La política en las calles: entre el voto y la movilización (Buenos Aires, 1862-1880) | Hilda Sabato

Após a publicação de alguns artigos acerca das práticas políticas portenhas nos anos da chamada formação nacional Argentina, Hilda Sabato apresenta-nos agora os resultados finais de sua pesquisa. (Sabato, 1992, 1993) Nesse projeto, a historiadora tem se preocupado em perceber como a população de Buenos Aires se relacionou com o poder e quais foram os canais de comunicação legítimos entre Estado e sociedade.

Essa preocupação historiográfica pelas relações governantes-governados não tem sido exclusividade de pesquisadores da Argentina. Tanto lá como aqui, o fim do regime militar e a retomada do processo democrático têm colocado para as ciências sociais a necessidade de perceber as forma como a sociedade estabelece pressão política sobre o Estado. Ou seja, quais as formas possíveis de se exercer a cidadania. Nesse sentido, essa obra sobre o caso portenho é um belo contraponto para o estudo de José Murilo de Carvalho sobre Os bestializados do Rio de Janeiro nos primeiros anos da República (Carvalho, 1987, 1990, 1997).

A questão claramente colocada por Sabato nesse trabalho é saber como se relacionam Estado e sociedade ou, nas suas palavras, governantes e governados? Quais são as bases de legitimidade do poder? Como a população se relaciona com o poder?

O direito de voto na República Argentina já é universalizado para os homens nas primeiras eleições ocorridas após a emancipação da colônia e legitimado na primeira constituição nacional de 1821. Contudo, tal como o Brasil do século XIX as eleições argentinas foram marcadas pela fraude e pela baixa participação popular. Esses fatos serviram para a construção da hipótese do desinteresse político por parte dos setores populares.

Contestando essa historiografia, Sabato aponta que, no período estudado, articulou-se uma esfera pública onde a sociedade promovia debates acerca das questões políticas. Assim a autora propõem uma investigação em dois níveis: um o das práticas eleitorais marcadas pela violência e pela baixo índice de participação; outro o da esfera pública marcado por movimento associativista, pala emergência de uma atuante imprensa opinativa e pela formação de uma ‘cultura de mobilização’.

Para expor tal análise, o livro está dividido em três partes: na primeira é apresentado o cenário urbano portenho do período; na segunda, são analisadas as práticas eleitorais; na terceira, são vistas as manifestações políticas de rua.

Na primeira parte do estudo, Hilda Sabato destaca o processo de modernização burguesa que Buenos Aires vive com uma série de reformas urbanas que redesenham a cidade e com o surgimento de uma vida urbana pautada pelo associativismo e por uma imprensa atuante.

As reformas implementadas ampliam o espaço urbano, constroem e reformam praças, abrindo espaços públicos onde a população pode se reunir. Também é edificada uma série de prédios públicos que servem para definir o centro cívico onde se localiza o poder político e administrativo no interior da cidade. Sobretudo essas edificações também servem para produzir um ar de metrópole no lugar da cidade provinciana, construindo, no imaginário social, as possibilidades de mobilização política e de ação coletiva.

Também é percebida a existência de uma série de redes de articulação da sociedade civil portenha. Dados a dimensão das associações que se formam na cidade e o número de indivíduos que elas incorporam, a autora identifica a existência de uma prática social que ela nomeia como ‘fervor associativo’ (p.58). Formam-se, nesse momento, em Buenos Aires, uma multiplicidade de associações com as mais diferentes finalidades. São associações de caridade e de auxílio mútuo criadas por imigrantes, mas são também organizações de caráter classista que buscam intervir nas relações de trabalho na defesa dos interesses dos operários.

Paralela a essas associações, percebe-se também a existência de uma imprensa atuante e mobilizadora, pois existia na cidade uma multiplicidade de publicações de maior ou menor tiragem. Cada um desses órgãos estava vinculado a um determinado grupo social, a uma entidade associativa ou a um partido. Assim sendo, esses periódicos não se furtam do debate político e defendiam abertamente os interesses dos setores sociais que representavam servido tanto como palanque para a defesa de projetos como agentes mobilizadores da sociedade portenha.

A autora propõe que da articulação desses elementos, espaços urbanos públicos, associações e imprensa, vai se construir no interior da cidade uma esfera pública onde são debatidos e articulados interesses gerais da sociedade. A partir das associações e dos jornais, é possível se mobilizar a população urbana para as mais diversas manifestações populares que utilizam os espaços públicos como as praças. Isso possibilita a articulação de uma ‘cultura de mobilização’ (p. 70). Ou seja, podemos dizer que, em Buenos Aires de meados do século XIX, a mobilização pública é um mecanismo socialmente legítimo para a defesa de interesses políticos, ou seja, as manifestações de rua são exercícios da cidadania.

