Instituições, poderes e magistrados no mundo luso-brasileiro. Séculos XVIII e XIX | Temporalidades | 2014

Iniciativa dos alunos do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, a revista Temporalidades chega ao seu 12º número, consolidando mais um espaço de debate acadêmico. Afinado com as mais novas tendências teórico-metodológicas, este número traz o dossiê “Instituições, poderes e magistrados no mundo luso-brasileiro. Séculos XVIII e XIX”. Depois de um longo ostracismo, relegado a um lugar secundário nos estudos históricos, o tema da administração conquistou definitivamente o centro das atenções dos estudiosos. Já não se trata mais de privilegiar a administração como mera descrição do funcionamento das instituições, consideradas de uma perspectiva funcionalista, mas, ao contrário, de problematizá-las como instâncias de reprodução do poder, fundamentais para o entendimento das relações políticas no âmbito do Império português. Se durante muito tempo, elas foram vistas como vetores-chave para a execução das políticas emanadas de Lisboa, curvando-se passivamente a elas, hoje, as instituições apresentam outra feição: a exemplo das câmaras municipais, tiveram um papel ativo no diálogo entre centro e periferia, expressando os interesses dos grupos locais, posicionando-se ativamente em favor desses interesses.

Os novos enfoques renovaram o estudo das instituições e abriram um novo campo de reflexão histórica, superando a velha dicotomia entre sociedade e administração, o que possibilitou trazer à luz o exame das trajetórias individuais, a atuação dos grupos sociais na disputa pelos cargos administrativos e a constituição de redes que se estendiam desde as mais distantes regiões até os centros políticos. Os novos métodos da prosopografia permitiram, por exemplo, estabelecer o perfil dos agentes da administração, as suas origens sociais, as trajetórias administrativas, as solidariedades de grupo, as suas relações com a sociedade local. Estudos como o de Antônio M. Hespanha colocaram em xeque a noção de que os textos legais e jurídicos constituíam entidades cristalizadas e impermeáveis, apontando, em sentido contrário, para o seu caráter dinâmico e polissêmico, sujeito às mais diferentes formas de apropriação pelos grupos locais. É esta característica que explica, em grande parte, o fosso entre a norma e a prática, entre a letra morta da lei e a práxis cotidiana dos agentes da administração, particularmente no contexto da América Portuguesa, onde a distância, entre outros fatores, conferiu-lhes uma grande autonomia. Imersa na sociedade em que atuava, a grande maioria sucumbiu ao processo de cooptação pelas elites locais, participando ativamente de seus conflitos e disputas, valendo-se, para isso, do prestígio e da autoridade dos cargos que ocupavam. Alguns estudos vêm chamando a atenção para a força dos códigos extra-oficiais, que, exteriores à ordem jurídica vigente, pautavam-se em noções e valores específicos, partilhados por algumas minorias, e que por vezes legitimavam a prática dos funcionários da administração. A constatação da existência de sistemas de valores distintos e concorrentes, estabelecendo normas de conduta diferentes, abre caminho para se pensar como os diferentes padrões podiam ser manejados de forma alternativa, de acordo com os interesses de determinados grupos, reportando-se assim, ao sistema de valores mais adequado em determinadas circunstâncias. De uma perspectiva muito semelhante, é possível problematizar até que ponto a solidariedade de grupo, a força das redes de clientela e o peso das alianças influenciaram decisivamente na práxis dos funcionários e agentes administrativos, legitimando aos seus olhos, o distanciamento deliberado das normas.

Todas essas reflexões relativizam as velhas teses que postulavam a identidade entre institucionalização e estruturas de poder a serviço do Estado. Bem mais complexa e fluida, a realidade que os historiadores têm desvelado em suas fontes nos obriga a refinar os nossos conceitos, ensaiar novos métodos de análise, testar novas abordagens. É este o espírito que anima os estudos de Nuno Camarinhas, professor da Universidade Nova de Lisboa e autor de uma série de trabalhos sobre a justiça e os magistrados no mundo luso-brasileiro, durante a Época Moderna. Na entrevista que deu à Temporalidades, ele fala de seu percurso intelectual, das suas preocupações como pesquisador e da sua contribuição aos estudos sobre a administração.

Compõe o dossiê o artigo “Nos bastidores da administração colonial – o papel dos secretários de governo na capitania de Minas Gerais (1735-1763)”, de autoria de Fernando Júnior dos Santos Silva, cujo objetivo é discutir o problema da administração a partir da atuação dos secretários de governo de Minas Gerais. Braço direito dos governadores, os secretários de governo tiveram um papel importante na produção da documentação oficial, participando ativamente dos diferentes aspectos da administração da capitania. Apesar disso, ainda não mereceram, por parte dos historiadores, um estudo mais sistemático – e é esta lacuna que o artigo visa preencher.

Outro artigo, sob o título “Juízes de paz no Império do Brasil – análise da experiência da magistratura leiga e eletiva na Província da Paraíba (1824-1840)”, focaliza a instituição do juiz de paz, numa conjuntura muito particular, entre os anos de 1820 a 1840, quando houve uma reconfiguração dos poderes locais, que se valeram daquele magistrado para fortalecer o seu papel na política nacional.

No artigo “Beatismo, devoção e fanatismo em Portugal no final do século XVIII,” Rossana Agostinho Nunes discute como o fenômeno do beatismo adquiriu, em Portugal do século XVIII, uma forte conotação política, aos olhos da Coroa, que identificou as beatas aos jacobinos e aos jesuítas. Para as autoridades, a ação dessas mulheres tendia a limitar a soberania régia, ao mesmo tempo que expressava a superstição e o fanatismo, cada vez mais execrados nos novos tempos de racionalismo.

Aproveito o ensejo para registrar aqui a satisfação em ter participado na organização desse número da Temporalidades, e parabenizar os alunos do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG pela competência e seriedade com que abraçaram este projeto. Ao leitor, resta a experiência sempre fascinante de acompanhar a construção do conhecimento histórico a partir das mais diferentes perspectivas.

Adriana Romeiro – Professora Associada do Departamento de História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais.


ROMEIRO, Adriana. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.6, n.1, Jan./abr. 2014. Acessar publicação original [DR]

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