Nacional para assistir vídeos educativos sobre a natureza fauna-florística brasileira. Tal evento ganhou expressão para compreender como os biólogos articulavam uma série de meios comunicativos para propagar a idéia de preservação da natureza do país. Rádio, cinema, jornais e a Revista Nacional de Educação foram os principais divulgadores dessa idéia e o Museu Nacional abriu as portas para aulas práticas com crianças e jovens, e para visitas à sala de exposições de antropologia. Divulgar o conhecimento natural de todas as formas possíveis, ensinar às massas a ler e a escrever eram metas dos biólogos do museu. Ao final deste capítulo a autora se debruça sobre a documentação da Coleção Brasiliana1 e analisa as idéias dos três cientistas publicadas em diversos livros que produziram e cujo tema central versava sobre a biologia no Brasil. Entretanto, sendo o período histórico em questão, um momento na qual circulava no país as concepções da Escola Nova, seria muito mais enriquecedor se a autora tivesse tecido relações com essa postura pedagógica. Acreditarmos que essas análises seriam um elemento a mais para compreender a propagação das políticas de divulgação do conhecimento científico na era Vargas.

No terceiro capítulo, Como se fazia um biólogo, a autora nos apresenta a criação da Sociedade dos Amigos do Museu Nacional. Esse grupo surgiu em detrimento do afastamento dos três cientistas do museu e nos conduz a compreender a trajetória de Cândido de Mello Leitão ao analisar esmeradamente as obras escritas por ele e como sua produção foi significativa para a Biologia tornando-o reconhecido nacional e internacionalmente como um especialista em aracnídeos. Duarte não deixa de mencionar que o Museu Nacional perdeu força no fim da era Vargas como instrumento constituidor de opinião pública e que o discurso biológico, da mesma forma, se enfraqueceu como símbolo da identidade brasileira. Não obstante, a Biologia despontou como ciência importante no cenário brasileiro e ganhou espaço significativo nas universidades do país.

A leitura de A Biologia Militante é fundamental por ser um exemplo de trabalho bem escrito, fundamentado teoricamente e com fontes utilizadas de forma burilada. Deve ser lido para entender que o exercício interdisciplinar, lançado mão desde a Escola dos Annales, é extremamente significativo para as pesquisas históricas. É possível ainda conhecer possibilidades do exercício prosopográfico e perceber que muitos temas podem ser vistos como edificadores da nacionalidade brasileira.

O texto nos mostra ainda que a melhor referência teórica a ser aplicada na escrita depende dos documentos que escolhemos para cotejar as informações; é assim que Michel Foucault emerge diversas vezes na obra, principalmente quando fica notória a noção de que os sujeitos se constituem nas redes relacionais em que atuam, como no caso dos biólogos analisados. A obra coloca o leitor na perspectiva da História como conhecimento criador, realizado nas condições de possibilidades de cada pesquisa. Ao analisar racionalmente o papel do fazer científico na instituição das sociedades ao longo dos tempos, a autora busca se afastar do que Marc Bloch chamou do “satânico inimigo” da História: a mania de julgar.

A Biologia Militante, além de ser um excelente diálogo entre História e Biologia, pode permitir primorosos debates sobre questões sócio-ambientais, no Brasil, além de servir de alerta à sociedade brasileira para não aplainar o novo Código Florestal, aprovado em maio de 2011, sem indignações.

Mais do que um discurso histórico construído na interface da história política e da história da ciência, o livro de Regina Horta Duarte ajuda a compreender as articulações e os arranjos políticos que certos intelectuais fazem em seu tempo, no campo de produção e no jogo de relações com os poderes instituídos. Podemos, com certeza, afirmar: é uma excelente contribuição ao campo da história intelectual.

Programa de Pós-Graduação em História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas.Universidade Federal de Pernambuco. Campus Recife.Avenida Acadêmico Hélio Ramos S/N10º andar CFCH. Cidade Universitária -Recife- PE- Brasil. CEP:50670-901.

1 A Coleção Brasiliana foi inaugurada em 1931 por Fernando Azevedo e o projeto central era de “descobrir o Brasil aos brasileiros”.

Airton dos Reis Pereira – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professor da Universidadedo Estado do Pará (UEPA) e membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos Sociais, EducaçãoeCidadania na Amazônia/UEPA/CNPq. [email protected].

Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Integrante do GEHISC/UFRPE/CNPq. [email protected].

Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto – LIMA (RIHGB)

LIMA, Nísia Trindade; SÁ, Dominichi Miranda de (Orgs). Antropologia Brasiliana: Ciência e Educação na obra de Edgard Roquette-Pinto.Nísia Belo Horizonte, UFMG e Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. Resenha de RIOS: José Arthur. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun. 2010.R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 171 (447) p.291-298, abr./jun 2010.

O título do livro deriva da expressão cunhada por Edgard Roquette-Pinto, tema principal dessa coletânea de ensaios. As organizadoras, téc­nicas e professoras da Casa de Oswaldo Cruz, uma, socióloga (Nísia), outra, historiadora (Dominichi), ambas se completam na interpretação e na análise documental dos dados e informações colhidos em obras, cor­respondências e arquivos, sobre essa curiosa figura de sábio e pioneiro.

Robert Wegner assina erudito Prefácio completado por uma Apre­sentação das organizadoras que associam a trajetória intelectual de Ro­quette-Pinto à própria história da República na primeira metade do século XX e, mais que isso, à historia das ideias e do pensamento científico naquelas décadas.

Valiosa a transcrição de uma palestra de Roquette sobre “Ciência e Cientistas do Brasil”, proferida em 1939, onde nos dá, com a autoridade de protagonista, o estado da questão, uma visão panorâmica dos avan­ços e atrasos das ciências físico-naturais no Brasil da época. Duas ideias transparecem (Dominichi) nesse texto: – a influência do Positivismo e a preocupação dominante na legitimação da ciência, sobretudo de uma “ciência pura” face a uma “ciência aplicada”.

Na mesma perspectiva interpretativa, Alberto Venâncio Filho analisa a obra de Roquette-Pinto como expressão de humanismo, assinalando a importância da formação positivista, bebida desde tempos escolares, na gênese do pensamento do autor de Rondônia; bem como sua tentativa de conciliar ciência e técnica com as melhores fontes do humanismo do século XIX, sobretudo com a obra de Goethe, de declarada influência na obra de Roquette.

Central, no livro, o ensaio de Nísia Trindade Lima situando o cien­tista na sua geração, no papel renovador e contestatário que esta desem­penhou face à sociedade patriarcal e à cultura que produziu, baseada na inteligentsia bacharelesca, na aversão das elites ao trabalho manual e na retórica romântica.  Nessa perspectiva – do amplo processo de desagregação do regime escravista e da sociedade patriarcal, e a demorada extinção de suas mar­cas – as autoras situam a obra de Roquette. Seria esta mais um capítulo na busca de identidade do povo brasileiro. Escreve em momento de tran­sição social e cultural em que antigas categorias explicativas como “raça” e “mestiçagem” vão cedendo lugar a traços culturais persistentes como analfabetismo, doença e atraso. Tudo isso se prende à ascendência das camadas médias urbanas na sociedade brasileira, ansiosas por abraçar, na nova República, uma ideologia justificadora. Nesse cenário avulta o papel inspirador – e formatizador – do que João Cruz Costa chamou “po­sitivismo difuso”, de remota, mas certa raiz na doutrina de Comte.  Esse Positivismo sui generis é tema do ensaio de Luiz Otávio Fer­reira (“Ethos positivista e a institucionalização das ciências no Brazil”) onde salienta a função do arcabouço institucional então criado, institutos, centros de pesquisas e laboratórios, sem o que as ideias renovadoras dessa nova geração careceriam de uma caixa de ressonância. Como demonstra o autor, mediatizaram essas instituições as inovações intelectuais trazidas pelos cientistas, articulando sua atividade com um sistema de ensino su­perior, criando campo de prova para as primeiras reformas universitárias. Sob esse aspecto, a obra de Fernando de Azevedo, companheiro de gera­ção de Roquette-Pinto, é bastante característica dessas vocações. Nesses avanços científicos, – caruncho no tronco – brota o cientificismo, no qual capitulam os melhores espíritos – Alberto Torres, Oliveira Vianna, Eucli­des, que pagaram preço alto à pseudociência dos tempos.

Essa institucionalização se prende a amplo projeto nacional. É o grande tema de Rondônia, como evidenciam, em outro ensaio, a mãos juntas, Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coim­bra Junior. A obra de Roquette resultou de um projeto caro à nova Re­pública – a expedição Rondon e a implantação das linhas telegráficas no extremo Oeste. Graças a Rondon, a ciência não se legitimava apenas pe­las elocubrações e descobertas de gabinete, mas por propiciar a extensão do Estado às regiões inóspitas, aos “sertões” do Brasil; e a incorporação das populações indígenas à proteção paternalista do Governo. O “sertão” é assim anexado à cultura urbana e o sertanejo – o homem forte, mas abandonado, de Euclides, – é agora associado à obra coletiva da criação nacional. Em Rondônia, como os autores vêm a obra mestra de Roquette, ocorre a transição da antropologia física de Broca, Bertillon e outros – a antropologia das medidas antropométricas – para uma redefinição do “primitivo” que só poderá se processar em termos culturais.