Na segunda parte desse estudo, Hilda Sabato se propõe a uma análise das práticas eleitorais desenvolvidas em Buenos Aires. Convém lembrar que na Argentina o voto universal (masculino) foi reconhecido mesmo ao analfabeto, logo após a sua emancipação da Espanha. Assim não houvera maiores embates pelo reconhecimento desse direito político na sociedade portenha.

Observando os dias de eleição, salienta que as jornadas eleitorais nesse período ocorriam com maior ou menor tranqüilidade a depender da radicalidade com que se dava a disputa entre os candidatos. Ganhar as eleições nesse momento dependia de controlar as mesas eleitorais e para tal eram preparadas ações de violência organizada constantemente e denunciadas como promotoras de fraudes eleitorais. Contudo, as eleições denunciadas não eram impugnadas o que nos leva a perceber que essas práticas eram socialmente aceitas, tendo, até mesmo os partidos concorrentes, o cuidado de formalizarem acordos prévios para regular as peleas eleitorais.

Esse aspecto violento das disputas eleitorais vai provocar um baixo índice de participação do eleitorado potencial. Entre 3% e 7% da população da cidade votava, sendo que, nessa parcela, estavam mobilizados muito mais os setores populares. Os setores sociais mais elevados, assim como os imigrantes que então eram uma parcela expressiva da população, abstinham-se de participar das jornadas eleitorais, em virtude da fraude e da violência generalizada que as marcavam.

Merecem uma atenção especial os mecanismos utilizados para o recrutamento e a mobilização desse eleitorado. Era comum aos diferentes grupos políticos organizar clubes que serviam como ‘redes de vinculação e mobilização’ do eleitorado (p. 113). Os clubes eram espaços de sociabilidade política onde os indivíduos se reuniam de forma permanente não apenas no momento eleitoral com vistas a debater questões referentes a vida política da cidade. Através desses clubes, os partidos legitimavam a escolha de seus candidatos e mobilizavam os eleitores para as urnas. No interior dos clubes, estabelecia-se a aproximação dos eleitores com os candidatos, construindo assim laços pessoais e um sentimento de igualdade e de pertencimento à agremiação política.

Um espaço privilegiado para o recrutamento de eleitores pelos clubes políticos eram os setores da administração pública, principalmente os equipamentos prestadores de serviços, como o caso das estradas de ferro que contavam com um grande número de funcionários. A hierarquia existente no interior da repartição era transferida para o interior do clube, estabelecendo, dessa forma, as fidelidades partidárias. Essa lealdade, contudo, não é absoluta. Mesmo havendo lideranças políticas de referência na política portenha, os clubes e seus membros oscilavam o apoio a um ou outro líder.

Mesmo com essa baixa presença nas urnas, as eleições ganham uma grande repercussão na imprensa portenha, percebendo-se um envolvimento social maior que aquele demonstrado pelo número de eleitores. Inclusive, os grupos sociais que não vão às urnas, como os imigrantes que não se naturalizam e a elite econômica, acompanham e debatem tanto o processo de escolha dos candidatos como os resultados eleitorais através dos seus jornais.

Os jornais partidários obviamente defendem os seus candidatos ao pleito. Mas os jornais das entidades não partidárias também tomam posição na disputa e defendem abertamente seus candidatos no interior do processo eleitoral, possivelmente refletindo ou influenciando a opinião dos setores sociais que representam. Os órgãos da impressa também reservam espaço para contra-argumentar com outros órgãos da imprensa, produzindo assim um significativo debate político.

Como conclusão dessa análise das práticas eleitorais no capítulo Hilda Sabato aponta que as eleições, mesmo sob denúncias de fraudes, são aceitas pelo conjunto da sociedade como instrumento de legitimação do poder. Contudo os resultados das urnas não podem ser tomados como a totalidade do debate eleitoral, uma vez que elas não dão conta de todo o movimento político da cidade.

Há uma parcela significativa da população portenha que não vai às urnas. Isso, entretanto, não pode ser entendido como uma ausência do processo eleitoral, visto que existia um amplo debate em torno do pleito registrado pela imprensa. A eleição, portanto, deve ser observada desde sua efetiva realização marcada pela arregimentação e pela violência, mas também pelos debates travados na sociedade através de comícios e dos jornais. Se nas eleições há uma baixa participação da população, na impressa, é possível perceber um amplo envolvimento da sociedade portenha com o debate político.

A terceira parte desse estudo é dedicada a outra dimensão da vida política da cidade de Buenos Aires, a esfera pública. Observando a dinâmica das manifestações populares do período, Hilda Sabato defende a tese de ter se formado, na sociedade portenha de meados do século XIX, uma ‘cultura de mobilização’; que justificava as manifestações de rua como mecanismos legítimos para a defesa de interesses coletivos.

Ao analisar as mobilizações públicas do período, a autora destaca que elas tinham um ritual e uma dinâmica próprios, o que lhes confere uma unidade cultural. A preparação de uma manifestação iniciava com a constituição de uma comissão que divulgava um documento contendo as justificativas para a manifestação, deixando claro suas demandas e reivindicações. Ao mesmo tempo, convocava uma reunião para debater a demanda em questão em um teatro da cidade. Somente após esse debate público, através das reuniões, mas também através dos jornais, é que se marcava uma data para a realização de um ato público em uma das praças da cidade.

