Império Português em Perspectiva: Sociedade, Cultura e Administração (XVI-XIX) | Ars Historica | 2016
Para um pesquisador da história do império português é difícil imaginar um prazer maior do que fazer a apresentação de um dossiê de uma revista discente sobre o tema. E isso porque a própria existência desse dossiê é a comprovação cabal de como o estudo do “Mundo Português” se espraiou na academia, um quadro quase inimaginável há pouco mais de duas décadas atrás, quando surgiram os primeiros trabalhos realizados no Brasil. O próprio termo “império”, hoje absolutamente consolidado em nossa historiografia, foi por muito tempo objeto de questionamento.
Nesse número de Ars Histórica encontramos uma produção historiográfica extremamente diversificada, tanto em termos temáticos quanto geográficos e temporais, sinal inequívoco da vitalidade dessa área de pesquisa.
No campo da história política, cabe destacar o artigo de Fernanda Pissurno sobre a candidatura de D. Catarina, duquesa de Bragança, ao trono de Portugal. Temos aí uma análise cuidadosa do contexto que levará à União Ibérica.
Uma história social de Portugal moderno aparece nos textos de Alexandre Rodrigues de Souza e Cayo de Annis Mariano Teixeira. No primeiro, há um interessante estudo sobre a regulamentação da prática da prostituição no reino tendo por base as ordenações (afonsinas, manuelinas e filipinas), mas englobando também alvarás, circulares e editais régios. As transformações ocorridas nesse longo período são analisadas com cuidado, tendo como pano de fundo as mudanças operadas pela contrarreforma. O segundo texto trata do tema do abandono de crianças e a legislação sobre o tema. Como no primeiro caso, temos aqui uma história social imbricada com a história política, já que a legislação ganha novamente destaque.
Um tema em franca ascensão nos estudos sobre o império português é o da religiosidade. Tema da maior importância, se tivermos em conta que a religião não era, como hoje, apenas uma parte da vida social, mas um verdadeiro amálgama, a dar sentido ao todo, explicando, ordenando e justificando o mundo em que se vivia. No dossiê, o mesmo aparece no texto de Felipe Rangel sobre o “curandeiro” mestiço Pedro Rodrigues. Religião e escravidão se combinam, servindo a trajetória de Pedro tanto como um exemplo da mistura entre práticas portuguesas e africanas quanto como demonstração da preocupação da hierarquia católica com as práticas “pagãs”. A relação entre escravidão e religião aparece também no artigo de Leonara Delfino sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João Del Rei. O foco, aqui, são as disputas internas ao grupo, sem deixar de fora, no entanto, o contexto mais amplo em que os irmãos se veem envolvidos. Jorge Henrique Leão, por sua vez, debruça-se sobre o apostolado laico na Índia e no Japão quinhentistas, forma encontrada pelos jesuítas para melhor evangelizar em regiões que estavam além do domínio português.
José Pereira debruça-se sobre as cartas de Manoel da Nóbrega, analisando de que forma sua correspondência esteve marcada tanto pela preocupação com a conversão do gentio quanto por uma concepção especifica de mundo, moldada por sua formação jesuítica. O texto de Luiz Pedro Filho tangencia o tema da religião ao referir-se à expulsão dos jesuítas de São Paulo e a negociação para seu retorno. Aqui temos, por trás de um tema aparentemente religioso, uma história política que tem por base o poder local, outro tema candente em nossa historiografia.
Júlia Aguiar busca, em seu texto, recriar as redes de relações existentes entre senhores e escravos, demonstrando assim que a escravidão não se baseava somente na violência, mas também na existência de acordos e alianças, elementos fundamentais para a sua manutenção ao longo do tempo.
A expansão portuguesa ao redor do globo e suas múltiplas mestiçagens conviviam com uma classificação racial baseada nas noções de pureza e impureza de sangue, sendo considerado puro somente o sangue daqueles não-mestiços (o termo branco não era então utilizado) que eram, ao mesmo tempo, cristãos-velhos. Todos os demais eram considerados contaminados. Os ciganos foram dos primeiros a sofrerem os efeitos dessa classificação, como mostra o texto de Natally Menini. O estudo da discriminação de que foram alvo nos ajuda a entender não somente os próprios ciganos como a sociedade portuguesa em geral, e a maneira como lidariam posteriormente com os múltiplos povos com que entrariam em contato. Analisando o cerimonial de entrada do bispo Dom Frei Antônio do Nascimento no Rio de Janeiro, Lucas Nascimento realiza uma instigante análise dos padrões de classificação social do Antigo Regime português, mostrando como o cerimonial confirmava e projetava as hierarquias sociais preexistentes.
Gabriel Gaspar, ao analisar os comentários de Fernando José de Portugal ao regimento dos governadores-gerais realiza uma interessante discussão sobre as práticas políticas portuguesas na segunda metade do setecentos, período marcado por importantes transformações nas formas de atuação da monarquia lusitana.
Por fim, cabe mencionar a resenha de Alex Silva sobre o livro de Grayce Souza. O estudo dos agentes da inquisição na América portuguesa é um tema da maior importância, dada a capilaridade que a instituição alcançou nessa sociedade. Além disso, ajuda-nos a entender melhor temas como a classificação social e a pureza de sangue, mencionados acima.
Tantos e tão diversos trabalhos, realizados por alunos de diferentes programas de pós-graduação, são a demonstração de que os estudos sobre o império português contam ainda com uma longa estrada pela frente e, o que é mais importante, cada vez mais ampla.
Organizador
Antonio Carlos Jucá de Sampaio – Professor Associado de História do Brasil do Instituto de História da UFRJ e pesquisador do CNPq.
Referências desta apresentação
SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Apresentação. Ars Historica. Rio de Janeiro, v.13, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]