Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

O livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), resulta da adaptação de duas palestras e uma entrevista, realizadas em Portugal por Ailton Krenak. Detentor do título doutor honoris causa concedido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o autor, nascido na região leste do estado de Minas Gerais, possui uma importante trajetória na luta pelos direitos das populações indígenas no Brasil e pertence ao grupo étnico Krenak, que habita o Vale do Rio Doce. Os capítulos da obra receberam os títulos dos respectivos trabalhos em que foram baseados: “Ideias para adiar o fim do mundo”, ministrado em uma apresentação no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em março de 2019; “Do sonho e da Terra”, apresentado em maio de 2017 no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa – publicado inicialmente pela revista Flauta de luz (n. 6, 2019); e, por fim, “A humanidade que pensamos ser”, a partir de entrevista concedida também em maio de 2017, em Lisboa, cujo texto foi produzido inicialmente para o catálogo da conferência-dançada Antropocenas (2017).

Ailton Krenak inicia a discussão a partir do questionamento do que compreendemos e constituímos ser a humanidade. O desconforto do autor no relato de sua chegada às terras portuguesas ilustra a memória do conhecimento de relações e processos históricos e de medidas injustas que representaram não apenas o adentrar de outros povos em terras ricas e férteis, mas a violência, a perda imensurável de um mundo constituído por identidades. Para sua legitimação, o processo dito civilizatório empreendido pela colonização, trazia consigo uma concepção homogênea de humanidade, centrada na historicidade vivenciada por uma parte específica do globo. A humanidade imposta e comumente reconhecida e vivenciada, desse modo, seria um deslocamento abrupto em relação à própria natureza do ser humano, como as ancestralidades e sua importância na constituição e identificação do ser e também (e especialmente) a de organismo pertencente ao mundo natural. Esse distanciamento, segundo o autor, produz uma experimentação superficial de nossa humanidade e a alienação. Krenak assinala que formas outras de humanidade eram e são comuns em muitos povos e culturas, mas muitos acabaram sendo forçados a integrar uma expressão globalizante que exclui o homem de seu pertencimento à Terra.

Corre pelo mundo o discurso da sustentabilidade. Mas o autor nos chama a atenção: sustentabilidade para quê, para quem? Esse pensamento parte da proposição colocada por Krenak de duas formas de se pensar a humanidade: a humanidade e a sub-humanidade; essa composta por “caiçaras, índios (sic), quilombolas, aborígenes”, por povos tradicionais não apenas das Américas, que possuem uma relação íntima com a terra, na contramão da lógica do capital. A lógica do capital e das grandes corporações, como coloca o autor, consiste em criar espaços, experiências artificiais, que envolvem a exploração da natureza e a descaracterização do mundo em nome do progresso e da razão. Com isso, a humanidade – aquela única – que se institui se torna cada vez mais distante do organismo vivo que se chama Terra.

Desse modo, a crítica presente no livro está na denúncia pelo autor de como nosso tempo tem sido produtor de ausências e em como nossa sociedade e seu projeto de humanidade representam interesses econômicos que consequentemente se chocam com cosmovisões que não abarcam tais anseios ou que não se interessam pela mesma forma de existência. Cabe ressaltar que a leitura que se faz a partir do pensamento do autor não exclui a realidade de que fazemos parte de uma única espécie, a humana; trata-se de mais uma provocação. Portanto, sua ideia para adiar o fim do mundo é pensada nesse sentido, ou seja, na possibilidade de contar mais uma história. Se temos uma única forma engessada de humanidade, talvez estejamos sim fadados a um fim, o que assinala o autor:

E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos (KRENAK, 2019, p.26-7).

Pensar em formas outras de humanidade pode nos ser estranho tendo em vista uma tradição histórica que nos condicionou a ver o ser humano como a si mesmo no tempo; mas Ailton Krenak evoca o exemplo de centenas de povos que atravessaram os séculos, resistem – não apenas como corpos humanos, como também em memória – e que adiaram o fim do mundo pela suspensão do céu.

Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades (KRENAK, 2019, p.32).

A metáfora das constelações a que Krenak se atém traz uma estética que nos leva a refletir sobre as formas naturais a que fomos e temos sido influenciados, induzidos, forçados a ir contra; e tamanha diversidade, colocada em uma única “forma”, além de contribuir com a negação de diferentes historicidades e memórias, é um meio de supressão da própria vida.

