Jörn Rüsen: teoria/historiografia/didática | M. M. D. Oliveira, F. C. F. Santiago Júnior e C. R. C. Lima

O livro Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática, lançado em 2022, é uma coletânea que põe em diálogo diversos prismas da vasta obra do historiador alemão, especialista em Teoria e Didática da História1. A publicação resulta do evento I Seminário Jörn Rüsen, realizado entre os dias 21 e 25 de dezembro de 2015, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ao debater com a obra de Rüsen, os diversos autores evidenciam as relações entre Teoria da História, Didática da História e Ensino de História.

Para Arthur Alfaix Assis – autor do artigo História, teoria e liberdade: saudação a Jörn Rüsen2 – uma das principais linhas de pensamento de Rüsen refere-se à questão: “como, a partir de tradições e traumas herdados do passado, seria possível agir no presente, visando projetar um futuro no qual sejamos livres para criar algo novo?”.

A volumosa apropriação da obra do autor no Brasil, é prospectada por Itamar Freitas, no artigo A recepção da teoria da história de Jörn Rüsen em periódicos brasileiros especializados (2001-2015). Na pesquisa, é analisado como se deu a recepção e quais foram as apropriações da Teoria da História de Rüsen por pesquisadores brasileiros, entre os anos 2001 e 2015, em periódicos qualificados sob os estratos A1 e A2, na área da História.

Freitas (2022) explica que, dentre os trabalhos produzidos, prevalece a ausência de leituras contextualizadas do conjunto da obra de Rüsen. As apropriações e os usos de conceitos do autor, são comumente realizados a partir de citações esparsas no corpo do texto ou somente na sessão de referências. O que demonstra que as apropriações brasileiras sobre a obra do historiador alemão ainda carecem de aprofundamento e conexões teóricos e metodológicos.

A coletânea traz, também, textos do próprio Rüsen: ‘Sobre alguns fundamentos teóricos da didática da história’ e Engajamento na perspectiva da meta-história. No primeiro, o historiador reflete sobre o motivo pelo qual, aparentemente, é tão difícil aprender História. Inicialmente, o autor aponta que a disciplina parece ser algo que não se relaciona com a vida dos alunos. O processo de aprendizagem histórica, frente a este fator, é o período em que o saber histórico é interiorizado pelos estudantes. E é a Didática da História que viabiliza esta transição. Sobre as diferenças e relações entre Teoria e Didática da História, o autor explica que a Teoria da História “trata dos princípios básicos do pensamento histórico que sustentam a História como ciência” Já a Didática da História, é definida como a ciência da aprendizagem histórica e representa o profissionalismo do ensino e da aprendizagem da História. Ambas, contudo, estão diretamente interrelacionadas.

No outro artigo, Rüsen propõe debater a temática do engajamento nos estudos históricos. O teórico alemão explica que um procedimento considerado não engajado, geralmente é interpretado como neutro e científico. Trata-se do argumento da objetividade na pesquisa, que visa alcançar certo tipo de ‘verdade’ através da ciência. Por outro lado, Rüsen apresenta a perspectiva do engajamento, cuja função é a de orientação cultural. Neste caso, a representação histórica serve, sobretudo, para a interpretação da cultura histórica no presente. Frente a estas posições, o historiador alemão explica que em lugar de neutralidade, deve-se pensar em termos de intersubjetividade. Tal conceito não nega o engajamento, mas coloca a pesquisa em parâmetros metodológicos científicos.

A Didática da História também é tema do artigo escrito por Rafael Saddi, intitulado Jörn Rüsen e a didática da história, no qual o autor reflete sobre as características da subdisciplina e suas interlocuções no Brasil. Saddi aponta que o pensamento de Jörn Rüsen destacou-se entre pesquisadores brasileiros da área do Ensino de História e que é através do historiador alemão que a reflexão sobre o processo de ensino e aprendizagem passa a integrar o campo da Teoria da História, como uma metateoria. O artigo explicita que o movimento de reformulação da Didática da História, ao qual Rüsen integrou junto a outros autores alemães, ocorreu devido à crise de legitimidade que tanto a História quanto o Ensino de História enfrentaram no período pós-guerra. Por isso, em 1972, a formulação de uma nova Didática da História, cujo objeto central fosse a consciência histórica, dentro e fora do ambiente escolar, se solidificou. Atualmente, a Didática da História se ocupa, então, da aprendizagem histórica e suas diferentes formas de manifestações na consciência histórica dos indivíduos.

Em outro caminho de reflexão, no artigo A re(li)gião dos historiadores: Jörn Rüsen, Astor Antônio Diehl argumenta que a sociedade contemporânea atravessa crises e que, neste cenário, a questão dos sentidos da História é posta em evidência. A ideia de progresso, vinculada aos paradigmas tradicionais, é percebida em sua falência. Frente a este processo, a História enquanto disciplina, é reformulada a partir de novos fundamentos. Assim, o fio condutor da argumentação de Diehl (2002) é: qual o sentido da produção do conhecimento histórico, em uma sociedade que, constantemente, é atravessada por inúmeras mudanças e crises? Em face destas transformações, o autor aponta que a obra de Rüsen contém o potencial de ressignificar os sentidos da História e da vida individual e coletiva na contemporaneidade.

