Imagem Contestada – A construção da história pela escrita do Diário da Tarde (1912-1916) | Karina Janz Woitowicz

A obra Imagem Contestada – A construção da história pela escrita do Diário da Tarde (1912-1916), publicada em 2014 pela Editora UEPG, é resultado da dissertação de mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, defendida pela jornalista Karina Janz Woitowicz em 2002. O livro, que recebeu o segundo lugar no 57º Prêmio Jabuti, na categoria Comunicação, é dividido em nove capítulos e tem como objetivo fazer a análise discursiva do jornal paranaense Diário da Tarde durante os anos de 1912 a 1916, período que envolve a Guerra do Contestado, ocorrida entre os estados de Santa Catarina e Paraná.

Por meio da Análise de Discurso procurou-se perceber, em cerca de 170 exemplares do jornal, quais as vozes e os posicionamentos tomados pelo periódico durante o acontecimento citado, reconhecendo um trabalho simbólico cotidianamente desenvolvido pela imprensa, em seu processo de construção do real e em seu “dizer” jornalístico.

Junto a um referencial teórico que sustenta a metodologia escolhida, a pesquisa estabelece diálogo com as teorias do jornalismo e também levanta elementos para entender o papel do jornalismo no processo de escrita da história. Ao resgatar os momentos e posicionamentos de atores sociais envolvidos no conflito, se propõe a desvendar o papel do jornalismo na construção de imagens da realidade, seja por esclarecer e ecoar os fatos, ou por silenciá-los. Há, por isso, um entrelaçamento entre comunicação e história, na reconstrução de fragmentos que permitem uma leitura histórica do jornalismo sobre a Guerra do Contestado.

Considerando o teor simbólico de anunciabilidade de fatos pelo jornalismo, que representa uma forma de construção histórica e social da realidade, é descrita de maneira breve a história do jornalismo do início do século XX a fim de contextualizar o leitor nesse universo, enfatizando a linguagem como forma de construção da vida cotidiana. Nesse sentido, a imprensa ganha destaque por operar de diversas formas, motivações e perspectivas, na construção do real. “É no reconhecimento da capacidade da imprensa de produzir sentido sobre os fatos, angulando-os e contextualizando-os, que se pretende observar as principais características do caso da imprensa do Contestado” (2014, p.30).

Ao conceber o jornalismo como um produtor de discursos sociais, a autora compreende a imprensa como um tipo de conhecimento social estabelecido como realidade partilhada entre os indivíduos. Conceitos de Eliseo Verón e Michel Foucault ajudam a apreender tais discursos determinados pelo contexto sócio- -histórico, que mostram nos modos de dizer, interagir e seduzir de um jornal os motivos que o orientam. Assim, a produção de sentidos exercida pelos media demonstra influência marcante na escrita e na assimilação pública dos acontecimentos.

Nesse momento o jornalista é visto como construtor da realidade, que leva em conta o mundo real e seu enquadramento em um mundo de referências que foi selecionado e constituído por elementos de valoração. Seguindo esse apontamento, a historicidade do texto, em sua materialidade, carrega as marcas de uma época “pelo que representa enquanto objeto de uso social ou pela sua própria atuação no campo polêmico em que conflitam diversos posicionamentos, instituindo significados em um contexto determinado” (2014, p.57).

De acordo com a pesquisa de Woitowicz, no Paraná, a imprensa vai aparecer em 1854 sob o nome O Dezenove de Dezembro, com circulação aos sábados. É somente em 1884 que ele se torna diário. Cinco anos mais tarde é fundado o Diário da Tarde. Em 1912, sob a administração de Jayme Ballão, o jornal possui tiragem estimada em cerca de dois mil exemplares e oito páginas.

É entre os anos de 1913 e 1914 que o jornal assume notadamente preocupações de interesse “popular”, de acordo com o livro. Cartas e opiniões diversas dos leitores passam a ser publicadas e o posicionamento do jornal se torna mais claro. Posteriormente, o jornal assume perfil literário-noticioso e amplia a participação de colaboradores. A autora explora os espaços criados pelo jornal para demonstrar a interação com o público, que também se torna relevante produção simbólica e faz transparecer as imbricações entre público e a atividade da imprensa. Em relação ao conflito, o movimento observado considerado mais expressivo da atuação da imprensa sobre os acontecimentos é o lançamento de uma campanha a favor dos sertanejos2 , registrado nas páginas do jornal como uma ação pacificadora.

