Kalunga: os donos da terra | Thais Alves Marinho

O livro de Thais Alves Marinho, intitulado Kalunga: os donos da terra resulta de um trabalho excepcional de pesquisa realizado durante sua busca pelo título de mestra em sociologia pela Universidade Federal de Goiás. A trajetória de construção dessa pesquisa/livro perpassou por diversas obras no que tange o tema pesquisado, porém, teve como marco norteador a pesquisa de campo, e uma leitura minuciosa das obras de Mari de Nazaré Baiocchi, autora de referência e a primeira pesquisadora a publicar sobre os quilombos Kalunga. Mesmo tendo como tema a relação de territorialidade Kalunga com a identidade, a obra nos proporciona uma visão panorâmica sobre a escravidão negra no Brasil, a formação dos quilombos, a construção dos conceitos que permeiam as palavras quilombo e quilombolas, apontando as visões das ciências sociais e a visão política construída pelos movimentos sócio-políticos de resistência. Ainda é possível perceber nesta obra conceitos e pré-conceitos que permeiam as palavras negros fugidos e quilombolas perpassando por suas relações com o mundo. De fato, nas páginas iniciais desta obra a autora nos chama ao universo histórico e social de sua pesquisa, ao seu objeto em si e dos diversos mundos do período escravocrata e pós escravidão.

A partir da perspectiva (hipótese) de que a relação entre identidade e territorialidade desses grupos ganha uma ênfase diferenciada a partir do reconhecimento constitucional, num processo que ela chama de etnicização, a autora adota como metodologia de pesquisa a observação participante, entrevistas informais e formais que partiam de um questionário pré-elaborado e pré-testado, além da história oral, sempre na tentativa de compreender os vários aspectos da cultura Kalunga, essenciais para compreensão da constituição de sua identidade e territorialidade, com vistas a produzir uma etnografia sobre o grupo.

Durante a apresentação dos pressupostos teórico-metodológicos, a autora dialoga com as acepções sobre etnicidade de Frederik Barth e de Pierre Bourdieu, apontando as diferenças epistemológicas entre os autores ao abordar os conceitos de etnicidade e em consequência de identidade étnica.

A perspectiva construtivista de Bourdieu é o motriz de todos os diálogos apresentados no texto, pois, respalda a dinâmica incessante de conformação e reestruturação vivenciada pelas famílias Kalunga. Nas duzentas e vinte oito páginas, desta obra, é possível vivenciar a história de vida desse grupo que vivencia uma relação conflituosa com sua identidade cultural em função do racismo, porém, em seu habitus fica evidente a relação ontológica com sua identidade étnica.

O livro está dividido em três capítulos: Trajetória dos negros ao longo da formação histórico brasileira: de quilombo à remanescentes de quilombo; A ocupação do Vão do Moleque: capela, taboca, corrente, marianinha e curiosa; Etnografia dos Kalungas: a vida do Molequeiro.

No primeiro capítulo a autora se ocupa em compreender a estrutura e a organização social do negro em Goiás desde o período da escravidão, suas relações com o sistema colonialista, captando a organização social composta pelos mesmos a partir dessa estrutura, que originou, entre outros, no habitus Kalunga. Buscando compreender os diversos processos que resultaram nas mais de 3 mil comunidades remanescentes de quilombo do Brasil na atualidade e, especificamente, a comunidade Kalunga. A autora apresenta ainda uma análise de documentos históricos que retratam a origem da comunidade Kalunga. Uma das peculiaridades desse capítulo é dada pelos apontamentos da autora à romantização do indivíduo quilombola, a preocupação em apresentar as ressignificações dos conceitos de quilombos e remanescentes quilombolas no processo histórico e político do uso dos termos. É possível perceber durante todo texto que a autora combate a visão, por muito tempo predominante na historiografia, de que os quilombos eram agrupamentos marginais ao mundo da escravidão, de que praticavam a política do isolamento, numa tentativa de reconstruir pequenas Áfricas como alternativas ao ambiente opressivo das senzalas. A autora mostra com sucesso que esse não foi em absoluto o caso dos quilombos Kalunga, mesmo sendo o isolamento algo apontado pela primeira pesquisadora destes grupos. O que se percebe na pesquisa da Dra. Thais Marinho apresentada nesse livro é que, como em muitos outros quilombos do século XIX, haviam relações contínuas, e muitas vezes profundas, entre quilombolas, cativos e opressores (senhores), relações econômicas, culturais e mesmo familiares. Essa relação se dava de forma passiva ou não, mas deixava vestígios no habitus desses grupos e com os Kalunga não foi diferente.

