Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão | Gizlene Neder

Neste trabalho, Gizlene Neder centra suas atenções na história das idéias políticas e do poder na constituição do mundo moderno, tendo como referência a Península Ibérica. Procurando empreender uma análise que contemple a compreensão histórica e não uma explicação evolucionária, se propõe a deslindar uma série de aspectos que envolvem a trajetória histórica luso-brasileira.

Numa perspectiva dinamista de compreender o processo histórico, problematiza a modernidade trilhada pelos lusitanos, logo não fica presa à idéia de que as sociedades ibéricas são atrasadas ou inferiores em relação aos povos além-Pireneus. Aliás, para a autora, devemos é olhar a “escolha política” desses povos e, a partir daí, compreender os aspectos econômicos, sociais e jurídicos e suas possíveis implicações na contemporaneidade.

O momento escolhido é a segunda metade dos oitocentos, circunstância segundo a autora, em que o império luso-brasileiro foi arquitetado e encaminhado. A escolha desse período não teve a intenção de demonstrar o “momento” de passagem para uma outra ordem social, mas a de explorar aspectos de ruptura e continuidade na trajetória para a modernidade ocorrida na sociedade portuguesa e suas influências no Brasil.

Com o objetivo de explorar as rupturas e as continuidades ocorridas na sociedade portuguesa no caminho para a modernidade, argumenta que não devemos considerar que as permanências tradicionais sejam meros entulhos da sociedade tradicional a serem removidos pela “civilização”, mas componentes que imprimem suas especificidades na estrutura social luso-brasileira. Aliás, para a autora, “mais que ‘permanência’ de uma ordem tradicional, essa presença faz-se ativa nas formações inconscientes e seu raio de ação é muito maior e desconhecido do que imaginamos à primeira vista”.

A partir dessa questão mais ampla de passagem à modernidade, Neder abre uma seara na relação entre a história e o direito ao colocar em evidência o conteúdo das ideologias jurídicas. Neste ponto, vai realçar que a reforma pombalina, no que tange à formação jurídica, implicou um esforço de ruptura com a orientação aristotélico-tomista presente no direito romano e canônico, na medida em que introduziu o método compendado e sintético. Contudo, a renovação trazida nesse período não foi um movimento radical, de tal modo que não produziu efeitos de ruptura “com o viés autoritário e conservador do padrão de obediência e submissão, inculcado num sistema reprodutor escolar e universitário mimético e pouco criativo”.

Como Gizlene Neder trabalha com a idéia de que não houve ruptura do ponto de vista ideológico, político, entre Brasil e Portugal e de que, mesmo após a emancipação política de 1822, é possível identificar fortes laços que estabelecem um continuum, algumas indagações podem ser suscitadas. Será que há algumas permanências histórico-culturais do direito ibérico de modo geral, e do direito português de modo particular, nas práticas do pensamento jurídico no Brasil? Em que medida o arbítrio e as fantasias absolutistas de um controle penal-policial absoluto que povoam não só os operadores de instituições de controle social formais (polícia e justiça), mas toda a formação ideológica brasileira, têm no direito português e na tradição do absolutismo português uma matriz a ser mapeada?

Por isso, com a intenção de investigar os caminhos que levaram à modernidade ou às modernidades, começa analisando o processo de expansão portuguesa que se empreendeu a partir de várias anexações territoriais de um ponto de vista militar e religioso, tal como as exigências da reconquista. As possessões do ultramar passaram a ser assimiladas a Portugal como províncias ultramarinas, territórios readquiridos dos infiéis. Essa assimilação ocorreu dentro de um viés tomista (Tomás de Aquino), que reafirmou os princípios de uma ordem integrativa das partes no todo e uma visão social aristocrática e rigidamente hierarquizada.

Para a autora, quando as elites fizeram essa escolha não a fizeram por atraso, mas por uma opção auto-referente, culturalmente falando-se. E esse ideário não pode ser descartado quando tratamos do império luso-brasileiro. Interessante colocar em evidência que tanto em Portugal como no Brasil há um horror das elites aristocráticas em relação à radicalidade das inovações do mundo burguês, sobretudo em relação à idéia de contrato social e de secularização da sociedade.

Nesse ambiente, ocorre o fortalecimento do poder pessoal do monarca, apoiado na idéia de direito divino e legitimado pelo pacto da nobreza, através do juramento das cortes. O longo processo de estruturação institucional envolveu a elaboração de uma moldura jurídica, todavia, houve uma aproximação do absolutismo português com a Igreja através do estabelecimento da Inquisição em Portugal e da penetração das diretivas do Concílio de Trento. Para Neder, a partir desse momento, o “Estado português passaria a afirmar-se, portanto, na medida em que se fizesse, ele próprio, detentor da ortodoxia religiosa”.

Nessa aproximação do Estado português com a Igreja, a vida cultural embrenhou-se na direção de uma mentalidade eclesiástica ao ficar confinado nos limites da Contra-Reforma e na segunda escolástica, influenciada por Tomás de Aquino, adquirindo assim uma dimensão própria e se distanciando das outras sociedades européias. A filosofia não foi substituída pela teologia nos debates dos círculos intelectualizados, logo os humanistas não se constituíram em grandes nomes do saber, diferentemente dos homens das ciências “exatas”, deveras privilegiados.

Diante do processo de modernização ocorrido na segunda metade dos oitocentos, há todo um esforço de recuperar o ideário humanista quinhentista. Na reforma da Universidade de Coimbra é criada uma disciplina que deveria se dedicar ao estudo das instituições e da história do Direito do país. Nas teses sobre a origem do direito em Portugal, Neder argumenta que se deve trabalhar tendo em conta o processo histórico cultural de difusão, empréstimo e sucessivas apropriações entre o direito romano, o canônico e o germânico.