Ao discutir a representação dos sertanejos na imprensa paranaense, emerge um ponto de vista científico, envolto em autoridade, que entende a raça como uma herança étnica que poderia interferir negativamente no destino dos povos. O discurso racial manifesto nas páginas do Diário da Tarde surge implicitamente, quando sugere uma supremacia da raça branca e estereotipa o caboclo como um mestiço inculto e criminoso:

Assim, a insistência em argumentos que detonam a inferioridade do sertanejo em seus atributos de criminalidade, ignorância e fanatismo percorrem os textos jornalísticos, explicitando as marcas de um pensamento hegemônico condizente com as tendências da intelectualidade brasileira no período. (2014, p. 95)

Os modos subliminares como os sertanejos ganham voz no jornal também são significativos na análise, reiterando denominações que constroem um sentido “natural” para a imagem negativizada do sertanejo ao longo da história. Entretanto, com a evolução dos conflitos, a construção simbólica dos sertanejos e do movimento político e messiânico não permanece estável durante todo o processo. Ele recebe novos elementos que vão reafirmar ou negar os dizeres anteriores. Essa “migração de sentidos” realizada a partir de mecanismos e estratégias discursivas está presente na singularidade, segundo a autora, que buscou significar as origens e a situação dos sertanejos e integrantes do movimento. Com isso, o jornal paranaense produz interferências na sociedade pela produção de sentidos.

Na sequência, o discurso nacionalista presente no Diário da Tarde ajuda a construir esse campo simbólico de projeções e construções acerca do conflito. Partindo de alguns elementos do pensamento social, como a transição da Monarquia à República, o debate sobre a nação é explorado, pois ocupa o jornal ao aproximar o pensamento hegemônico traçado pelas forças dominantes e expressar a idealização dos militares como representantes da ordem e da justiça.

É o discurso enaltecedor da nação que recebe destaque no periódico, cultuando o exército e a glória militar, contribuindo na formação de um imaginário coletivo reforçado por elementos da identidade e da tradição. É nesse cenário em que militares são tomados como heróis que o jornal “constrói um espaço para “dizer” a realidade, a partir de enfoques e angulações já dadas” (2014, p.130). O ponto destacado é a forma como a morte do General João Gualberto, o grande “herói do Contestado” é retratada. Maneira que se diferencia do tratamento dado à morte do Monge José Maria, que também caiu no primeiro conflito, em 1912.

Para tratar do messianismo como tema de construção discursiva, questões relacionadas à religiosidade sertaneja são também apresentadas no livro. O discurso demonstra a produção simbólica sobre o sertanejo, que é concebido como fanático. Fazendo relação com obras do pós guerra e depoimentos que registram os elementos pertencentes à essa religiosidade, o que surgem são lacunas da voz do “outro lado”. Denominado catolicismo rústico, essa religiosidade cabocla é evidenciada pelos personagens dos monges – João Maria de Agostini, João Maria de Jesus e José Maria – e envolve o início dos conflitos, pois é a partir da morte do terceiro monge citado que as disputas são, de fato, travadas. Nesse momento em que tradições populares começaram a ser proibidas pelo controle policial, como parte do processo de urbanização e desenvolvimento nacional, a religiosidade popular também passa a ser contestada. Com isso, algumas nuances ficam evidentes: “a divergência existente entre a racionalidade republicana e o modo de vida do caboclo ou, em outros termos, a incompreensão e o desprezo das elites em relação aos pobres” (2014, p.155).

O processo de inscrição dos monges, seguidores e padres recebem diferentes caracterizações ao longo do conflito, que começa em uma descrição curiosa e se desloca de “santo para revolucionário, e desta para bandido” (2014, p.158). Sobre seus seguidores, sobressaem sentidos de ignorância e incultura, que justificam o fanatismo da população. Aos poucos é estabelecido também um diálogo com a Igreja Católica, presente no jornal como uma tentativa de esclarecer a população sobre os perigos do catolicismo rústico. Ao mesmo tempo as crenças são ironizadas e os objetos utilizados pelos fanáticos, bem como as orientações dadas por videntes, começam a aparecer ora como elementos que complementam as notícias, ora como evidências detalhadas sobre o “atraso” dos sertanejos. O caminho percorrido possibilitou uma ordenação social que “coloca em relação e em circulação dizeres autorizados e dizeres anônimos, dando a ilusão de consensos ou dissensos polarizados em meio às falas que permeiam a temática da religião” (2014, p.179). Dessa forma, a religiosidade é construída e integrada a um pensamento social desvinculado dos verdadeiros anseios sertanejos.