Ricardo Ventura Santos aborda o mesmo tema sob o ângulo da mes­tiçagem, objeto de acalorados, às vezes transviados, debates na sociologia e na medicina da época e que levaram Roquette, admirador de Euclides, a separar-se, nesse ponto, do cientificismo do autor dos Sertões. Na discus­são o autor exalta, com acerto, a importância da componente nacionalista que vai dominar a polêmica nos anos 20 e 30.

É justamente o momento em que o debate passa do domínio cientifico – ou cientificista – para o campo político e avulta, no cenário internacional do após Primeira Guerra, – cortado de redefinições de fronteiras e movi­mentação de povos, – o problema das migrações. É este objeto do denso, pesquisado e fundamentado ensaio de Giralda Seyferth (“Roquette-Pinto e o debate sobre raça e imigração no Brasil”). Demonstra os obstáculos ideológicos que atravancavam o caminho para uma solução racional e despreconceituosa do problema. Ditadas por uma teorização equivocada e lacunosa, surgem, no cenário brasileiro, propostas que, hoje, nos fazem rir, assinadas por figuras respeitáveis, alguns médicos, de renome.

Típica é a reação de muitos à imigração japonesa, tida como ameaça à nossa pureza racial, a ponto de merecer a denúncia de “perigo amarelo”. Assim também a repulsa à mera possibilidade de uma imigração chinesa acalentada por alguns líderes desde o tempo do Império, como substitu­ta no latifúndio cafeeiro, à escravidão africana – e até considerada nos anos 30 “repugnante”. Obedece aos mesmos preconceitos a sugestão de adoção do sistema de quotas, cópia do modelo americano. Essas ideias, como verifica a autora, resultaram em políticas, ditaram critérios restriti­vos quando não proibitivos, contra correntes imigratórias que nos teriam trazido, como algumas de fato trouxeram, progresso social, tecnologia e prosperidade. Eram todas sustentadas em nome da pureza da raça, concei­to de problemática definição.

A confusão, muitas vezes ciente e consciente, entre raça, etnia, povo e nacionalidade, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial e durante o Estado Novo, resultou de fato em políticas anti-imigrantistas. É o tema de Jair de Souza Ramos (“Como classificar os indesejáveis?”). O autor, no entanto, usa o termo “racialização”, “medidas racialistas”, quando na verdade está falando de racismo, tout court, agravado no período da Se­gunda Guerra, pela entrada do Brasil na luta contra o Eixo e que atingiu, por motivações diversas, os descendentes de italianos, alemães e japone­ses no Sul do Brasil, e também judeus que tentavam fugir à perseguição nazista – como fartamente documentado. Roquette-Pinto prestou-se, no caso, a interpretações nacionalistas, quando afirmou que o brasileiro não precisava de substituto – nivelando-se a outro contemporâneo que ficou célebre pela afirmação “o brasileiro é o melhor imigrante”.

A preocupação da Eugenia, generalizada na época e importada dos círculos científicos europeus e norte-americanos, constituiu tropeço no pensamento de Roquette, como demonstra Vanderlei Sebastião de Souza (“As leis da eugenia na antropologia de Roquette-Pinto”). A Eugenia an­dou muito associada às teorias racistas, tornou-se, na Alemanha nazista, instrumento e desculpa para a eliminação de “indesejáveis” – leiam-se minorias, os chamados “quistos” – termo usado no Brasil para designar as colônias alemãs no Sul – por serem, segundo os autores dessas teorias, inassimiláveis, irredutíveis ao melting pot brasileiro. Assim também fo­ram considerados os “amarelos”, os orientais de várias procedências, cuja assimilação e docilidade à miscigenação tornaram-se hoje evidentes, a olho nu, para quem transita nas ruas de São Paulo, onde se misturam gos­tosamente com os descendentes dos bandeirantes, arianos e não – arianos, caros a Oliveira Vianna.

Os últimos ensaios do livro dedicam-se à descrição do enorme papel desempenhado pelo autor de Rondônia na criação da nossa radiofonia educativa. E, paradoxalmente, na elaboração das normas de censura a esse novo meio de comunicação. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Mas­sarani e Jaime Aranha descrevem a importância de Roquette na nossa primeira divulgação científica, enquanto Regina Horta Duarte compõe um retrato do Roquette viajante e Sheila Schwartzman realça sua contri­buição ao uso educativo do cinema.

