Zoo studies: a new humanities | Tracy MacDonald e Daniel Vandersommers

O livro de Tracy McDonald e Daniel Vandersommers (2019) é um ótimo sinalizador do potencial e dos limites que o campo de investigações identificado como zoo studies possui. Associados a campos similares, como animal studies, os zoo studies têm uma particularidade: são centrados em uma instituição que, segundo os organizadores, normaliza uma determinada maneira de estar no mundo, apartada dos demais seres viventes. Essa instituição é acusada de legitimar, por meio do cativeiro, a supremacia dos humanos sobre os não humanos, assim como de desqualificar o direito destes últimos ao mesmo planeta que habitamos. Os zoo studies surgem, portanto, não apenas para dar visibilidade aos habitantes cativos dos zoológicos, mas também para questionar o nosso próprio conceito de “humanidade”, em oposição, desde o Iluminismo, ao de “animal”.

Esses princípios são interessantes e oportunos. A academia tem, de fato, muito a investigar sobre a história dos zoológicos, assim como há muito a ser discutido, nas mais diversas áreas de conhecimento, sobre o papel que os zoológicos desempenham na sociedade contemporânea e em diversos contextos socioculturais. Não são os princípios, portanto, a razão de minha crítica ao livro de McDonald e Vandersommers. Não divergimos quanto a eles, mas na plataforma política que subjaz a esses princípios. Antes de levantar questões para um debate, farei um breve sumário do conteúdo do volume. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

Ailton Krenak, 66 anos, filósofo, escritor, jornalista, ativista e líder do povo krenak, é considerado um dos mais importantes pensadores brasileiros. Desde o seu discurso na Assembleia Nacional Constituinte em 1987, o intelectual indígena luta pelos direitos dos povos tradicionais indígenas, por política socioambiental e medidas assertivas sobre proteção ao planeta Terra. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

O livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), resulta da adaptação de duas palestras e uma entrevista, realizadas em Portugal por Ailton Krenak. Detentor do título doutor honoris causa concedido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o autor, nascido na região leste do estado de Minas Gerais, possui uma importante trajetória na luta pelos direitos das populações indígenas no Brasil e pertence ao grupo étnico Krenak, que habita o Vale do Rio Doce. Os capítulos da obra receberam os títulos dos respectivos trabalhos em que foram baseados: “Ideias para adiar o fim do mundo”, ministrado em uma apresentação no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em março de 2019; “Do sonho e da Terra”, apresentado em maio de 2017 no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa – publicado inicialmente pela revista Flauta de luz (n. 6, 2019); e, por fim, “A humanidade que pensamos ser”, a partir de entrevista concedida também em maio de 2017, em Lisboa, cujo texto foi produzido inicialmente para o catálogo da conferência-dançada Antropocenas (2017). Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo / Ailton Krenak

KRENAK Ailton Fim do mundo
KRENAK A Ideias para adiar o fim do Mundo Fim do mundoAilton Krenak / Foto: Fondation Cartier  /

O livro de Ailton Krenak, estruturado em três capítulos referente a palestras e adaptação de uma entrevista realizada em Lisboa – Portugal, configura-se enquanto uma excelente ferramenta de auxílio para o questionamento do desenvolvimento moderno e a sua humanidade. O autor indígena, oriundo do povo Krenak que se territorializou na região do Vale do Rio Doce, além de produtor gráfico e jornalista dedicou-se ao ativismo do movimento socioambiental e dos direitos dos povos indígenas, sendo lembrado muitas vezes pelo seu discurso proferido na Assembleia Constituinte de 1987, aonde, protestando pintou seu rosto com tinta de jenipapo como expressão do luto ao massacre dos povos indígenas legitimado pelo retrocesso dos direitos das comunidades tradicionais.

Seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” objetiva realizar uma discussão sobre os impactos das ações que imprimimos no planeta terra orientados pela cosmovisão de que somos seres separados da natureza, retroalimentando uma autodestruição, que não é compreendida pela ideia de humanidade construída pela modernidade eurocêntrica. Sendo assim, os povos tradicionais, compreendidos como sub-humanos pela modernidade, são compreendidos pelo autor como uma alternativa a lógica de autodestruição e exploração excessiva da natureza. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.
Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra”.
Gênesis, 1:27-28

No dia 14 de julho de 2019, quase final da manhã, um pequeno grupo se prepara para se despedir da pousada tornada Casa do Sesc em Paraty durante a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip (1). As pessoas se encontram no estacionamento, com os porta-malas dos três veículos abertos sendo abarrotados de malas, livros e quitutes da cidade. Em um dos automóveis, Laura Vinci e José Miguel Wisnik; no outro, Abilio Guerra, Silvana Romano, Marcelo Ferraz e Isa Grinspun Ferraz. Na van, o líder indígena Ailton Krenak, acompanhado de esposa e casal de filhos, mais os anfitriões, um casal com aparência estrangeira, com respectivo filho. A conversa começa como despedida formal de convivas de abrigo e café da manhã, mas se desdobra na última e inesperada conferência do índio na Flip, uma apresentação para poucos, os afortunados presentes.