Expressões de várias questões e polêmicas contextuais motivam a análise, que se movimenta entre falas e interesses. A cultura sertaneja e sua contestação social – envolta pelo sentimento de movimento milenarista3 -, a luta pela terra, a exploração das empresas estrangeiras (Lumber e Brasil Railway Company) e os valores presentes na política do movimento do Contestado são alguns exemplos de disputa de sentidos travada no jornal.

A observação dos componentes textuais e contextuais, por exemplo, ajudam a compreender como valores e impasses de poder entram em tensão e constituem um campo polêmico de posicionamentos distintos: o texto que pauta a exploração dos trabalhadores das empresas estrangeiras confronta-se com outro texto que revela o progresso trazido por ela para toda região.

Outra situação importante para a análise é a discussão sobre os limites “contestados” entre os estados do Paraná e Santa Catarina, recorrente no Diário da Tarde e em outros jornais do período, que produzem debates envolvendo o conflito:

A constante referência à temática dos limites interestaduais, ora preenchendo os jornais de vida política e sentidos latentes, ora sendo tomada pelo periódico para cobrar soluções e nomear possíveis culpados, mostra a pluralidade de expressões que […] são preenchidas de “valores de verdade”. (2014, p.217).

São encontradas no jornal afirmações dispares, além do deslocamento de posições, que fazem emergir o sentido de pluralidade a que o conflito estava inserido: entre fanatismo, questões sociais ou disputa territorial.

A identidade paranaense é outro discurso explorado para orientar e promover simbolicamente a ideia de consenso sobre a questão, como uma opinião pública, de que o território pertencia ao Paraná. Ao mesmo tempo é reforçada a dicotomia entre “nós” – paranaenses – e “eles” – catarinenses.

As diversas maneiras de “contar” a realidade da Guerra do Contestado mostra como se figura a relação entre o acontecimento e a discursivização do processo jornalístico da imprensa. São três as formas destacadas pela obra: produção de relatos e informes de guerra, posicionamento do jornal sobre os encaminhamentos do conflito e o debate promovido na, ou pela, imprensa em torno de questões e versões diversas. É na repetição das notícias, sempre com enfoque opinativo, que os fatos sobre a guerra assumem ampla repercussão, e é por essa prática que o jornal produz um acontecimento e, por isso, constrói história. A presença das vozes oficiais, representadas pela força do exército e da polícia, são suportes fundamentais para uma “verdade histórica” produzida e veiculada, que ultrapassa os limites da informação:

Oficialidade, parcialidade, interesses. Estes três elementos – entre vários outros, certamente, presentes nos textos jornalísticos do Diário da Tarde “agiram” na produção de sentidos no período da Guerra do Contestado, estabelecendo uma constituição mútua entre as práticas discursivas e as práticas históricas. (2014, p.301-302)

Por fim, o livro Imagem Contestada ressalta o papel do jornal na memória coletiva e na história de um povo ou região. Assim, entende que fazer jornal é fazer história. É pela maneira de informar, pela escala de valores e pela seletividade interpretativa que a “magia” dessas construções sócio históricas age. Quando o jornal paranaense Diário da Tarde, enquanto campo polêmico, elabora um “lugar” para produzir sentido, atua no universo social cotidiano e contribui para formação de uma opinião pública. É este processo que o livro em questão procura desvendar, ao articular diferentes perspectivas em torno dos discursos que ecoam no jornal.

Notas

2 População cabocla que habitava a região de Santa Catarina durante o período.

3 Movimento religioso baseado na Bíblia que anuncia o regresso de Jesus Cristo e o final dos tempos como forma para alcançar a salvação.


Resenhista

Elaine Schmitt – Mestranda em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

WOITOWICZ, Karina Janz. Imagem Contestada – A construção da história pela escrita do Diário da Tarde (1912-1916). Ponta Grossa: Editora UEPG, 2015. Resenha de: SCHMITT, Elaine. Vozes sobre o Contestado. Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.5, n.1, p.179-181, jan./ jun. 2016. Acessar publicação original [DR]

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