Intelectualidades negras e a escrita da história / Revista de Teoria da História / 2019

No momento em que vem a público o dossiê Intelectualidades negras e a escrita da história, o Brasil assiste o negacionismo passar de fenômeno social difícil de explicar – e de entender – à política de governo. Fato que não é exclusivo do Brasil. Com saliência política maior ou menor, o negacionismo tem se apresentado como um traço distintivo peculiar da ascensão da extrema direita em vários países do mundo. De fato, tornou-se plausível e legítimo negar o aquecimento global, negar que o próprio globo terrestre seja esférico ou negar a eficácia de vacinas. E se negar estes fatos ganha um certo caráter anedótico, isso se dá precisamente porque a possibilidade de questionar a positividade forte da verdade que atestam produz um deslizamento discursivo que se projeta sobre outros campos de saber onde o exercício de negar parece ainda mais legítimo. Aqui, a escrita da história vira alvo incontornável.

No Brasil, a relação entre o avanço do autoritarismo de extrema direita e a escrita da história tem na negação do colonialismo e da escravidão seus eixos articuladores. Os incipientes efeitos dos avanços democráticos conquistados no quarto de século pós ditadura militar começaram a ser postos à prova nas manifestações que marcaram Junho de 2013 como um momento de inflexão no cenário político brasileiro. A reorganização neoconservadora que dali se seguiu reuniu forças suficientes para cinco anos depois, dominar o sistema político. Não teria sido possível fazê-lo sem investir muita energia na ação deliberada de “reescrever” a história do Brasil, produzindo ou reabilitando reconstruções do passado que são tão (in)sustentáveis quanto pressupor que a Terra seja plana.

É sintomático que o recuo histórico insistentemente mantido no foco dos holofotes quase nunca avance pra além da década de 50 / 60 e que se esmere em debates diversionistas tais como decidir se se deve chamar o golpe militar de 1964 de “revolução” ou de “movimento” ou, ainda mais esquizofrenicamente, analisar em que medida a “ameaça comunista” contemporânea se aproxima ou se afasta da de outrora. Desta maneira, mantém-se o centro de gravidade da história brasileira no ocorrido a partir da segunda metade do século passado, como se os 450 anos precedentes fosse ponto pacífico, fosse assunto resolvido pelo menos desde a invenção do (último) mito fundador da nação brasileira: a ideia de democracia racial. Por ironia do destino, aqueles anos 50 / 60 também davam prova exatamente do contrário. Eles marcaram a proeminência da vertente acadêmica de uma longa tradição intelectual comprometida com o pensamento crítico sobre a raça, o racismo e as pós-vidas da escravidão.

Dando continuidade a esta tradição, diríamos que os acontecimentos recentes incitam um recuo histórico que vai muito além da ditadura militar. As palavras de Ailton Krenak dão a medida cronológica de onde ele deve alcançar: “A invasão do Brasil não acabou, nós estamos sendo invadidos neste exato momento” (KRENAK, 2018). É disso que se trata. O avanço da extrema direita no Brasil e mundo afora representa uma tentativa conspícua de defender a hegemonia de lógicas coloniais como as únicas capazes de orientar os destinos da humanidade.

A desfaçatez dessa proposta de “modelo de sociedade” é de uma tal magnitude que revidá-lo chega a exigir alguma dose de sarcasmo. Usando, pois, de modo sarcástico a tão atual quanto retrógrada retórica nacionalista que marca esse movimento, diríamos que a opção é ou estar “a favor do Brasil” que ainda se compraz com a ideia de democracia racial como um modo psíquica e socialmente confortável de considerar a escravidão e o colonialismo como capítulos encerrados da história e, assim, alimentar a ignorância a respeito de suas nefastas consequências no tempo presente; ou estar “a favor do Brasil” que se opõe a isso. Convenhamos, não está difícil de decidir.

Tanto menos difícil quando percebemos que mais do que nunca está em perigo toda uma discreta (mas fundamental) gama de políticas de reparação – incluindo o sistema de cotas no ensino superior – arduamente conquistadas através da histórica luta antirracista protagonizada pela população negra. Trata-se, portanto, de um momento decisivo, cuja reflexão sobre o que significa ser um intelectual negro e qual o seu papel na escrita da história é de suma importância. Partindo das reflexões de Bell Hooks, definimos a / o intelectual negra / o como alguém que exerce um trabalho intrinsecamente curativo, libertador e revolucionário. Curativo, pois como nos informa Grada Kilomba, permite alcançar um estado de descolonização, possibilitando aquelas / aqueles alçados à condição de “outro”, regressar à posição de sujeitos da própria realidade (KILOMBA, 2019).