Enriquece o livro farto material fotográfico e cartográfico e a trans­crição de textos de Roquette-Pinto, alguns inéditos. É de lamentar a falta de um índice onomástico, indispensável face à riqueza das fontes consul­tadas e citadas.  Nenhum praticante das ciências humanas está isento da contamina­ção com teorias espúrias, ranço de seu pensamento cientificismo, seja o darwinismo de seu pensamento social, o positivismo, o marxismo de pacotilha ou a psicanálise de bolso. O livro, de titulo elusivo, mas de lei­tura essencial, é indispensável para uma visão dos caminhos e descami­nhos da antropologia brasileira – ainda que não brasiliana – nas primeiras décadas do século passado; e mais, para uma compreensão dos problemas epistemológicos e metodológicos que enfrentou na transição, ou acomo­dação, entre uma ciência biológica e uma ciência da cultura. Nesse sentido, a obra de Roquette-Pinto, como nos demonstram os ensaios coligidos no livro, é paradigmática. Não se abalançaram as orga­nizadoras a uma síntese conclusiva sobre o ideário de Roquette-Pinto, seu legado às novas gerações, talvez porque a riqueza do material reunido em ensaios tão variados e a vivência do cotidiano institucional na Fiocruz – à qual Roquette esteve tão associado – lhes dificultassem a distância e a perspectiva necessárias.

Que era, afinal, a “antropologia brasiliana”, alem de um modismo?Que resta desse empreendimento, uma vez despido das aderências ideo­lógicas de seu tempo?  O livro mereceria um capitulo sobre o administrador de instituições que foi Roquette – como diretor do Museu Nacional; quando, em mo­mento crítico – a gripe espanhola, – assumiu a direção de uma enfermaria do Hospital Deodoro; ou quando esteve à frente da primeira emissora de radiodifusão do Brasil, depois mutado na Rádio MEC que, em 1937, ele doou generosamente ao Ministério da Educação e Saúde. E quando, ain­da, em 1936, dirigiu o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE).

Essa intensa, importante atividade institucional é mencionada, mas não devidamente descrita e analisada para a compreensão necessária do que seria, naqueles anos, um administrador institucional do porte criativo de Roquette.

Como convivia o cientista, o humanista, com o clima autoritário, depois totalitário do Estado Novo? Como teria disciplinado a censura cinematográfica?Que censura era essa?Qual teria sido o convívio de Roquette com a Ditadura, de origem positivista e constituição salazarista, que iria formalizar-se na carta de 1937 e esterilizou, com o peso de suas burocracias, tanta iniciativa fecunda na educação e na saúde? De um a outro capítulo, delineia-se o perfil de Roquette-Pinto educa­dor. Merecia capítulo à parte. Difícil, também neste passo, compreender como o signatário do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” – com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Francisco Venâncio Filho e  tantos outros – documento de tempera liberal, veio a filiar-se ao Partido Socialista Brasileiro, no qual chegou a candidatar-se em 1954 a deputado à Câmara Federal. Que socialismo era esse?O de Proudhon ou o de Saint-Simon? Não seria certamente o de Marx.

Outro ponto que mereceria análise, nessa personalidade – de tão ri­cas e instigantes contradições – era sua religiosidade. Chegou a articular, nos idos de 1935, um curioso Credo (sic), onde parece transitar do Positi­vismo, doutrina conservadora, para um Socialismo reformista.

Não há dúvida que essas tensões eram as de sua geração, alimentada pelas ideias de Darwin, de Spencer, de Comte, e animada por um Roman­tismo fundamental. Nascidos poucos anos depois da Abolição da escra­vatura, esses pensadores cresceram nos padrões e comportamentos per­sistentes de uma sociedade patrimonialista e de uma cultura bacharelesca. Sem a prática do método científico e sem as disciplinas da Universidade esses cientistas formam-se ao acaso do encontro, da viagem, do livro ou da experiência estrangeira, ainda apegados, malgie soi, ao discurso, ao culto da palavra, ao individualismo decorativo – menos ao laboratório, ao trabalho técnico e manual à pesquisa de equipe. Admirável, tenham conseguido produzir uma ciência e uma estrutura institucional, pagan­do alto preço ao ufanismo que os levaria às aberrações nacionalistas dos anos 30, à Ditadura de 37, às restrições criminosas à imigração – enfim, até ao Racismo.