Ailton Krenak carrega na alcunha o nome de seu povo, que habita a região do Vale do Rio Doce, território que foi encolhendo ao longo do tempo na velocidade inversa e proporcional a do processo de ampliação da atividade mineradora. “Encolhimento” é um eufemismo para substantivos mais adequados à situação: “roubo”, “expropriação” ou “sequestro”, considerando que para os povos nativos da terra brasilis os elementos da natureza são gentes de seu convívio. De forma mais direta, “latrocínio”, crime hediondo quando se mata para roubar. Como se trata de um coletivo, estamos diante do “genocídio” de povos nativos para se apropriar de suas terras. Leia Mais

21 lecciones para el siglo xxi – HARARI (I-DCSGH)

HARARI, Y.N. 21 lecciones para el siglo xxi. Barcelona: Debate, 2018. Resenha de: OCHOA PELÁEZ, Vanessa. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.94, p.83-84, jan. 2019.

21 lecciones para el siglo xxi nos revela los principales agentes que están hoy presentes en el tablero de juego de nuestra sociedad global, con objeto de poder plantear así los problemas a los que el género humano nos enfrentaremos a lo largo de este milenio, y que nosotros mismos estamos creando.

Yuval Noah Harari (Israel, 1976) consiguió un gran número de lectores y lectoras con sus dos anteriores libros: Sapiens, un relato sobre la historia de la humanidad, y Homo Deus, que nos transporta a nuestro futuro como especie. En esta ocasión, sin embargo, Harari nos invita a conocer el presente con el fin de vislumbrar hacia dónde nos dirigimos en el porvenir más cercano.

La obra se divide en veintiún capítulos, y en ellos se exponen las diversas problemáticas planetarias a las que habrá de hacer frente la comunidad global: trabajo, religión, justicia o terrorismo, entre otras. Buena parte de estos capítulos son ensayos filosóficos acerca de algunas de las cuestiones más preocupantes hacia las que nos aproximamos, como el uso de la inteligencia artificial, el auge de los nacionalismos o el papel de la religión hoy en día. Al respecto, el propio autor refiere que esta obra es fruto de diferentes ensayos y artículos que ha ido publicando en otros medios, «en respuesta a preguntas que le dirigieron los lectores, periodistas o colegas».

Resalta su forma de reflexionar: a partir de los datos históricos analiza cómo se comportó con anterioridad el ser humano en distintas épocas, a fin de inferir así unas predicciones concluyentes, un método historiográfico en el que se percibe el eco de los estudios de historia que cursó en la Universidad de Oxford.

La sinceridad tiñe todo el texto. Así, el autor no duda en sacar a colación aspectos de su vida personal y reflexionar acerca de los dogmas recibidos durante su propia educación. No obstante, Harari es capaz de distanciarse de este fondo subjetivo, recapacitar y someterlo a crítica, objetivando tales problemas.

La portada del libro –un ojo que todo lo ve– nos sugiere la visión tiránica del Gran Hermano de la novela 1984 de George Orwell, un modelo de totalitarismo al que quizá poco a poco nos dirigimos.

Al igual que en esta famosa ficción, está en juego perder nuestro libre albedrío, sobre todo a causa de factores como la «tecnología disruptiva». Sin embargo, ese gran ojo también nos invita a ser la mirada de los espectadores que contemplamos el nuevo mundo que estamos implantando.

Para ello, el autor propone una única forma de conseguirlo: profundizar en nosotros mismos de forma personal.

Precisamente por ello, los docentes de ciencias sociales debemos prestar un especial interés a las lecciones que Harari nos imparte. Nos corresponde investigar los fenómenos que nos rodean, para poder comprender el mundo. Sobre nuestra profesión recae la responsabilidad de presentar a los estudiantes el medio en el que habitarán: cada uno de ellos recogerá el testigo, y cada uno de ellos habrá de decidir si será o no un constructor de ese nuevo escenario.

