Independência e instrução no Brasil, Chile e nos Estados Unidos da América (XIX E XX) | História da Educação | 2021

Pensar os projetos nacionais associados aos processos das independências tem sido uma temática recorrente na historiografia, no ensino de história, na literatura, no jornalismo, no cinema e nas artes plásticas; dentre outros. As formas de representações deste acontecimento podem ser encontradas em diversas experiências nacionais, com recortes e ênfases mais frequentes na história política, econômica, militar e/ou diplomática. Algumas dimensões dos processos de independência, como a problemática da educação das populações, são frequentemente explicadas como efeito destas políticas do saber histórico, quando não são completamente negligenciadas. Com base nessa percepção, foi organizado o Seminário Internacional Independência e Instrução na América e África – história, memória e formação, realizado entre 11 e 20 de outubro de 2020 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, contando com a participação de pesquisadores da Espanha, Portugal, Moçambique, México, Colômbia, Uruguai, Estados Unidos, Argentina e Chile. O presente dossiê, consiste, pois, em um dos registros escrito desta atividade1 que, em linhas gerais, partiu de um complexo questionário, a saber:

Como se processaram as independências em países da América?

Que relações foram estabelecidas entre os projetos de nação e os de formação das populações?

Que iniciativas foram tomadas em diversos países e regiões para consolidar as complexas experiências nacionais?

Como ocorreram os processos que promoveram a autodeterminação de regiões específicas e de suas populações?

Como a temática da emancipação marcou (e marca) a história dos países e a instrução/educação dos povos?

A proximidade da efeméride do bicentenário da independência política do Brasil, a ocorrer em 2022, recoloca estas importantes e complexas questões que, longe de estarem restritas ao acontecimento da emancipação e suas celebrações, contribuem para definir, organizar e reconfigurar a geopolítica da educação e da pedagogia em escala nacional e transnacional.

Nesse dossiê, a centralidade da reflexão gira em torno da problemática da formação do povo nos processos emancipatórios, considerando diferentes estratégias mobilizadas para constituir a noção e sentimento de pertencimento comum em termos de língua, moeda, fronteiras, deslocamento de pessoas e produtos, defesa, diplomacia, educação e instrução; por exemplo. Deste modo, trabalhamos com os debates e iniciativas a respeito da educação presentes nos projetos organizados em três países da América. Trata-se dos casos do Brasil, Chile e Estados Unidos. Com isso, operamos com a hipótese de que, apesar das diferenças, é possível localizar marcadores semelhantes quando se trata dos projetos nacionais e das medidas educativas. Para explorar esta hipótese, analisamos políticas locais, ação de lideranças letradas, celebrações e as representações dos processos de emancipação contidos em impressos e outros materiais produzidos nos três países estudados.

No caso dos países da América que integram este dossiê, os estudos apresentam recortes que permitem perceber homologias intrigantes, ainda que, por vezes, apareçam descritos como acontecimentos específicos, exclusivamente nacional.

No caso do Chile, Pablo Toro-Blanco aborda um episódio de promoção do nacionalismo e do patriotismo no sistema educativo chileno, por intermédio do qual estuda as iniciativas desenvolvidas para construir estética e afetivamente o sentimento patriótico no contexto das celebrações do Centenário da Independência do Chile (1910). Estas iniciativas tinham a característica de integrar as dimensões internas do espaço escolar ao espaço público por meio de atos de conteúdo público, desfiles, marchas e outros dispositivos destinados a afetar os estudantes e o público, galvanizando a convicção no papel da escola como uma resposta à crise da identidade nacional e à questão social.

No caso dos EUA, Jerry Dávila analisa momentos na história dos direitos civis durante o período da escravidão e no tempo do pós-abolição, considerando o papel do judiciário e seus vínculos com questões de acesso e igualdade na educação. O artigo problematiza, ainda, as maneiras com que a noção positivista de um avanço contínuo dos direitos tem coincidido com projetos de comemoração, memorialização e romantização do passado escravagista, bem como de figuras ligadas à defesa da escravidão e da segregação racial.

A experiência brasileira, por sua vez, é tratada em 4 artigos nos quais os autores retomam aspectos gerais das indagações referidas.

Sonia Araujo reflete sobre independência e educação no Brasil a partir da história da região do Grão-Pará, ocorrida entre 1755-1840. A autora reconhece serem essas múltiplas histórias, geradoras de realidades que resultaram em condições políticas, econômicas e educacionais assimétricas, fundamentais para compreensão de uma “independência perdida”. Em face disto, focaliza o ideário do movimento cabano, considerado uma guerra de Independência tardia, e um acontecimento importante na recondução da liberdade política que não se efetivou de modo homogêneo no vasto território que se queria nacional.

Lucia Bastos focaliza a proliferação de panfletos políticos e periódicos, instrumentos de intervenção, concebidos como um espaço público novo, destinado a acolher e fomentar os debates entre as diferentes correntes de opinião presentes na sociedade pré e pós-independência. Dessa maneira, o principal objetivo dos impressos consistia na transformação dos indivíduos em cidadãos, para que, após a elaboração de uma Constituição, pudessem atuar no jovem país. Convertiam-se, por conseguinte, quando lidos, privadamente ou em voz alta, em uma pedagogia cívica. Neste artigo, a autora buscou identificar o sentido das mensagens que portavam, relacionando-as às linguagens políticas em voga; avaliar a possível ressemantização dos conceitos-chave que empregavam; esclarecer a retórica da argumentação a que recorriam com o intuito de dirigir a conduta daqueles que consideravam como povo e, por fim, apontar os fatores que limitaram ou inviabilizaram o alcance destes impressos entre 1821-1824.