Livrou-se Roquette dessa maleita e do racismo arianista pelo concei­to problemático de uma raça brasileira – ou brasiliana – encontrada por Euclides no sertanejo, por Roquette nos nhambicuaras. Bastante cientista, no entanto, Roquette percebeu que esse brasiliano não podia ser “antes de tudo um forte” e continuasse analfabeto, verminótico, tuberculoso, en­quanto exercesse práticas agrícolas destrutivas – e que era preciso tratá-lo, dar-lhe hospital, vacina, arado. Essa a grande missão que destinava ao Estado e às elites do seu tempo. Nessas esperanças, de alguma forma, comungamos, indivíduos ou instituições. Desse idealismo, não no sentido de Oliveira Vianna, mas no comum, Roquette, como o livro assaz demonstra, foi exemplo egrégio e continua mestre e inspirador.

José Arthur Rios – Sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Khronos | USP | 2008

Kronos3 Science Teaching

Khronos – Revista de História da Ciência (São Paulo, 2008-) é uma publicação semestral do CHC – Centro Interunidades de História da Ciência da Universidade de São Paulo (fundado em 1988) – voltada para a história e epistemologia das ciências naturais, ciências da vida, ciências humanas, técnicas e áreas correlatas.

A perspectiva é interdisciplinar e visa estimular as possibilidades interpretativas dos processos de conhecimento científico e técnico em seus contextos históricos.

São publicados resultados de pesquisas originais relativas a temas desde a Antiguidade até o século 21, inclusive.

Além destes, são bem vindos textos de memórias de cientistas ou de instituições, bem como traduções inéditas, resenhas, notícias de projetos de pesquisa e outros assuntos de interesse para historiadores.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre.

ISSN 2447-2158

Acessar resenhas

Acessar dossiês

Acessar sumários

Acessar arquivos

Conhecimento e fronteira: história da ciência na Amazônia | Priscila Faulhaber e Peter Mann de Toledo

Conhecimento e fronteira: história da ciência na Amazônia ofe- rece aos leitores, além de farta documentação e muita informação, uma acurada análise a respeito do tema englobado pelo título: a história da ciência, dos cientistas e das instituições científicas na Amazônia brasileira. O livro focaliza primordialmente o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), sediado em Belém, e, de modo secundário, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), sediado em Manaus. O volume está destinado a se tornar uma obra de referência.

O livro divide-se em duas partes principais. A primeira delas, intitulada ‘Estratégia científica e unidades de pesquisa na Amazônia’, reúne 14 ensaios e artigos de especialistas em história e política da ciência, em tecnologia e instituições científicas. A segunda parte, sob o título ‘Trajetória social e memória institucional’, apresenta as transcrições de 31 entrevistas e depoimentos de pesquisadores e administradores que atuaram direta ou indiretamente no MPEG, no Inpa ou no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão ao qual são subordinados esses dois principais institutos de pesquisa da Amazônia. A ‘cronologia’ dos dois institutos e a ‘iconografia’, levantadas com rigor e que figuram ao final do volume, formam uma terceira e enriquecedora parte, situando fatos e personagens mencionados ao longo do livro. Leia Mais

A revolução científica | Steven Chapin

“As imagens tradicionais da ciência estão a ser atacadas.” Esta frase ousada bem poderia descrever o ímpeto revolucionário dos filósofos naturais do século XVII, analisados por Steven Shapin em A revolução científica, obra de 1996 recentemente surgida em tradução para a língua portuguesa. Mas não. Quem a proferiu foi um nosso contemporâneo, o sociólogo Donald Mackenzie (1981, p. ix), ao introduzir o seu trabalho sobre a emergência das teorias estatísticas na viragem para o século XX.1 Com essa expressão, Mackenzie estava a captar o ataque aos modos “tradicionais” de fazer história e sociologia da ciência lançado desde meados da década de 1970 pela auto-intitulada sociology of scientific knowledge (mais conhecida por SSK), em particular pelo grupo reunido na Science Studies Unit da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Shapin, então companheiro de Mackenzie em Edimburgo, iniciava a sua carreira intelectual na crista desse ataque revisionista. Apresentar Steven Shapin como autor implica, pois, vê-lo como actor deste esforço para reformar os estudos sociais da ciência. Um esforço que compreende igualmente A revolução científica, trabalho de síntese que possibilita numa narrativa acessível um encontro com o programa sociológico que Shapin lançou como impulso de reforma da história da ciência. Leia Mais