Tan relevante es para el autor este cometido que incluso dedica uno de los capítulos a la educación, afirmando que «el cambio es la única constante» y especificando que «las escuelas deberían dedicarse a enseñar las cuatro C: pensamiento crítico, comunicación, colaboración y creatividad», es decir las habilidades de uso general necesarias para la vida cotidiana. Así, este libro nos ayudará a presentar a los estudiantes los problemas a los que se enfrentarán durante sus vidas adultas, los cuales quizá podamos introducir con ayuda de muchas de las metodologías activas ya implantadas en las aulas.

Harari culmina la obra dedicando el último de sus capítulos a la meditación, una práctica muy extendida en la actualidad junto con otras terapias de tercera generación como el mindfulness, muy presentes entre los miembros de Silicon Valley. Al respecto, el autor afirma que medita durante dos horas al día y realiza un retiro de dos meses al año en completo silencio. Y es que, como ya anuncian varios medios de comunicación, entre ellos la BBC, Harari se está convirtiendo «en el gurú involuntario de Silicon Valley».

A través de la meditación, este pensador israelí nos invita a conocernos a nosotros mismos, a considerar el momento presente para poder observar con nitidez cada uno de los acontecimientos que estamos presenciando. No en vano, Harari sostiene que su intención es aportar luz al mundo, pues «la claridad es poder». Está en nuestras manos decidir cómo utilizarla.

Vanessa Ochoa Peláez – E-mail: [email protected]

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Homo Deus: Breve historia del mañana – HARARI (RHYG)

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: Breve historia del mañana. Barcelona: Editorial Debate, 2017. 496p. Resenha de: SÁNCHEZ FUENTES, Roberto. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.40, p.159-164, 2019.

Cada cierto tiempo surgen intelectuales que ponen en la discusión pública temáticas de gran relevancia para las élites políticas y empresariales, a la vez que generan cierta suspicacia en las cúspides académicas: hacen que se sientan convocadas transversalmente a debatir y reflexionar sobre el porvenir del planeta y la humanidad que lo habita. Es en este contexto que el profesor Yuval Noah Harari pasó de ser un desconocido académico de la Universidad Hebrea de Jerusalén a convertirse en una especie de oráculo o profeta del mañana. Diversos medios lo posicionan como uno de los intelectuales de moda, un rockstar de las famosas charlas TED bajo el lema “ideas que vale la pena difundir”, al punto que sus recientes libros son recomendados por el expresidente de Estados Unidos, Barack Obama, el empresario fundador de Microsoft, Bill Gates, y el informático creador de Facebook, Mark Zuckerberg.

Un tipo de gurú al que líderes mundiales, como Angela Merkel y Emmanuel Macron, desean consultar y con el cual intercambiar ideas. Hoy por hoy lleva vendidos cerca de quince millones de ejemplares de sus ensayos en todo el mundo. Los más famosos son una trilogía sobre la historia de la humanidad contada sin convencionalismos, en la que encontramos Sapiens, de animales a dioses (Editorial Debate, 2014), el que triunfó primero en Israel en 2011 y luego en todo el mundo, y se convirtió en un best seller internacional tras ser publicado en inglés el año 2014. Actualmente ha sido traducido a unos cincuenta idiomas. Este éxito vino seguido por Homo Deus, breve historia del mañana , libro abordado por la presente reseña. Y, más recientemente, 21 Lecciones para el siglo XXI (Editorial Debate, 2018), en el que reflexiona sobre el mundo actual y realiza advertencias para este siglo. Leia Mais

O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.

As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).

A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.

Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.

Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.

Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.

Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).

Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?

A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.

Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).

Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.

O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.

Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).

O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.

Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.

O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.

Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.

Nota

1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.

Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: [email protected]

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O livro da hospitalidade:  acolhida do estrangeiro na história e nas culturas – MONTANDON (C)

MONTANDON, Alan. O livro da hospitalidade:  acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Senac de São Paulo, 2011. Resenha de: COMANDULLI, Sandra Patricia Eder. Conjectura, Caxias do Sul, v. 20, n. 1, p. 183-190, jan/abr, 2015.

O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas, no original Le livre l’hospitalité: accueil de l’étranger dans l’histoire et les cultures (2004) foi concebido por Alain Montandon, professor titular de filosofia e de literatura geral e comparada na Universidade Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand. No prefácio, Montandon afirma que “a hospitalidade é sinal de civilização e de humanidade”. É “uma maneira de viver em conjunto, por meio de regras, ritos e leis”. A proposta de Montandon é percorrer o tema da hospitalidade “de portas abertas ao leitor”, a quem ele denomina “nosso hóspede”. Para Luiz Octavio de Lima Camargo, doutor em Sciences de l’Education pela Universidade Sorbonne-Paris V e autor da apresentação da edição brasileira, é uma obra enciclopédica que “tem por objetivo trazer a noção da hospitalidade para dentro do terreno da reflexão filosófica e da observação empírica”.

