Juridicização e tribunalização da história / Revista de Teoria da História / 2020

A Revista de Teoria da História, com o presente dossiê, pretende dar continuidade àquilo que vem se tornando o intuito fundamental do periódico: não apenas revisitar criticamente os temas clássicos da teoria da história e da história da historiografia, mas também chamar a atenção para temas ainda marginalizados, bem como promover o debate estimulado por questões hodiernas. Nesse sentido, tendo em vista fenômenos recentes da história política brasileira, mas não excluindo o complexo século XX como pano de fundo, este dossiê abarca contribuições que dialogam com o conjunto de reflexões que podem ser sintetizadas pelo tema da Juridicização e tribunalização da história.

De modo mais claro, trata-se do entrelaçamento de domínios a princípio distintos, como o tribunal e a historiografia, a partir do qual o primeiro, sob seus modos e expedientes particulares, passa a determinar e, em certo sentido, eliminar a segunda, movimento que, de modo geral, se encontra intrinsecamente ligado ao fenômeno da tribunalização da política. Tal entrelaçamento pode ser verificado claramente quando assistimos ao surgimento de instituições judiciárias que reivindicam para si o virtuoso papel de extirpar a corrupção de uma nação e que, para isso, negligenciam o próprio método legal, mesmo que supostamente agindo em nome dele, com a finalidade de instaurar um maniqueísmo absoluto de cunho moralizante que divide culpados e inocentes de forma no mínimo questionável, haja vista que, com efeito, o que amiúde fundamenta essas acusações e suas respectivas sentenças são novas versões a respeito de episódios centrais da história nacional, as quais, no entanto, ignoram o método próprio da disciplina histórica, desenvolvido e aprimorado desde o início da modernidade, e, ao fim, violentam a memória coletiva de um povo. Dito de outro modo, a verdade histórica é reivindicada por vias e finalidades não-históricas.

O amplo apoio público recebido com essas simplificações, bem como o fortalecimento das polarizações daí advindas, contribuem para o crescimento progressivo e generalizado de tais práticas e instituições no solo fértil de uma jovem e constantemente interrompida democracia, cujas consequências, sem receio de soarem inverossímeis, representam uma ameaça à memória, ao empreendimento historiográfico e aos historiadores que os defendem e deles lançam mão. Essa ameaça se traduz na completa suspensão da dicotomia entre compreender e julgar (ou entender e condenar), ao mesmo tempo em que insiste em dicotomias moralmente estabelecidas. Em artigo recente publicado no livro organizado em comemoração aos 10 anos da Revista de Teoria da História, Francesco Guerra sintetiza o que está em jogo: “Os golpes da tribunalização da história ameaçam derrubar não apenas os Droysen, os Marc Bloch e todos aqueles que dedicaram páginas memoráveis à teoria e metodologia da história, mas a própria possibilidade de emergência de um evento histórico”, em “todas as suas incongruências e incoerências, como convém à história ‘de carne e osso’”. Ao fim “se fará ‘história processualizada’, última encarnação da história universal, dentro da qual a linearidade do tempo e o veredicto do juiz” determinarão tudo que poderemos “saber sobre um determinado período histórico”. Com efeito, “dentro dessa dinâmica perversa, o presente torna-se um ‘eterno presente’, pois, recorrendo a uma sugestiva imagem kafkiana, não se pode abandonar o processo” (GUERRA, 2020, p. 64, p. 68).

Concebida dessa forma, pode-se dizer que a ideia de tribunalização da história é responsável por constituir um novo paradigma historiográfico e da historicidade. Essa constituição perpassa momentos decisivos do século XX, considerado como o século da tribunalização da história, segundo o que escrevem o historiador Alberto Melloni e o filósofo Odo Marquard em uma obra de grande relevância para se compreender a profundidade da questão. O século XX assistiu à convocação da história aos tribunais e à exigência de uma sentença a respeito de temas de alta fragilidade e complexidade (MARQUARD, MELLONI, 2008). Assim, a história e os historiadores presenciaram muitos episódios em que a autorreflexão disciplinar se tornou uma exigência, o que, consideramos, é novamente o caso. Trata-se, portanto, de retomar uma questão cara à teoria da história, qual seja, a relação entre o historiador e o juiz, entre a história e o tribunal, levando-se em conta a ameaça à especificidade característica que garante a legitimidade da história científica, especificidade na qual noções como as de juízo, testemunho, lei, condenação, sentença, justiça e verdade possuem um significado próprio e um espaço determinado. Isso significa que o convite à reflexão não pode ser de modo algum confundido com algum tipo de exaltação idealizadora da disciplina historiográfica: muito pelo contrário, o retorno a esse tópico tem também por objetivo problematizar e atualizar as aporias e os limites inerentes ao fazer historiográfico, o que outrora foi realizado por diversos autores em reflexões que hoje são consideradas clássicas: basta pensarmos, a título de exemplo, em A Ideia de História, de R. G. Collingwood (1989), Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, de Hannah Arendt (1999), Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer (1998), os artigos de Carlo Ginzburg (2011; 1989), e A história, a Memória e o Esquecimento, de Paul Ricoeur (2007).