Libertador, pois deve, necessariamente, relacionar-se com as lutas coletivas em curso, que visam desmantelar estruturas tais como o racismo e o sexismo. Revolucionário, porque almeja, antes de tudo, uma transformação radical da sociedade, desnaturalizando as desigualdades de raça, classe e gênero, mediante as lutas coletivas. Tomados em conjunto, a combinação desses três traços pode ser apresentada como um vigoroso gesto de generosidade epistêmica.

Em primeiro lugar, a cura proporcionada pelo “estado de descolonização” jamais se consumará se não fizer regressar também aqueles presos no narcísico “estado de colonizador” de volta para o deleite de ser considerado “apenas mais um na diferença” (KRENAK, 2018) ou, no dizer de Édouard Glissant, dissuadí-los de permanecerem confinados na “falsa transparência de um mundo que eles estão acostumados a governar” e nisso convencê-los a “entrar na penetrável opacidade de um mundo no qual existimos, ou concordamos em existir, com e entre os demais” (GLISSANT, 2010, p. 114).

Assim, quando um historiador cishéterobranco viesse a colocar somente seus semelhantes no programa de curso, ele se veria apto a perceber que neste ato ele reúne todos os elementos para ser considerado rigorosamente identitário, específico, parcial e militante. Perceberia, pois, que a grande diferença é que pessoas brancas, como explica Grada Kilomba, não se percebem como tal, mas apenas como pessoas, desprovidas de uma identidade marcada, no caso, marcada por vários privilégios dentre os quais um dos mais evidentes é precisamente o de não serem marcadas! (KILOMBA, 2019)

Não obstante, é importante manter no horizonte os arranjos onde isso não se aplica; ou não se aplica inteiramente. Sim, pois mesmo identidades hegemônicas e substantivamente homogêneas guardam certa margem de contingência, já que, a depender do ângulo de visão, uma semelhança geral pode esconder substanciais heterogeneidades particulares. Ou seja, nenhuma homogeneidade (mesmo a masculina-cis-hétero-branca, isto é, uniformemente eurocêntrica1 ) exclui a priori a possibilidade de se depreender dali elementos potencialmente “universais” (CHAKRABARTY, 2000). O caso é que essa mesma potência de universalidade deve então ser necessariamente estendida a todos os demais, sem exceção. Por qual “razão” não seria assim?

Responder essa questão implica entender como em nome da “disciplina”, do “distanciamento” e do “rigor” histórico, grupos que tradicionalmente ocuparam espaços de fala e poder – supostamente sem estranhar o fato de que esses eram compostos majoritariamente por brancos – terminam por reatualizar tropos flagrantemente racistas para desacreditar vozes intelectuais negras que têm se insurgido: o negro raivoso, o negro preso ao passado, o negro personalista, etc. Daí decorre que na universidade neoliberal de nossos tempos – como fora em outras, de tempos outros – a intelectualidade negra tenha desde sempre constituído um daqueles grupos cujo saber é alvo de uma perversa inversão: ao induzir o descentramento (do eixo eurocêntrico) como um elemento crucial para um reflexão apropriada sobre a univers(al)idade, ele é que acaba sendo – de modo sistemático – depreciado como meramente identitário, específico, subjetivo, parcial, emocional e militante.

Dar-se conta disso é fundamental para separar o joio do trigo. Uma coisa é a crítica leviana à ciência e ao “intelectualismo” (supostamente sempre de esquerda) oriunda da extrema-direita, que vem se efetivando em medidas institucionais de ataque frontal às universidades. Outra coisa, muitíssimo distinta, é a crítica ao eurocentrismo e à pretensão de objetividade e neutralidade da ciência oriunda do feminismo negro, dos estudos críticos raciais e da crítica anti-colonial (em todas as suas variantes). Só a segunda, para usar as palavras de Sueli Carneiro, é orientada para a “construção de sujeitos coletivos libertos dos processos de subjugação e subalternização” e, a bem dizer, efetiva um exercício intelectual de “cuidado de si [que] se realiza para esses sujeitos no cuidado do outro, cuja libertação é a estética de suas existências” (2005, p. 303).