Para Camargo “a justo título, pode ser considerada uma obra, se não fundadora, ao menos sistematizadora dos estudos de hospitalidade, já que define e expande consideravelmente os limites do tema”.

Cerca de oitenta colaboradores, entre eles, filósofos, antropólogos, psicólogos, comparatistas, historiadores, etnólogos, literatos, especialistas em comunicação e sociólogos, oriundos de diversos países e de formações distintas escreveram os textos. A edição brasileira, publicada pela editora Senac (2011), foi traduzida por Marcos Bagno e Lea Zylberlicht. A obra é apresentada em cinco grandes partes, cada uma dividida em seções que agrupam os artigos. No final, há um capítulo sobre os autores, um capítulo de bibliografias – geral, por artigo e indicação de títulos publicados em português – e o índice, dividido em temático, onomástico e de obras citadas.

Esta resenha focaliza os artigos da quinta parte sobre filosofia e política, fazendo-se menção ao assunto de cada um deles. O primeiro é Jacques Derrida – Um pensamento do incondicional, escrito por Ginette Michaud, professora titular do departamento de literaturas de língua francesa da Universidade de Montreal. Michaud divide o conceito de hospitalidade, segundo Derrida, em três momentos reflexivos: a hospitalidade como um princípio ético, incondicional e infinito; a hospitalidade concretizada em responsabilidade e traduzida em palavra e gesto; a língua como hospitalidade, concentrando num silogismo hostipitalidade (1995), o paradoxo de ser hospitaleiro e, ao mesmo tempo, de provocar a hostilidade ao impor a língua ao hóspede. A busca incansável de Derrida, conforme Michaud, é pela hospitalidade “onde nunca saberemos quem acolheu quem e se (condição sem condição) a acolhida encontrou realmente lugar, foi dada e recebida e tornada acontecimento ao chegar”.

Marie Gaille-Nikodimov, professora titular de filosofia, na Universidade de Paris X-Nanterre, é autora dos três textos descritos a seguir. A acolhida problemática da filosofia na cidade propõe uma reflexão sobre as seguintes questões: Onde praticar o ato de filosofar? Em que condições? Onde a filosofia é capaz de melhor se desenvolver? A escola é o lugar, por excelência, de descoberta da filosofia? Deve constituir uma disciplina específica ou, ao contrário, estar presente em todos os cursos oferecidos pela universidade? Para responder essas perguntas, a autora propõe uma reflexão que perpassa a história da filosofia, apoiada em Sócrates, Descartes, Spinoza, Kant e Derrida. O primeiro, diante da crise de valores que atinge Atenas, chama cada um à razão em detrimento das suas crenças e opiniões e, condenado à morte, dirige-se aos atenienses salientando que a sua linguagem não é a mesma que a deles. Descartes, em 1641, nas Meditações metafísicas, reafirma a linha de demarcação entre o domínio da fé e da razão. Spinoza introduz o Tratado teológicopolítico, publicado em 1670, afirmando que “[…] a liberdade de filosofar não apenas pode ser concedida sem prejuízo para a piedade e a paz da república, mas também que não pode ser suprimida sem se suprimir ao mesmo tempo a paz da república e a piedade”. (SPINOZA, 1999 apud GAILLE-NIKODIMOV, 2011, p. 1018). Kant, em O conflito das faculdades  (1794), argumenta que a filosofia deve se submeter à lei da razão e não à lei dos governantes. Por último, a reflexão se volta para o discurso de Derrida, que coloca a questão da hospitalidade à filosofia de um ponto de vista cosmopolítico, ou seja, “em outro espaço diferente da cidade”, considerando-se por um lado “a multiplicidade dos modelos, dos estilos, as tradições ligadas às histórias nacionais ou linguísticas” e, por outro, “exceder constantemente o quadro desta ou daquela língua […] e circular de um espaço linguístico/de conceitualização a outro”.

Em Conflito do direito e das leis não escritas, o texto avança em busca da resposta para a questão: conceder ou não o direito de cidadania aos estrangeiros? Dentre as possibilidades, Nikodimov relaciona algumas, dentre elas: a questão econômica, ou seja, o benefício que o Estado pode ter com a concessão; o direito dos cidadãos de decidirem que tipo de comunidade querem criar e quem a ela pode pertencer; a ideia da existência de leis não escritas, que são o fundamento maior do direito dos refugiados; a hospitalidade como um ato jurídico e não filantrópico ao qual o Estado deve se conformar e, do primado do indivíduo sobre o Estado no qual a igualdade entre os homens fundamenta a obrigação de conceder o direito de cidadania.