Além destas considerações, a coletânea também traz o artigo intitulado O “formalismo teleológico” em Jörn Rüsen: perspectivas sobre a interculturalidade, escrito por Ana Carolina Pereira, no qual a autora constata que, para Rüsen, a ideia de humanidade seria uma alternativa para a superação do etnocentrismo que impacta o mundo globalizado contemporâneo. Trata-se de identificar a “diversidade das culturas na unidade da espécie (humanidade)”. Todavia, os limites do pensamento ruseniano são desvelados quando colocados em diálogo com o perspectivismo ameríndio, uma vez que a cosmogonia e a epistemologia dos povos indígenas diferem do pensamento ocidental que sustenta a obra de Rüsen. Portanto, o pensamento indígena demonstra que a proposta de Rüsen, embora muito promissora, ainda recai no etnocentrismo.

Em outro caminho, no artigo Experiência traumática e conhecimento histórico: reflexões a partir da obra de Jörn Rüsen, escrito por Pedro Spinola Pereira Caldas, o autor propõe demonstrar como a experiencia traumática do holocausto não é o critério mais adequado para identificar a crise catastrófica – conceituada por Rüsen como um elemento que “destrói o potencial da consciência histórica de processar a contingência em uma narrativa portadora e provedora de sentido” vivida após a Segunda Guerra Mundial. Para Rüsen, um evento-limite gerador da crise catastrófica da modernidade é a experiência do holocausto. Todavia, Caldas (2022) utiliza-se de Marx, Weber e Foucault, autores que teceram reflexões sobre o surgimento da modernidade, para defender a crise de orientação do tempo presente a partir das experiências do trabalho. Trata-se, portanto, de refletir sobre as experiências de exploração trabalhistas e questionar se este já não é um evento-limite gerador de uma crise catastrófica própria da modernidade. Tais considerações tecidas por Caldas sobre o tema do trauma, e os desafios da interculturalidade, refletidos por Ana Carolina Pereira, são também debatidos e reiterados por Francisco das Chagas Santiago Junior, no artigo Trauma e mito: questões aos limites em diálogo com a teoria de Rüsen.

Além das reflexões tecidas anteriormente, o livro também conta com a contribuição de Sérgio Duarte, a partir do artigo Ação comunicativa e teoria da história: aproximação de Habermas e Rüsen, no qual a proposta é discutir sobre como as teorias de Jürgen Habermas e Jörn Rüsen são fundamentais na reflexão sobre modernidade e consciência histórica, bem como para elucidar o debate sobre os fundamentos e a importância da ciência da História no tempo presente. Duarte aponta que Habermas e Rüsen são autores fundamentais para a defesa das teorias que surgiram no período moderno. Os autores, com suas reflexões sobre as formas e funções do conhecimento histórico são importantes na defesa da “tradição” histórico-científica construída a partir da modernidade, que, embora muito criticada pelo pós-modernismo, teria muito a contribuir aos sujeitos, em termos individuais e coletivos, no tempo presente.

Frente às reflexões tecidas anteriormente, a homenagem a Jörn Rüsen, expressa pela obra aqui resenhada, justifica-se à medida em que o autor traz reflexões elementares, que desvelam que o conhecimento histórico não é imparcial e deve servir à orientação da vida prática dos seres humanos em sociedade, ou seja, contribuir para que as carências de orientação no tempo presente, sejam superadas através do pensamento histórico, um processo mental que interrelaciona as temporalidades e permite compreender o presente e formular projetos de ações para prospectar e construir o futuro.

Ainda há muito a explorar sobre a obra e os conceitos desenvolvidos por Jorn Rüsen. A coletânea aqui resenhada, todavia, pode ser um excelente guia para iniciantes, assim como servir como um testemunho do “estado da arte”, entre especialistas, na reflexão e intersecção sobre metahistória, teoria e Didática da História, historiografia, ensino de História e cultura histórica

Notas

1 Os organizadores desta publicação são: Margarida Maria Dias de Oliveira, doutora em História, pesquisadora do Ensino de História e professora titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Francisco das Chagas Fernandes Santiago Junior, doutor em História e também professor do Departamento de História da UFRN; e Caio Rodrigo Carvalho Lima, mestre em História e pesquisador da obra de Jörn Rüsen.

2 O texto de Arthur Assis foi apresentado na ocasião de entrega do título de Doctor Honoris Causa a Jörn Rüsen, na UnB e integrado nesta coletânea.


Referência

OLIVEIRA, M. M. D.; SANTIAGO JÚNIOR, F. C. F.; LIMA, C. R. C. Jörn Rüsen: Teoria, Historiografia, Didática. Ananindeua: Cabana, 2022, 268 p. Disponível em https://www.editoracabana.com/_files/ugd/e2a408_0c5f6066fc8e4ffb951a8af23dd69a13.pdf


Resenhista

Andressa Ferreira – Graduada em História Universidade Estadual do Norte do Paraná (UFMG). E-mail: [email protected]

Referências desta Resenha

OLIVEIRA, M. M. D.; SANTIAGO JÚNIOR, F. C. F.; LIMA, C. R. C. (Orgs.). Jörn Rüsen: teoria, historiografia, didática. Ananindeua: Cabana, 2022. Resenha de: FERREIRA, Andressa. Jörn Rüsen: Repercussões sobre a teoria e o ensino da História no Brasil. Temporalidades. Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p.560-564, set. 2022/jan. 2023. Acessar publicação original [DR]

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