No segundo capítulo a autora apresenta o levantamento histórico cultural dos Kalunga, tendo como ponto de partida a constituição familiar do Vão do Moleque e sua forma de ocupação da terra. A partir dessa relação Marinho analisa a dinâmica de (re)configuração cultural, começando com o reconhecimento do indivíduo enquanto quilombola, apresentando mitos de origem da comunidade Kalunga e da passagem de Terras de Preto para Remanescentes de Quilombos; ou seja da institucionalização desse grupo e os efeitos desse processo na sua cultura. Nesse capítulo o leitor pode se debruçar sob a formação histórica dos quilombos do centro-oeste, perpassar pelas narrativas coletadas sob a origem e formação das famílias quilombolas registradas pela autora e outros pesquisadores utilizados por ela. O diferencial desse capítulo é o percurso feito pela autora para compreender a relação das palavras isolamento e ontrole de contato, ou seja, a relação entre quilombolas Kalunga e os grupos sociais que os cercavam, e a riqueza do levantamento bibliográfico apresentado no que tange à formação dos quilombos na região.

Pela análise da autora fica evidente que o quilombola era um membro da comunidade escrava e pós-escravidão. Ele frequentemente circulava entre a escravidão e a liberdade, ajudando toda coletividade dos escravizados a redefinirem-se, perante aos senhores, criando assim novos espaços de barganha.

Ser quilombola na atualidade é, então, um item do currículo de ex-escravizado, e isso tornou especialmente verdadeiro em certas conjunturas políticas, legitimando algumas posturas, e configurando um novo conceito de escravidão, onde a invisibilidade e o controle de contato são posturas naturalizadas nas relações de grupos como os Kalunga.

Esses impasses apontados não desfazem a beleza desse capítulo que, pelas narrativas apresentadas, é sem dúvida o mais prazeroso do livro.

No terceiro e último capítulo, Etnografia dos Kalungas: a vida do molequeiro, a autora procura apresentar a organização social Kalunga resultante desse habitus historicamente construído na atualidade. Durante toda escrita a autora parte da observação participante para uma leitura étnica desse grupo. Na construção dos capítulos os argumentos dos autores apresentados vêm respaldar a proposta da pesquisa de compreender a relação vivenciada pelo grupo no que tange à questão da territorialidade e da identidade dos mesmos. Porém, a obra apresenta muito mais que isso: ela traz o universo de relações entre os quilombolas e outros grupos sociais levando a refletir que essa relação mesmo no Brasil escravocrata ia além da senzala. A exemplo dos fugidos, que comercializavam com taberneiros e trabalhavam para fazendeiros e lavradores que os açoitavam, formando, em alguns casos, redes de interesses e solidariedades que integravam com os quilombos, isso em Goiás, bem como, em outras partes do Brasil. Com essa perspectiva, Thais Marinho nos coloca no campo da nova historiografia da escravidão e dos remanescentes Kalunga, imaginando os remanescentes enquanto sujeitos complexos que conceberam sua própria história em diversas direções e agiram com sentidos próprios, embora multifacetados, seja pela ascensão ou pela sobrevivência. Sendo, assim, em oposição a uma historiografia que só entende o processo histórico como uma sequência de movimentos estruturais na direção da superação do sistema vigente, o da opressão.

Por fim, essa obra cumpre ao que se propôs, a partir das memórias coletadas como fonte de dados, apresentar o elemento condutor fundamental para o entendimento da territorialidade Kalunga. A associação da memória consubstanciada com a identidade permitiu à autora e aos leitores olharem o objeto de estudo por meio de uma ótica diferente, revelando novas categorias, a exemplo, daquela citada acima nessa resenha.

Referências

BAIOCCHI, Meire. de N. Kalunga: Povo da terra. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 1999.

BAIOCCHI, Meire. de N. Calunga. ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS. Friburgo: 1982.

BAIOCCHI, Meire. de N. Kalunga: liberdade e cidadania. Revista do ICHL, UFG, ICHL, Goiânia, v. 4, n. 2, p. 219-222, jul./dez. 1984.

BAIOCCHI, Meire. de N. Calunga – Kalumba: Universo Cultural. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. v. 11. Goiânia: IHGG, Janeiro de 1986.

BAIOCCHI, Meire. de N. Kalunga: estórias e textos. Goiânia, SEEG, 1991.

BARTH, F. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P.; STREIFF, 1976.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand,1989.

BOURDIEU, P. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Ática, 1983.

BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

MARINHO, Thais Alves. Kalunga os donos da terra. Curitiba: Brazil Publishing, Brasil, 2019


Resenhista

Rosinalda Corrêa da Silva Simoni – Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2017). Mestra em Gestão do Patrimônio Cultural área de concentração em arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Graduada em História pela Universidade Estadual de Goiás. Professora Convidada de História e Estudos Culturais na PUC Goiás. Integrante do Grupo de Mulheres Negras Malunga e da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Diretora Fundadora da empresa Tekohá Pesquisas Patrimoniais. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MARINHO, Thais Alves. Kalunga: os donos da terra. Curitiba: Brazil Publishing, 2019. Resenha de: SIMONI, Rosinalda Corrêa da Silva. Kalunga: história e memória de um quilombo goiano. Revista Mosaico. Goiânia, v. 13, p. 189-191, 2020. DOI 10.18224/mos.v13i1.8276. Acessar publicação original [DR]

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