Os artigos presentes neste dossiê retomam essa relevante questão tendo como pano de fundo dois gêneros de eventos históricos que habitam o imaginário popular e atraem o grande público: por um lado, os crimes cometidos contra a humanidade, qualificados também como crimes de massa (como o Holocausto judeu, o genocídio de Ruanda, os massacres realizados durante a Guerra da Bósnia e durante as ditaduras sul-americanas) e, por outro lado, os eventos que compõem a história do crime organizado, ligado sobretudo ao narcotráfico, popularmente conhecido como o fenômeno da máfia. Partindo, portanto, desses campos factuais, os autores buscaram refletir sobre as relações entre história, direito e política tanto em um nível metodológico quanto epistemológico.

Em Juízo e verdade histórica no discurso historiográfico, Denise Rollemberg (Universidade Federal Fluminense) e Ronaldo Vainfas (Universidade Federal Fluminense e Universidade do Estado do Rio de Janeiro) analisam as distinções e semelhanças entre o historiador e juiz em uma reflexão que perpassa diversos contextos históricos, da antiguidade à atualidade, e que privilegia as relações entre juízo de valor e juízo crítico. O argumento do artigo, o qual desde já se torna leitura imprescindível para aqueles interessados na temática, é de que, justamente ao se aproximar de certos métodos e procedimentos tradicionalmente ligados à prática jurídica, o historiador é capaz de suprimir os excessos das concepções narrativistas quanto ao valor representacional dos eventos históricos. Para isso, os autores lançam mão do exame de três julgamentos: o caso Dreyfus (anos 1890), o caso Eichmann (em 1960), e o caso Sofri (anos 1990).

Richard Ashby Wilson (University of Connecticut) pretende realizar a complexa tarefa de, se não superar, ao menos abrandar a clássica crítica de Arendt à produção de história por tribunais, ao mostrar em que sentido estes, especificamente os tribunais penais internacionais, revelam-se como empreendimentos historiográficos relevantes, seja no próprio sentido de constituir narrativas históricas de qualidade, ou de contribuir, com seus processos, dinâmicas e documentos, para a realização de uma historiografia mais completa. Na verdade, a respeito disso escreveu um livro, Writing History in International Criminal Trials (2011), o qual pretende introduzir no artigo em questão, Uma análise das histórias dos tribunais de crimes de massa. Segundo o próprio autor, os modos de conhecer da história e do direito, mesmo que indiscutivelmente distintos, são de tal modo combinados nos tribunais penais internacionais que “nos desafia a repensar a relação entre direito e história”. Os julgamentos analisados dizem respeito aos massacres realizados durante a Guerra da Bósnia e ao genocídio de Ruanda.

Em O biênio dos massacres entre premissas e postulados: uma historiografia “alternativa” para uma política “proibida”, Fabio Cammalleri analisa a complexa (e ainda não resolvida) relação entre o judiciário e a política que surge na Itália desde o início dos anos 1990, a partir do chamado “biênio dos massacres”, período em que toda a península foi vítima de massacres cometidos pela máfia Cosa Nostra. O autor, graças a uma prosa envolvente e um aparato muito detalhado de notas apoiadas em figuras como Ginzburg, Pirandello, Pasolini, Hume, Oakeshott, Collingwood, Burckhardt e Löwith, pretende revelar como o falso paradigma da política tota mafiosa foi afirmado e como esse paradigma foi o resultado do duplo impacto, com vistas à substituição da política, paulatinamente com cada vez menos legitimidade, conduzido por um judiciário e uma historiografia de militantes que parecem, em última instância, tentar uma (re)fundação histórico-judicial, de modo a minar a ordem democrática e liberal italiana em seu fundamento.