Esse segundo traço, o caráter libertador, é atributo de uma intelectualidade ancorada naquilo que bell hooks define como “poder da experiência”. Isso significa que as intelectualidades negras são produzidas por pessoas que vivenciam a experiência de ser negra / o numa sociedade marcadamente racista. Se por um lado, ainda ocupamos as margens da sociedade, do outro, são essas mesmas margens que nos possibilitam pensar a sociedade a partir de um ponto de vista diferente de outros grupos, especialmente dos homens brancos.

E estas margens são heterogêneas. No interior da experiência de ser negra / a no Brasil, há outras variantes importantes e que devem ser consideradas, como gênero, classe, localização geográfica, entre outras. Por exemplo, as mulheres negras, como já apontado por feministas negras brasileiras – Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Giovana Xavier, Luana Tolentino, Mirian Cristina dos Santos e tantas outras – ocupam uma posição uma delicada no seio da estrutura social, pois são atravessadas pelas experiências do racismo e do sexismo.

Nos EUA, como observa Robin Kelley, os Black Studies se desenvolveram não apenas fora da universidade, mas em oposição a uma cultura universitária definida em padrões eurocêntricos, ligadas às grandes corporações e ao poderio militar. Surgidos, em especial, das revoltas de massa da metade do século XX, aqueles pesquisadores insurgentes estabeleceram modelos institucionais baseados na academia, mas definitivamente independentes dela. No anseio por abraçar o multiculturalismo e a diversidade – neoliberais, vale salientar – esses pesquisadores e suas pautas passaram a ser aderidos pelas universidades que, todavia, não estiveram isentas de práticas sexistas e racismo institucional (KELLEY, 2016).

A situação na Europa não parece muito diversa. O caso da Alemanha é bem ilustrativo. Como a socióloga afro-alemã Natasha A. Kelly aponta neste dossiê, “o racismo estrutural tornou-se parte da concepção de norma(lidade) social na Alemanha, porque ele vem sendo institucionalizado há séculos e forma a base das ideias dominantes”. Nesse sentido, não chega a ser exatamente uma opção voluntária o constante trabalho de produzir intervenções epistemológicas que visam aprofundar a descolonização do saber naquele contexto. E a consequência é que, apesar de certa demanda por saberes desta natureza para contrabalançar o descomunal poder normativo da masculinidade branca, como mulher negra, ela ressalta, “é quase impossível perseguir sem impedimentos uma carreira acadêmica na Alemanha”. Não admira, portanto, que ela se apresente como uma “acadêmica-ativista”.

O hífen a vincular esses os dois substantivos é uma maneira prática de tolher perguntas ociosas de desavisados predispostos a pensar que a intelectualidade negra seria composta tão somente por um pequeno estrato de pessoas negras letradas e com acesso à seleta estrutura editorial do país. Longe disso. Não apenas porque a academia e o mundo do alto letramento é, a rigor, um daqueles espaços particularmente inóspitos para as coletividades negras e onde, consoante, elas menos se fazem presentes, mas sobretudo porque as intelectualidades negras são umbilicalmente diversas, plurais, heterogêneas e produzidas a partir dos mais variados lugares.

A respeito disso, a historiadora Giovana Xavier nos lembra, por exemplo, dos saberes culinários das mulheres negras escravizadas nas cozinhas no período colonial2. A habilidade de combinar temperos é uma das grandes heranças de nossas ancestralidades. Também a de combinar música, performance e movimentos do corpo e ampliá-los a ponto de tornarem-se tanto um complexo espaço de sociabilidade como de inserção política, como demonstra as variadas dimensões da capoeira Reis.

Assim, as intelectualidades negras conformam toda uma outra esfera pública onde os debates acerca das questões que interessam à comunidade política ganham uma forma e um conteúdo que transcendem em muito aquelas circunscritas ao espaço dos direitos e obrigações formais, os quais, aliás, por muito tempo foram institucionalmente negados às pessoas negras (GILROY, 2001, p. 128).