José Gondra localiza e acompanha os escritos do Visconde de Cayru, de modo a perceber os tons e contra tons dos debates a respeito dos rumos do projeto de construção da nação brasileira. Neste artigo, explora uma de suas manifestações, que aparece difusamente ao longo da sua produção, mas que ganha centralidade em dois de seus livros: Nestes dois documentos, José da Silva Lisboa, o Visconde baiano, reforça a tese da religião de Estado, fazendo da história uma espécie de mestra da vida, fonte dos argumentos em favor da articulação e indivisibilidade entre ciência e revelação, condição para se atingir uma civilização mais elevada, cujo melhor exemplo, para o letrado e homem do Estado, poderia ser verificado na experiência da Grã-Bretanha. Para ele, outorgada a Constituição do Império do Brasil, em 1824, cabia fixar e expor as sólidas bases da “Constituição Moral e Deveres dos Cidadãos”, condição necessária para formar os bons costumes, verificável em todos os povos de considerável grau de civilização. Para tanto, cabia oferecer ferramentas confiáveis para que o projeto brasileiro ao qual aderira não corresse os riscos que percebe nas experiências francesas e do Haiti.

No último artigo com recorte na experiência brasileira, Carlos Eduardo Vieira analisa a relação entre os conceitos de independência, democracia e formação no discurso da Associação Brasileira de Educação (ABE). Toma como fontes documentos produzidos pela referida associação, especialmente os anais dos eventos promovidos pela entidade entre 1927 e 1945. A ABE representa a primeira entidade nacional organizada especificamente para debater e propor projetos para a educação nacional, tendo à frente uma intelectualidade representativa dos mais destacados nomes da cultura científica, pedagógica e literária. O autor considera os eventos da ABE momentos privilegiados para flagrar o discurso educacional, uma vez que esses encontros tiveram abrangência nacional e reuniram alguns dos principais protagonistas desse debate, fossem eles personagens consagrados ou sem notoriedade no campo educacional. Não obstante, embora em posições diferentes, esses atores linguísticos interagiram no processo de produção de um jogo de linguagem, que caracteriza e define as principais questões em disputa no campo educacional na primeira metade do século XX. Operando a partir da perspectiva da história dos conceitos e do contextualismo linguístico, buscar avaliar como os termos independência nacional e democracia foram articulados à questão da formação do povo brasileiro. Trabalha, por último, com a hipótese que a defesa da independência nacional, amparada na formação cívica e patriótica do povo brasileiro, não esteve relacionada como a formação de uma consciência e de uma sociedade democrática para o país.

O conjunto das investigações aqui reunidas analisa pontos relevantes e inflexões processadas ao longo do processo de independência nos três países estudados e, de modo especial, aquilo que se promove no campo da educação com vistas a organizar, assegurar, legitimar e manter os projetos nacionais em curso, nas quais a retórica da civilização, moral e progresso parecem ter orientado ações nos países estudados, ainda que a lógica evolutiva contida nesses pilares tenha esbarrado em obstáculos e projetos marcados por profundas desigualdades em termos de gêneros, raças, crenças e condições sociais e culturais das populações embaladas (e iludidas) pelas retóricas da igualdade e da emancipação.

Nota

1 Um outro registro pode ser conferido no dossiê organizado por Pasche e Cury (2020). Os registros audiovisuais do evento podem ser conferidos em https://www.youtube.com/user/nepheuerj/ Acesso em 1 fev. 2021. No prelo, ainda derivado desta iniciativa, encontram-se o livro organizado por Limeira, Silva e Gondra e um terceiro dossiê, a ser publicado na revista Pro-posições, organizado por Silva (no prelo)

Referências

LIMEIRA, Aline de Morais; SILVA, Edgleide de Oliveira Clemente; GONDRA, José Gonçalves (org.). Independência e Instrução no Brasil: História, memória e formação (1822-1972). Rio de Janeiro: EDUERJ (no prelo)

PASCHE, Aline de Morais Limeira; CURY, Cláudia Engler. Dossiê: Processos de emancipação e educação na América. Revista Brasileira de História da Educação, v. 20, n. 1, p. e119, 24 jul. 2020.

SILVA, José Cláudio S. (org.) Dossiê: Tempos de Educação e de Celebração: sobre lições, ensinamentos e outros esforços para fixar as histórias de independência e de projetos de nação na América, Europa e África”. Campinas/UNICAMP. Pro-posições (no prelo)


Organizador

José Gonçalves Gondra – Sócio fundador da Sociedade Brasileira de História da Educação, tendo sido eleito vice-presidente da mesma para o biênio 2010-2011 e reeleito para o biênio 2012-2013. É consultor ad-hoc de periódicos especializados, editoras e agências de fomento. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história da educação brasileira, educação no império, história da infância e historiografia. É pesquisador da FAPERJ no programa Cientista do Nosso Estado, do PROCIENCIA UERJ/FAPERJ e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: [email protected]  http://orcid.org/0000-0002-0669-166


Referências desta apresentação

GONDRA, José Gonçalves. Apresentação. História da Educação. Santa Maria, v. 25, 2021. Acessar publicação original [DR]

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