Heitor Pagliaro (Universidade Federal de Goiás), em Juridicização da história e totalitarismo, procura problematizar os discursos políticos presentes nos preâmbulos dos Atos Institucionais da ditadura militar, como fontes históricas, para analisar as condições de possibilidade do exercício legítimo do poder político no golpe militar brasileiro, em 1964. Essa abordagem é realizada a partir dos conceitos de violência fundadora e violência mantenedora, em Força de Lei, de Jacques Derrida. Seu objetivo é, por fim, compreender, em termos filosófico-políticos, como se deu o movimento de transição política do golpe militar brasileiro, considerando a questão da legitimidade do governo em um contexto de revolução totalitarista, para pensar sobre como a vinculação da política a questões de legalidade pode conduzir, em certo sentido, a uma juridicização da história, da qual, como o autor bem esclarece, a tribunalização da história é apenas uma parte.

Em Entre as margens do atlântico: história e direito internacional no trânsito de criminosos entre a Europa e as Américas na segunda metade do século XX, Francesco Guerra (Universidade Federal de Goiás e Università degli Studi di Pisa) examina, a partir da perspectiva da historiografia e do direito criminal internacional, a máfia da Córsega-Marselha, a French Connection e a história de Auguste Joseph Ricord, uma daquelas figuras do narcotráfico internacional que, folheando aqui e ali em tempos e contextos muito diferentes, parece realmente vindo da caneta de um escritor que ama conspirações e tramas internacionais. O autor, através das escassas informações disponíveis na rede, tenta restaurar da forma mais detalhada possível o perfil de Ricord e de toda a rede de relacionamentos e entrelaçamentos entre ambientes do submundo, mas, no entanto, também da promiscuidade com aparelhos de segurança do mais alto nível, o que fez do narcotraficante francês uma autêntica figura de referência para o tráfico de drogas entre a Europa e as Américas durante um período de trinta anos, entre o final da década de 1940 e o início da década de 1970, quando, não sem dificuldade, foi extraditado para os Estados Unidos e lá condenado a uma longa prisão.

Além dos artigos citados acima, dois ensaios também compõem o dossiê. Em História e justiça: sobre os usos políticos do passado, Rafael Terra Dall’Agnol (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) tem o objetivo de compreender de que modo ocorre a relação entre História e Justiça, historiador e juiz, a partir de debates, por vezes polêmicos, ocorridos em torno do Holocausto. Utilizando como referência as discussões acontecidas na França e na Alemanha, o autor baseia-se principalmente no processo judicial envolvendo o escritor David Irving e a historiadora Deborah Lipstadt. Na parte final do ensaio, os filmes Negação (2016) e Tribunal de Nuremberg (1961) são referenciados como exemplos da capacidade do cinema de demonstrar como a história é mobilizada nos tribunais.

Em Olhares para a América do Sul: tribunalização da política e crime organizado na Colômbia, Gabriella Saba (Università di Cagliari) reúne um conjunto de textos que pretende oferecer uma leitura do problema ligado à relação entre a tribunalização da política e os fenômenos do crime organizado à luz de alguns eventos específicos e significativos que ocorreram na história colombiana mais recente: a difícil implementação da lei de Justicia y Paz, o envolvimento dos paras-guerrilheiros e das FARC no tráfico de cocaína, a história atormentada de Medellín, penosamente suspensa entre o legado do patrono Pablo Escobar e o desejo de esquecer aqueles anos violentos, e, finalmente, a complexa trama ligada ao longo sequestro por parte das FARC de Ingrid Betancourt.

O dossiê é encerrado com uma conferência de Francesco Guerra (Universidade Federal de Goiás e Università degli Studi di Pisa), Tribunalização da política na Itália entre a Primeira República e a operação Mãos Limpas, a qual, por meio do método da micro-história, faz uma reconstrução histórica dos eventos ocorridos na Itália, sobretudo na Sicília, nos anos de 1992 e 1993, levantando uma hipótese interpretativa sobre os “massacres da máfia” que conduz à ideia de que o poder judiciário operou como um poder suplente, ao promover processos políticos na operação Mãos Limpas. Nesse contexto, são abordadas especialmente as relações entre os juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino e a investigação denominada Máfia e Contratos Públicos, em uma tentativa de compreensão do contexto social palermitano da época, no que diz respeito aos principais atores envolvidos: empresários, juízes, mafiosos e políticos.