O dossiê Intelectuais negros e a escrita da história propõe que seus textos sirvam de inspiração a muitos intelectuais que atuam nas ruas, vielas e cozinhas, em slams, em terreiros, rodas de samba e de capoeira, no sistema prisional, em associações comunitárias, pautando a raça e o racismo, retomando de forma distinta e inventiva a discussão sobre como nosso passado escravocrata, mas também de resistência, mantém suas intensidades no presente.

E é esse, por fim, seu sentido revolucionário. O discurso autoritativo dos grupos que dominam as universidades brasileiras desde a sua fundação produz e reproduz de maneira bastante tosca um rebaixamento das intelectualidades negras. Ao invés da adesão tácita a esta postura intelectual, que Charles Mills muito apropriadamente chama de “epistemologia da ignorância” (Mills 1997: 8), podemos e devemos nos dar à sofisticação de perguntar: como é possível falar em teoria da história sem mencionar Abdias Nascimento, Mc Carol, Lélia Gonzalez, Baco Exú do Blues, Tássia Reis, Virgínia Bicudo, Rincón Sapiência, Mestre Pastinha, Djonga, Beatriz Nascimento, Stella do Patrocínio, Emicida, Conceição Evaristo, Alberto Guerreiro Ramos, Ana Maria Gonçalves, Racionais Mc’s, entre outras / os? Como disse Lélia Gonzalez, é preciso “botar o dedo na ferida” (GONZALEZ, 2018) e denunciar a forma como as práticas intelectuais negras têm sido silenciadas por uma universidade marcadamente racista, sexista e elitista.

Pra isso, porém, precisamos não apenas realizar a tarefa – que é de suma relevância – de recuperar vozes negras para ampliar sua presença no debate historiográfico, mas refletir sobre a intelectualidade negra enquanto categoria histórica. Posto de outro modo, ainda mais aberto, quais as possibilidades do fazer historiográfico diante do significante negro?

Como já denunciou Alberto Guerreiro Ramos na década de 1950, Lélia Gonzalez nos anos 1980, e Sueli Carneiro em meados anos 2000, as / os negras / os tem sido repetidamente construídos a partir de um ponto de vista branco (RAMOS, 1995; GONZALEZ, 2018; CARNEIRO, 2005). Não ajuda muito constatar que isso, obviamente, não é apanágio nosso, mas sim “a normalidade” do mundo.

Isso coloca uma série de desafios para as intelectualidades negras ou / antirracistas diante do compromisso de produzir uma teoria acessível, capaz de estender uma ponte de diálogo com a todas / os negras / os e com aqueles não-negros, mas comprometidos com o desmantelamento do racismo estrutural. E que não se recubra esse anseio como sinônimo do desejo de sempre produzir algo fácil, básico, descomplicado, claro, inteligível, transparente e etc. Não. Trata-se de um projeto epistemológico bastante ambicioso, no qual as próprias categorias do simples e do complexo intercambiam seus contornos. Por isso, o escopo do que nele se considera “acessível” acompanha a heterogeneidade que caracteriza a própria produção da intelectualidade negra. Em comum, ele almeja engendrar não apenas uma “história alternativa”, mas também, até mesmo, “uma alternativa à história” (CARVALHO apud GOTTLOB, 2016, p. 139). Menos do que um amplo projeto de revisão disciplinar, trata-se, portanto, de um exemplar exercício de indisciplina e profundo questionamento historiográfico.

Em consonância com a proposta exposta nesta apresentação recebemos uma grande variedade de textos que demonstram a pujança dos estudos em torno de intelectualidades negras, assim como seus campos fronteiriços. Os estudos étnico-raciais, interseccionais, atlânticos, feministas, queer tem redimensionado o campo intelectual, através de novos agentes fora e dentro da universidade, que tendem a entrar em choque com antigas leituras que sempre se viram como universais, mesmo que refletissem visões parciais sobre o social. As epistemologias do sul (SANTOS; MENESES, 2009) constituem ao nosso ver a melhor forma de reverter o quadro de colonialidade do conhecimento através de “analíticas da colonialidade” (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL; MALDONANO-TORRES, 2019).