O terceiro texto Sobre a ambiguidade dos direitos do homem está pautado na possibilidade de uma hospitalidade de Estado, em que o homem, cidadão privado é o sujeito de direito. A ideia de uma hospitalidade humanista repousaria, segundo Nikodimov, “sobre uma teoria que faz do homem, enquanto espécie, a origem e a finalidade dos direitos”. A partir dessa concepção, a hospitalidade assume um sentido jurídico-político fundamentada no direito cosmopolítico de Kant (1795).

Pretende, no entanto, ir além, ao classificar o homem como um sujeito de direito em relação a uma comunidade de direito internacional e não mais sob as condições de um estatuto jurídico exercido pelo Estado sobre o seu território. A hospitalidade humanista transporia uma fronteira do Estado-nação para a ideia de uma comunidade sem exclusão, ao pressupor a pessoa humana como único sujeito de direito e, assim, conferir a todos os indivíduos a mesma condição jurídica em virtude de seu pertencimento comum à humanidade.

O exílio é o tema que Sylvie Aprile, professora de história contemporânea da Universidade François-Rabelais, de Tours, aborda em Mutações e transferências. Inicialmente, ela cita a passagem da Bíblia no Êxodo, 22, 20 que diz: “Não maltratarás o estrangeiro, nem o oprimirás.

[…] Pois vós fostes estrangeiros no Egito.” A nostalgia está presente no tema do exílio e sua expressão mais comum, a queixa, é expressa pelo verso poético, o romance ou o anátema. O exílio é vivido como uma provação passageira que se configura na relação problemática da língua, na dificuldade do exilado de compreender os signos estranhos à sua volta, na ausência material das lembranças do passado, na falta de enraizamento ao solo estrangeiro, no olhar voltado para o passado e na hostilidade ao presente.

Dois artigos falam da imigração, no continente europeu, com ênfase na França por ser um país com tradição em receber muitos imigrantes. França/Europa foi escrito por Rose Duroux, professora emérita da Universidade Blaise-Pascal, em Clermont-Ferrand e Discurso e contradições por Mireille Rosello, professora de literatura e cultura de expressão francesa na Universidade do Northwestern, Chicago. Duroux faz uma abordagem diacrônica a respeito da imigração na França, fazendo menções históricas e citações quantitativas. As questões propostas por ela relacionam-se com o fato de ser a França o país que é exemplo para o mundo na questão dos Direitos Humanos: como é possível vencer o desafio da hospitalidade, se a imigração é um fato recorrente e crescente? A imigração ocorre devido a motivações econômicas, pessoais e familiares, de um lado, e, de outro, por questões políticas, origens étnicas, religião ou nacionalidade. A hospitalidade está estruturada em três conceitos concomitantes: assimilação, inserção e integração. O grande desafio que se impõe neste século XXI e uma das alternativas, segundo Duroux, para fazer frente à questão da imigração clandestina, seria a supressão dos vistos, a regulamentação da permanência e a abertura das fronteiras aos trabalhadores. Indo além, ela propõe que a Constituição europeia, ainda em preparação, contemple a “utopia positiva”, ou seja, a hospitalidade como o princípio da integração. Mireille Rosello, no seu Discurso e contradições, relaciona a hospitalidade ao contexto em que ela é praticada. No século XVIII, a Revolução Francesa introduziu a ideia dos valores republicanos universais, segundo os quais os direitos de todo o ser humano, independentemente de sua origem, estariam garantidos.

Entretanto, o clima hospitaleiro logo cedeu espaço e deu lugar à insegurança em relação ao que vem de um país não amigável. Contemporaneamente, a França pode não ser mais considerada um modelo de acolhimento, pois se encontra dividida entre um ideal de hospitalidade, e uma razão que se opõe à entrada daqueles que carregam  consigo a miséria. Segundo Rosello, a dificuldade na relação entre hospitalidade e imigração reside na questão: “como uma nação e um convidado (isto é, duas entidades a priori não comparáveis) podem estar ligados por um contrato de hospitalidade adaptado a uma situação contemporânea pós-colonial e transnacional?” Ela aponta as contribuições de Derrida e Baudrillard, segundo os quais a “hospitalidade e imigração às vezes não se entendem nada bem, principalmente, quando foi o próprio poder hospitaleiro da nação que contribuiu para colocar os estrangeiros em posição de solicitantes perpétuos”.