Na seção de artigos livres, contamos com quatro contribuições. Em Outros modos de pensar e sonhar: a experiência onírica em Reinhart Koselleck, Ailton Krenak e Davi Kopenawa, Thamara de Oliveira Rodrigues (Universidade do Estado de Minas Gerais), articulando teoria da história, filosofia e antropologia, revisita a discussão sobre a experiência onírica na tradição ocidental para apresentar então, diferentes reflexões. As abordagens de Koselleck, Krenak e Kopenawa são analisadas a fim de indicar como os autores convocam outras formas de imaginação e, consequentemente, de práticas históricas possíveis que se distinguem da perspectiva do conhecimento ocidental.

No artigo Colonialidade e Política do Esquecimento, de autoria de Wagner Vinhas (Instituto Federal da Bahia), deparamo-nos com a questão do silenciamento da intelectualidade negra brasileira, atrelada a um profundo debate epistemológico de conceitos como “colonialidade” e “intelectualidade”, destacando o que podemos compreender conceitualmente como “intelectualidade negra”. Através da análise do trabalho de três grandes intelectuais representativos, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales e Abdias do Nascimento, o texto conclui que a exclusão de autores negros e negras é resultante do que determina a posição no campo intelectual no Brasil, indo além de um capital específico como classe, escolaridade e origem, transferindo para esse mesmo campo estruturas de um espaço social circundante: raça, gênero, classe.

Em A História da Nação Brasileira de José Oiticica (1910): olhar sinóptico e políticas do tempo em um projeto historiográfico moderno, o autor Vicente da Silveira Detoni (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) procura demonstrar uma inovação no campo da historiografia brasileira anterior à década de 1930, marcada pelos intelectuais Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior. A crítica a uma historiografia de cunho evolucionista e teleológica já pode ser identificada no ensaio de José Oiticica Como se deve escrever a história do Brasil, publicado em 1910. Este procurou pensar um novo método alternativo de análise para a história brasileira contraposta àquela pensada por Karl Von Martius, em meados do século XIX, que acabou por servir de base à historiografia que seria veementemente criticada no século XX. Com isso, o artigo propõe a desestabilização de narrativas unívocas que procuram garantir uma identidade disciplinar à historiografia brasileira.

Por fim, o artigo A história do eurocentrismo na história intelectual, de autoria de André Luan Nunes Macedo (Universidade Federal de Ouro Preto), visa um levantamento teórico e historiográfico acerca do conceito de eurocentrismo a partir de diferentes perspectivas intelectuais, sendo essas: a crítica à Global History, desenvolvida por Perla Pacheco; o póscolonialismo indiano, representado especialmente pelos Subaltern Studies através de Dipesh Chakrabarty e Sanjay Seth; o decolonialismo latino-americano de Anibal Quijano e Enrique Dussel; e os estudos vinculados à tradição marxista propostas por Andre Gunder Frank e Samir Amin.

Nossa edição do primeiro semestre de 2020 é concluída com duas resenhas de livros recentemente publicados e que refletem sobre os desafios contemporâneos impostos à disciplina da história em seus distintos âmbitos (institucional, epistemológico, ontológico etc.). Em História (in)Disciplinada nos dilemas do presente, Luiz Alexandre Pinheiro Kosteczka (Universidade Federal do Paraná), examina o livro A História (in)Disciplinada Teoria, ensino e difusão de conhecimento histórico (2019). Já em Atualismo e história: proposta de um novo conceito para pensar o contemporâneo, Manoel Gustavo Souza Neto (Universidade Estadual de Goiás) analisa a obra Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI (2018).

Desejamos a todos e todas uma excelente leitura!

Murilo Gonçalves (UFG)

Margareth de Lourdes O. Nunes (UFG)

Piero Marino (Università degli Studi di Napoli Federico II)


GONÇALVES, Murilo; NUNES, Margareth de Lourdes O.; MARINO, Piero. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.23, n.1, julho, 2020. Acessar publicação original [DR]

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