Nesta recuperação do quinhentismo é mencionada a ressurreição romana, mas considera-se que há uma continuidade das concepções jurídicas precedentes, tendo-se em vista que o humanismo não sobrevivera em Portugal porque seus seguidores seguiam sendo bartolistas – referência a Bartolo (1313- 1357), importante jurisconsulto glosador do período medieval. Por conseqüência, os efeitos foram muito mais de permanência do que de ruptura com as concepções jurídicas medievais.

No caminho percorrido pelo campo do direito nesse período, há um processo de ideologização, que leva à reificação da superioridade e perfeição do saber jurídico em relação aos outros campos de saber; perfeição esta que leva ao entendimento de que o mal não estaria nas instituições, mas sim nos homens. Na opinião de João de Barros, um destacado quinhentista, a constituição humana corrompia a aplicação da justiça. Em suma, para esses pensadores do Séc. XVI, o “direito continuava ser o que era, isto é, uma evolução natural do que estava consolidado na época medieval e, portanto, incorporado na atividade dos juízes, advogados, tabeliães e funcionários”

Podemos inferir que, embora tivessem existido vários pensadores no período quinhentista que procuraram adotar diretrizes novas no ensino do direito, eles se depararam com a censura e a existência de um ambiente de hostilidades. Eram fortes as resistências em relação a idéias que propugnavam um estudo que se servisse de outras ciências para explicar o direito das idéias, de que seria importante saber qual o sentido da norma e não o que dela diriam os intérpretes, de que o conhecimento humanista deveria ser contemplado, de que a verdade deveria ser alcançada através da revisão crítica, e a disciplina da lei e do direito devia ser buscada no âmago da filosofia.

Na segunda parte do trabalho as atenções se voltam para o poder, as idéias jurídicas e a cultura, no momento em que a sociedade lusitana vai passar por profundas transformações devido à modernização empreendida pelo governo de Pombal. Os estrangeirados, que ficaram no ostracismo durante os reinados anteriores, passaram a ter controle sobre as políticas; mais ainda, possuíam um programa de governo que visava eliminar todas as formas de contestação a um estado em vias de secularização.

O programa colocado em prática por Pombal visava a aumentar o poder e a eficiência do Estado e suprimir a presença hegemônica da Igreja, porém não tocava na estrutura da sociedade. Do ponto de vista ideológico, político e social implicou numa inserção econômica no mercado mundial, mas na manutenção de um padrão de controle social rígido e hierarquizado, distante do ideário das Luzes, ou seja, excludente e bem afastado dos regimes burgueses modernos.

As elites adotaram o racionalismo, o utilitarismo e o realismo, mas mantiveram a concepção de poder absoluto nos moldes autocráticos e personalistas do absolutismo do século XVII. Por sua vez, os religiosos, através dos oratorianos se concentraram sobretudo nos setores educacional e cultural, e com isso não ocorreu um abrandamento dos controles exercidos pela Igreja.

Nesse contexto em que a política iluminista faz uma ampla reforma na justiça para se tornar mais eficaz, Pascoal de Mello Freire foi o ideólogo das reformas pombalinas no campo jurídico e destacado jurisconsulto. Tinha um concepção iluminista e modernizadora, principalmente no campo do direito criminal. Contudo, suas obras apresentavam formas de pensamento ainda ligadas ao passado, na medida em que apresentava uma visão de realeza sendo “pia” e “generosa”. Um dos seus trabalhos foi escrito em latim, possuía uma idéia de infalibilidade e de perfeição do direito e das leis, formulações estas que podem ser encontradas no segundo escolasticismo e na visão tomista.

Esse ideário se reproduziu no Brasil, seja através da presença de vários juristas brasileiros que se formaram em Coimbra e foram alunos de Pascoal de Mello Freire seja através da existência de inúmeros juristas portugueses trabalhando no território brasileiro até meados do Séc. XIX. Portanto, a compreensão do absolutismo português e seus desdobramentos na prática social e ideológica brasileira é de suma importância para entendermos as formas de disciplinamento e controle social realizadas em território brasileiro.

Se alguns autores colocam o Código Criminal de 1830 como um marco de modernidade, a autora argumenta que devemos relativizar essa afirmação, na medida em que foi inspirado no projeto de Mello Freire e os bacharéis a quem atribuíam a construção da ordem eram expoentes de uma classe que se sustentou na base do açoite. E no quadro de valores escravistas, a noção de ordem sobrepunha-se à de justiça, com a expectativa de obediência passiva.

Em suma, para Gizlene Neder o viés ilustrado dessa elite assentava em uma postura pragmática, pois se afinava com os pressupostos teóricos e ideológicos da modernidade do centro hegemônico mundial, mas jamais se dispunha a abrir mão, em nome das “Luzes”, de sua posição aristocrática. Para finalizar, cabe refletirmos sobre a existência da idéia de um mundo imutável na sua essência e rigidamente hierarquizado, que parece rondar a sociedade lusobrasileira como o fantasma de Hamlet.


Resenhista

Rivail Carvalho Rolim – Professor do Departamento de História da UEM-PR e Doutorando em História Social na UFF-RJ.


Referências desta Resenha

NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. Resenha de: ROLIM, Rivail Carvalho. Diálogos. Maringá, v.5, n.1, 221-225, 2001. Acessar publicação original [DR]

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