O pensamento afrodiásporico e a reconstituição de trajetórias de intelectuais negros é, dentro estas abordagens, uma das principais vias para descolonizar as identidades geoculturais afirmadas desde a primeira modernidade (QUIJANO, 2005), superando a leitura enraizada na sociedade de reduzir o negro ao “corpo” e as atividades corporais. Nossa intenção não é reforçar a divisão corpo-mente própria da leitura moderna, mas de reconstituir de um ponto de vista do “sul”, nomeadamente, da diáspora negra, a importância do significante “negro” para uma leitura particular da história e da sua escrita. Os textos que publicamos neste dossiê tentam responder à sua maneira essas problemáticas através de três grandes eixos: a) conceituais; b) diáspora afro-brasileira e c) outras diásporas.

No primeiro eixo há três textos que versam sobre o debate teórico-historiográfico em torno da reflexão sobre escrita e história. Maria Dolores Sosin Rodriguez no artigo Meus traumas Freud não explica: A arte negra como escrita da história busca através de uma elaboração crítica e teórica compreender o locus da arte negra para o fazer historiográfico, refletindo em particular sobre a produção de artistas contemporâneos da afrodiáspora (Rosana Paulino, Lorna Simpson, Grada Kilomba, etc.). No texto de Amailton Magno Azevedo Estética negra e periférica: filosofia, arte e cultura o debate teórico incide sobre o papel da música e arte enquanto propositores de uma nova narrativa emancipadora, projetando por meio desta o que ele denomina como uma “história sônica e artística”. Rafael Petry Trapp expõe em História, raça e sociedade: Notas sobre descolonização e historiografia brasileira, o último texto da seção dos “teóricos”, sobre a importância de se olhar a história da historiografia sobre a ótica da crítica da branquitude, constatando através deste olhar um cânone branco e eurocêntrico que precisa ser superado.

Já no segundo eixo temos três textos sobre intelectualidades negras no contexto da diáspora afro-brasileira. Os dois primeiros versam sobre a importância do ideário panafricanista no engajamento político e intelectual de personagens negros no século XX. Petrônio Domingues em Severo D’Acelino: Um intelectual pan-africanista aborda tal questão através da ótica do trabalho de Severo D’ Acelino, evidenciando sua militância e contribuições para o campo de estudos das relações étnico-raciais. No texto de Antonio Donizeti Fernandes “Malícia, ignorância ou negligência”: Abdias do Nascimento e a crítica à consciência histórica a articulação entre pan-africanismo e diáspora afro-brasileira se da através da análise da trajetória da leitura de Abdias do Nascimento sobre o conceito de quilombismo. No texto que fecha o eixo da diáspora afro-brasileira, de Teresa Malatian Da antropologia cultural ao materialismo histórico: primeiros estudos de Clóvis Moura sobre o negro, o foco reside na análise da primeira fase da trajetória de Clóvis Moura, antes da publicação de Rebeliões da Senzala (1959).

Na última seção o foco dos três últimos textos volta-se para as intelectualidades em contexto diásporicos fora do Brasil. Pablo de Oliveira de Mattos em George Padmore e C.L.R. James: A invasão da Etiópia, Pan-africanismo e uma opinião africana internacional faz uma análise do impacto da invasão da Etiópia, em 1934, para a organização do pan-africanismo transnacional, dando ênfase particular ao engajamento político intelectual de dois importantes militantes negros da diáspora: George Padmore e C.L.R. James. Já no texto de Gilson Brandão de Oliveira Junior e José Francisco dos Santos Intercâmbios angolano-brasileiros: Trajetórias, intelectuais e institucionais no atlântico sul (1948-1970), que segue o terceiro eixo do dossiê das “outras diásporas”, as trajetórias dos intelectuais diásporicos são evidenciadas através das múltiplas relações entre Angola e o Brasil formadas no Atlântico Sul entre 1948-1970, abordando tal dimensão através de múltiplos meios (imprensa, livros, eventos, etc.). O texto de Eduardo Antonio Estevam Santos em Angola, entre o passado e o futuro: História, intelectuais e imprensa (1870-1900) encerra os artigos do dossiê através de uma análise do jornalismo angolano da segunda metade do século XIX e os diversos dilemas desta intelectualidade, perscrutando o campo intelectual no qual importantes personagens afrocrioulos agiam na cena política angolana (José da Fontes Pereira, Francisco Antonio Pinheiro Bayão, Arantes Braga e outros).