Magali Bessone, professora titular de filosofia na Universidade de Nice Sophia-Antipolis, escreveu os textos Excluído e marginalizado e A subversão heroica do público e do privado. No primeiro, ela afirma que a categoria de exclusão só adquire sentido em relação à de inclusão, de inserção e de integração. Os excluídos têm dificuldade “de definir sua própria situação, porque, com frequência, não têm acesso aos meios de expressão necessários para formular essa definição”. De outro modo, também a categoria dos incluídos encontra dificuldade de definição porque “sempre nos sentimos excluídos em relação a algum outro, sempre estamos excluídos de alguma coisa”. Bessone distingue formas de exclusão exercidas por aqueles que se julgam incluídos por deterem algum tipo de poder: na presença de uma ameaça à sociedade, é o estranho, o diferente que será objeto de exclusão; a “construção de um status de exceção”, como o ocorrido com os judeus na Alemanha nazista, e a criação de “espaços fechados no seio da comunidade, mas sem contato com ela: os guetos, os asilos ou as prisões”. Ela aponta a incoerência do coletivo que ignora as trajetórias particulares do indivíduo, colocando-o sob o domínio da inclusão. Por fim, conclui o texto, afirmando que “a exclusão demonstra a distância entre o que se supõe que os humanos sejam e o que eles são de fato”.

No segundo texto, Bessone enfoca o transcendentalismo, movimento nascido nos Estados Unidos (1836), cujo maior expoente foi Ralph Waldo Emerson, fundamentado na ideia de que “Deus deu aos homens os dons da perspicácia, da inspiração e da intuição” e que “é o instinto e não a razão, que nos conduzirá aos outros, ao mundo, e a nós mesmos, com uma atitude hospitaleira”. O termo transcendentalismo foi adotado em referência a Kant, que mostrou que havia uma “categoria de ideias muito importantes, de formas imperativas, que não provinham da experiência, mas graças à qual a experiência era  tornada possível; que elas eram intuições do próprio espírito; e ele as chamou de as formas transcendentais”. (EMERSON, 1967 apud Bessone, 2011, p. 1120). A hospitalidade, do ponto de vista transcendentalista, “é um modo privilegiado de estar junto, em que a verdade de cada um deve ser pôr a descoberto; dessa forma, ela é eminentemente política e, ao mesmo tempo, moral e religiosa”. As leis da hospitalidade têm o caráter das leis divinas, e o herói é o homem “cuja alma é nobre, e que, obedecendo a Deus, dá provas de uma generosidade hospitaleira”. Deus é a unidade do homem com todos os homens e com a natureza e é, ao mesmo tempo, totalidade e individualidade, o elo entre tudo o que existe. A hospitalidade não é “uma obrigação legal, e sim uma obrigação moral (no sentido kantiano do termo), ou, mais geralmente, uma exigência ética”.

O sonho de universalidade, escrito por Pierre-Yves Beaurepaire, professor assistente de história moderna na Universidade de Orleans, tem como tema a franco-maçonaria, que iniciou na época do Iluminismo (século XVIII) com um projeto de “reerguer a Torre de Babel”, estabelecendo entre seus membros uma ligação baseada na hospitalidade que Beaurepaire chama de planetária. Ele destaca que essa característica sofreu reveses com o passar do tempo. Atualmente, os franco-maçons, para recuperarem a “utopia da aldeia planetária”, investem “nas novas redes de comunicação, para definir os contornos de um novo espaço de hospitalidade maçônica: as ciberlojas, que permitem aos irmãos dispersos pelos quatro cantos do mundo bater à porta de ‘seu’ templo”.

René Schérer, professor emérito em filosofia na Universidade Paris VIII, é o autor de Necessidade do absoluto e esperança do melhor. O propósito do texto é colocar frente a frente a hospitalidade e a utopia, formando uma aliança, segundo ele, “paradigmática”, de reencontro “entre o velho e o novo: a hospitalidade, esse fato imemorável das sociedades humanas, e a utopia, perspectiva em direção do possível, do futuro”. O pano de fundo do texto é a obra Utopia de Thomas More. Schérer pergunta: Deve-se hospitalidade aos irregulares, aos clandestinos, que estão em situação incerta e que não receberam uma decisão positiva por parte dos Estados hospedeiros? Qual é a forma dessa hospitalidade? Dar hospitalidade a todos não seria uma utopia? Ele conduz o exame das possíveis respostas, contrapondo os dois termos: a utopia que “suspende, em uma espécie de epoché reveladora, toda crença no mundo, no real dominante, para melhor compreendê-lo e avaliá-lo”; e a hospitalidade, “o valor que, eminentemente, resiste a essa suspensão, precisamente  porque ela é de alguma forma, imanente a todo deslocamento, à viagem e à acolhida”. Contudo, mesmo concebida como “fechada e resistente”, a utopia já é “hospitaleira para o pensamento que a forma; hospitaleira desde a sua formação em um pensamento”.