Na história recente do país, o Brasil viveu entre um espaço de pouco mais de três anos duas tragédias ambientais ligadas à mineração. O crime ambiental ocorrido em Mariana afetou o rio Doce, o Watu para os Krenak. Para além de um recurso natural, o rio integrava a identidade desse povo, sendo o desastre uma ameaça não apenas ao meio ambiente, como a uma forma de cultura que tira do Watu sua sobrevivência. Cabe lembrar que os resíduos que atingiram o rio, atravessando Minas Gerais e Espírito Santo, eram tóxicos, afetando a qualidade da água, a natureza ao entorno e os animais que habitam o território. Nas palavras de Krenak, “esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu as nossas vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (KRENAK, 2019, p.42).

Voltamos ao ponto inicial. Que humanidade é essa que se utiliza do discurso da sustentabilidade, mas que se vê separada da natureza? Que humanidade é essa cuja ambição explora a Terra, esgota os recursos e provoca um lamaçal de morte, tristeza e angústia? É comum que tenhamos ouvido sobre o Antropoceno: periodização geológica marcada pela ação humana sobre o planeta; mas pouco temos nos alarmado sobre a incidência de nossas ações sobre o mundo que compartilhamos com outras humanidades, como afirma o autor. Mas prosseguimos com essa humanidade repleta de distanciamentos e efemeridades, que nos cega e nos mata, consumindo juntamente o céu e a Terra. Podemos mencionar, além disso, o pensamento consolidado em nossa sociedade de que formas outras de humanidade, que veem na natureza alguma sacralidade, são folclóricas, nos esquecendo do olhar etnocêntrico que nos atravessa, tendo em vista nossa constituição histórica e cultural pela cristandade ocidental. E como consequência de uma cosmovisão construída sobre a ideia da subjugação da natureza pelo ser humano, tudo se torna apenas recurso e meio para algo. Diante da dimensão do distanciamento entre os seres humanos, no que tange à forma de vida, o autor propõe como ponto de contato entre as mais diversas comunidades, discutir sobre o sonho e a terra. Enquanto para alguns sonhar possa significar unicamente descanso ou renúncia da realidade, Krenak afirma que outros vivenciam o sonho como uma forma de orientação, na busca de respostas para as coisas práticas da vida, para o autoconhecimento e desenvolvimento das relações interpessoais: “é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada”; e acrescenta: “alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm passagem por eles. São lugares com conexão com o mundo que partilhamos; não é um mundo paralelo, mas que tem uma potência diferente” (KRENAK, 2019, p.66-7)

Por fim, o autor expõe sua visão sobre “o fim do mundo” como um momento de tensão entre o conforto e a ruptura e pensa o Antropoceno como um estado que se naturalizou à medida em que projeções foram feitas sobre a Terra e sobre a vida. Essa naturalização, recebendo como motor o consumo, teria quebrado percepções antes notáveis como a transição humana entre os lugares e a mutabilidade do próprio planeta. Para Krenak, a queda não é algo recente na história da humanidade e, portanto, ela deveria ser tratada de forma a repensarmos nossa forma de existência e nossos valores, considerando, entretanto, que recebemos um mundo de nossos antepassados e que somos responsáveis pelo mundo que entregaremos às próximas gerações.

Sentimos insegurança, uma paranoia da queda porque as outras possibilidades que se abrem exigem implodir essa casa que herdamos, que confortavelmente carregamos em grande estilo, mas passamos o tempo inteiro morrendo de medo. Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos. Já que aquilo de que realmente gostamos é gozar, viver no prazer aqui na Terra (KRENAK, 2019, 62-3).

Tecendo críticas à academia, aos governos e à civilização, Ailton Krenak nos chama a refletir sobre nossa própria humanidade, num exercício que passa por processos marcados pela história e por toda uma lógica que se funda em fugas, distanciamentos e em vazios. Mas, como afirma o autor, por mais que neguemos nossa natureza, algo, ou essa nossa própria natureza, nos chama a olhar para aquilo que nos constitui como pertencentes a esse mundo, refletindo num anseio pelo adiamento do fim. O tensionamento da noção de humanidade é o ponto fundamental deste trabalho e que não se limita apenas a esta obra e a visão de Ailton Krenak lança luz sobre a diversidade humana, propondo um olhar sensível às humanidades que habitam a Terra – sendo essa, além de um espaço (ainda) habitável, a razão da própria vida; e a privação de outras formas de ser, senão o antropocentrismo constitui-se, portanto, como negação da própria Humanidade que compartilhamos.

Referência

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019.


Resenhista

Isaias Borja – Graduando em História Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]

Referências desta resenha


KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019. Resenha de: BORJA, Isaias. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.3, p.1006-1010, set./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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