Em continuidade ao dossiê publicamos uma série de outras produções que detém uma conexão com o volume sobre outras formas que não a de artigos convencionais. A primeira delas é a tradução do artigo da professora Dra. Ochy Curriel Crítica pós-colonial a partir das práticas políticas do feminismo antirracista (Crítica pós-colonial desde las prácticas políticas del feminismo antirracista”). Texto fundamental por pensar as diversas conexões entre feminismo, colonialidade e pensamento afrodiásporico. Em seguida publicamos duas entrevistas na temática do dossiê. A primeira um “questionário-entrevista” com cinco intelectuais negros (Adelia Mathias, Muryatan Barbosa, Deivison Mendes Faustino, Natasha A. Kelly, Marcus Vinicius Rosa) através de perguntas gerais sobre o que significa ser um intelectual negro no século XXI. Entrevistamos também a professora Dra. Mirian Cristina dos Santos em uma conversa que versa sobre temas como autoria feminina negra, escrita literária e outros temas. Por fim, encerramos o dossiê com duas conferências que foram produzidas na ocasião do doutor honoris de Nei Lopes. A primeira é o discurso de José Rivair Macedo em homenagem à Nei Lopes intitulada Nei Lopes, artista engajado, intelectual da diáspora africana. A segunda conferência, que encerra nosso dossiê, é o discurso de Nei Lopes na ocasião da concessão do seu doutor honoris, intitulada A espessa cortina da invisibilidade.

Iniciamos, em seguida, a seção de artigos livres. Em O estruturalismo em Deleuze: a estrutura simbólica, Pedro Ragusa (UEL / UEPG) realiza uma análise de um artigo do filósofo francês que apresenta a complexidade da questão relativa ao paradigma estrutural (mobilizando autores de diversos campos do saber) a partir da qual ele deve ser considerado e, para articular tal complexidade, lança mão da noção de estrutura simbólica. Guilherme Bianchi (UFOP), em Arquivo histórico e diferença indígena: repensando os Outros da imaginação histórica ocidental, realiza uma valiosa reflexão a respeito dos limites e aporias que estão no próprio fundamento da concepção historiográfica moderna que, a seu turno, é explorada mediante a tensão entre as noções de história e natureza e chega ao limite com apresentação do “universo existencial e cosmológico” indígena enquanto diferença e alteridade, o que, ao fim, legitima a reinvindicação de uma “abertura do pensamento histórico” que não anule o outro mediante a imposição da identidade. Por fim, no artigo Reflexões sobre a recepção crítica de Aby Warburg, Serzenando Vieira Neto (UNICAMP) apresenta um conjunto de análises relativas ao processo de recepção da obra e do pensamento do historiador da arte alemão Aby Warburg e, por conseguinte, considera as questões responsáveis por conferir sua especificidade e relevância para a teoria e história da arte realizadas na contemporaneidade.

Na seção de ensaios, Raylane Marques Sousa, em Formas, modos e teorias do conhecimento e da realidade, apresenta uma interessante reflexão que coloca no centro a questão do conhecimento (e, por conseguinte, da verdade) e sua importância para a teoria da história.

Na seção de resenhas, contamos com duas contribuições: Maria Della Volpe (Università degli Studi di Napoli Federico II), apresenta uma resenha de um livro recente do famoso filósofo italiano Fulvio Tessitore. Flávio Dantas Martins (UFOB / UFG), por sua vez, em Memória pública e memória oficial dos descendentes de vítimas da escravidão em França, apresenta uma resenha sobre livro de Johann Michel.

Notas

1. O universo historiográfico, por mais diverso, fragmentado e flexível que seja, ainda é um mundo em que as principais linhas de força ostentam as marcas combinadas de masculinidade, heteronormatividade e branquitude – nas variantes europeia e estadunidense (BALDRAIA 2017: 271). Eurocentrismo é o amálgama destes três elementos.

Allan Kardec Pereira (UFRGS)

Felipe Alves de Oliveira (UFOP)

Fernando dos Santos Baldraia Sousa (FU Berlin – MECILA)

Lídia Maria de Abreu Generoso (UFOP)

Marcello Felisberto Morais de Assunção (DLCV-USP)


PEREIRA, Allan Kardec; OLIVEIRA, Felipe Alves de; SOUSA, Fernando dos Santos Baldraia; GENEROSO, Lídia Maria de Abreu; ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto Morais de. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.22, n.2, julho, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.