Emmanuel Levinas – Rosto e epifania do outro, escrito pelo professor assistente de literatura e cinema latino-americano, na Universidade de Paris XII, Joachim Manzi, encerra a seção de Filosofia e política da obra.

Levinas nasceu em 1906, numa família judaica na Lituânia. Aos dezessete anos, estabeleceu-se na França, onde desenvolveu estudos de filosofia e, em 1995, faleceu. O princípio ético do filósofo, que perdeu seus familiares e foi feito prisioneiro durante o nazismo, está fundado no acolhimento incondicional do outro. Suas duas principais obras são Totalidade e infinito (1962) e Autrement qu’être ou au-dèla de l’essence (1974). Na primeira, Levinas propõe a hospitalidade como sendo “a verdadeira natureza incondicional da acolhida”. Esta acontece quando o outro acolhe antes mesmo que o eu concorde em ser acolhido. Acolher o outro é uma experiência que anula a resistência do eu e permite o início de uma consciência moral, que se manifestará no encontro “face a face com o rosto de outro”. A acolhida é uma relação intersubjetiva que contrasta com a ética racionalista e a dominação do discurso totalizante na sociedade ocidental. Conforme Manzi, o indivíduo, para Levinas, “torna-se cada vez mais heterônomo” ao não poder determinar as leis às quais obedece e a sua liberdade fica subordinada à exterioridade do outro e a de Deus, como ideia do infinito. Levinas “coloca no centro do face a face uma assimetria e uma renúncia de si que impedem qualquer retorno a si”. A subjetividade está sujeita à acolhida do outro e é ela que permite ao indivíduo vir a ser, como se na sujeição ao outro pela hospitalidade, o eu recebesse a si próprio. Se em Totalidade e Infinito a hospitalidade é assimétrica, em Autrement qu’être ou au-dèla de l’essence, Levinas revela “uma nova concepção do indivíduo”, que suprime qualquer pretensão de conquistar a totalidade do outro. A passividade prevalecerá sobre a atividade como uma exposição ao outro “anterior a qualquer proteção e a qualquer vontade”, como se o indivíduo passasse de autóctone para aquele que está fora do seu lugar. Manzi interpreta a dominação do eu pelo outro no pensamento de Levinas como o “traço de um indivíduo ferido, traumatizado, que, tendo sobrevivido ao Holocausto, deve testemunhar sobre ele apesar de tudo”. É a presença do rosto do outro que afirma a fidelidade absoluta do eu com o outro, ao mesmo tempo que desfaz “qualquer ideia de alteridade que o eu pôde ter”. Manzi lembra que Levinas inspirou-se na ideia cartesiana do infinito, enquanto ideia exterior ao pensamento e, segundo a qual, surge ao eu porque lhe foi dada por “Alguém outro, Deus”. É do infinito que vem a resistência do eu que deseja totalizar o outro, e que, ao mesmo tempo, convida o outro a vir ao seu encontro. O face a face com o rosto de outrem leva o discurso filosófico de Levinas “a contradições em aparência insolúveis e, no entanto, sem cessar abordadas corajosamente na sua escrita, porque se encontram precisamente na origem do sentido”. O eu poderia renunciar à resistência e usar sua liberdade para matar o outro e, então, diante do arbitrário e do injusto, o eu “que se lê nos olhos que me olham no momento da acolhida do rosto”, que Levinas associa ao termo epifania, tem a consciência da impossibilidade ética de matar. Em Totalidade e infinito, a epifania do rosto permite que nos olhos do outro esteja também “numa distância infinita” o olhar de todos os outros que interpelam e atraem o eu para o encontro com o outro. Em Autrement qu’être, a presença de um terceiro obriga o eu não apenas a responder pelo outro, mas representa uma exigência para com “todos os outros próximos, pela humanidade”. Para Derrida, a presença de um terceiro colocado entre a relação do eu com o outro é entendida como “o vínculo da ética com tudo que a ultrapassa e a trai, como a ontologia e a política, por exemplo”. (DERRIDA, 1997b, apud MANZI, 2011, p. 1.167). Manzi finaliza o texto, descrevendo a dimensão feminina que está presente no pensamento de Levinas, em que ele interpreta a fecundidade da mulher como uma inteira receptividade a outrem e um abandono sem retorno a si.

O enfoque da hospitalidade na perspectiva da Filosofia e política continua sendo um grande desafio na época contemporânea, em que os movimentos migratórios são crescentes, atingindo níveis que beiram o incontrolável e que as fronteiras parecem cada vez mais permeáveis. Nesse contexto político, como a hospitalidade pode ser praticada? E como fazer da ética um princípio norteador das políticas ligadas à imigração? São questões difíceis com respostas que, pode-se pensar, até impossíveis.

A proposta do estudo sobre a hospitalidade é tornar a acolhida um exercício que deve permear o pensamento e as ações humanas, em processos permanentes de hominização e de civilização.

Sandra Patricia Eder Comandulli –  Mestranda em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected]

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Os mestres da humanidade – JASPERS

JASPERS, Karl. Os mestres da humanidade. Coimbra: Almedina, 2003. 165p. Resenha de: CARVALHO, José Mauricio de. Argumentos – Revista de Filosofia, n.6, p.161-164, 2011.

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Idéias que mudaram o mundo | Felipe Fernandez-Armesto

A evolução, nas sociedades humanas, libertou-se dos constrangimentos do mundo natural e tornou-se essencialmente cultural ou mesmo, nos tempos atuais, basicamente tecnológica. Os seres humanos, eles mesmos, estão sendo mudados pelas técnicas de intervenção cromossômica e de manipulação genética (ou pelo menos existe capacidade potencial de fazê-lo). A despeito disso tudo, a humanidade continua a ser movida por sentimentos ancestrais, como o desejo sexual, o amor, o ódio, a vontade de poder e outros tantos impulsos mais ou menos nobres ou simplesmente mesquinhos.

Este livro, do conhecido historiador e professor na Universidade de Londres, identifica e explica quase duas centenas de idéias que influenciaram o destino da humanidade, desde 30 mil anos antes de nossa era até a atual era da incerteza. Atento em não parecer “ocidentalocêntrico”, o autor buscou em civilizações orientais conceitos e princípios que também se tornaram universais, mas ele reconhece que predominam as idéias ocidentais, pois são aquelas que moldaram o mundo tal como o conhecemos hoje. Também aceita que a maior parte das mudanças ocorridas no mundo tem origem intelectual e que as idéias são poderosos agentes transformadores. As idéias estão cronologicamente organizadas em sete partes, desigualmente distribuídas: o primeiro capítulo cobre vinte mil anos, na era dos caçadores primitivos, ao passo que os últimos dois séculos merecem um capítulo cada. Ainda assim, não devemos achar que só as idéias modernas são relevantes, pois a maior parte daquelas tidas hoje como importantes têm origens antiqüíssimas. Como ele diz na introdução, “é humilhante para o homem moderno admitir que uma parcela tão grande de seu pensamento foi antecipada há muito tempo e que a modernidade antecipou pouquíssimo a nosso equipamento intelectual básico”. Leia Mais

Os 100 Livros que mais influenciaram a humanidade: a história do pensamento dos tempos antigos à atualidade | Martin Seymour-Smith

Este livro é um bom exemplo de uma excelente idéia mal executada. Não me refiro a inadequações editoriais meramente, como o Sefiroth impropriamente impresso no comentário acerca dos Anais de Tácito (p. 152), que, suponho, não é um texto cabalístico (o Sefiroth aparece depois novamente, mas em lugar adequado, na p. 206), mas erros do autor na tentativa de executar a idéia proposta pela editora. Não se pode questionar a validade da idéia. Eu mesmo muitas vezes tive a iniciativa de listar os livros mais importantes de alguma área ou sobre algum assunto. Importa, no entanto, avaliar a execução da idéia, e é aí que os problemas começam a surgir.

Seymour-Smith privilegia obras da tradição filosófica, em detrimento de outras áreas como a literatura e as ciências humanas. Seu livro chega às vezes a se parecer com um compêndio de filosofia qualquer, até porque o autor, cometendo um erro grave, “força a barra” e considera, por exemplo, as obras completas de Aristóteles como um único livro, e depois faz o mesmo em relação a Leibniz. Assim, a dificuldade de escolher as cem obras mais influentes se esvazia inteiramente, e caminha-se em direção da escolha dos cem autores mais influentes, o que é outro projeto, bem mais comum e mais fácil, diga-se de passagem. Leia Mais