Nessa análise das manifestações populares, a autora destaca que muitos eram os locais para as reuniões públicas: as praças, as ruas ou os teatros. Nesse ponto, a reforma da cidade teve particular interferência, pois foi ela que organizou a cidade, não com esse fim, evidentemente, dotando-lhe de espaços públicos onde a população podia se reunir, e de um centro administrativo, para onde a multidão podia se dirigir.

Nesses atos, é possível identificar a participação de um povo desvinculado do seu caráter de classe. Os jornais, ao relatarem o acontecimento, menciona sempre identidades genéricas como povo, imigrantes, comerciantes ou estudantes. É perceptível a presença de um público maior que o presente aos comícios eleitorais, o que denota que essas manifestações mobilizavam setores maiores que aqueles das jornadas eleitorais. Mas esses indivíduos eram apresentados no interior de suas entidades representativas o que mostra a manutenção da hierarquia das entidades representativas que se manifestavam com seus estandartes.

Nas descrições que os jornais fazem dos atos, percebe-se que os oradores são os promotores do evento. Esses indivíduos se repetem em mais de um evento e estão via de regra ligados a jornais ou a entidades representativas, o que faz perceber a existência de um grupo de lideranças e a importância das entidades e jornais como elementos catalisadores do movimento político.

Porém, sobretudo, a mobilização é uma prática socialmente legítima e eficaz para manifestar a opinião de diferentes grupos sociais. Ela tinha como objetivo estabelecer uma relação entre a sociedade e Estado, de forma a interferir nas decisões políticas. Chamando a população às ruas, as lideranças procuram somar apoios para a causa defendida, de forma a ganhar mais representatividade, mas também se procura fortalecer os laços identitários existentes entre as lideranças e os liderados.

Como vemos, essa prática social exterior aos mecanismos formais da política é culturalmente aceita como exercício do político. Mas isso não significa que todas as manifestações eram atendidas, porque isso dependia do momento político que se vivia. Outro limite para esses atos era a manutenção da ordem. A desordem e as práticas de violência comuns às jornadas eleitorais eram abominadas pelos organizadores e divulgadores. Um ponto sempre destacado nos relatos dos jornais era a tranqüilidade e a paz em que transcorreu a atividade.

Esse limite é trabalhado por Hilda Sabato na análise de um episódio violento. Quando o arcebispo de Buenos Aires decide passar o controle de uma escola aos jesuítas, ocorre uma reação contrária por parte da população, que, como de costume, convoca uma mobilização. Contudo esse ato se descontrola e acaba em invasão e incêndio da escola.

Essa violência é imediatamente condenada pela mesma imprensa e pelos mesmos clubes que no dia anterior a convocaram. Junto a isso, é perguntado qual entidade secreta teria planejado tal atentado, apontando-se tanto para a maçonaria, que logo se manifestou negando tal atitude, como para os carbonários, que não existiam na cidade.

A ação policial nesse evento prendeu um grupo heterogêneo de indivíduos que não podem ser enquadrados a um único grupo social. As versões relatadas nos depoimentos desses detidos também são as mais diversas possíveis. Da mesma forma, as falas do julgamento daqueles que foram indiciados refletem mais a defesa do ato de protestar do que a inocência dos acusados. Por fim, não há condenados pelo atentado ao colégio, justamente porque a sociedade portenha não estava interessada em condenar o ato, mas apenas a violência.

Uma outra oposição à cultura de mobilização se refere à formação das entidades de caráter operário. No período em que ocorre o atentado ao colégio, está se rearticulando uma seção portenha da internacional socialista. Esse pequeno grupo de imigrantes, ainda empenhados em organizar os regimentos da associação, não se envolve com o chamamento ou organização do ato, mas logo após o ocorrido, a polícia invade uma de suas reuniões fazendo detidos os seus participantes.

Da mesma forma, eram mal vistas as greves operárias. Essas ações reivindicatórias eram perturbadoras da ordem, pois apontavam para um conflito social aberto que muito desgostava os setores organizados da sociedade.

Fazendo um balanço da ‘cultura de mobilização’ portenha, Hilda Sabato insere essas práticas sociais ao momento de construção do Estado nacional que vive a Argentina em meados do século XIX. Este é um período marcado pela constante mobilização política na disputa entre as províncias e o porto e também pela formação da sociedade urbana que desarticula os laços caudilhescos tradicionais.

Nesse contexto, a mobilização é a expressão de uma comunidade que não se vê representada dentro do processo formal de participação política. Nenhuma das mobilizações visavam a tomada do poder político da cidade ou da federação. Eram antes atos de resistência social e de protesto na defesa de causas e temas gerais e hegemônicos na sociedade mas que estabeleciam como ponto de honra a ordem pública não respeitada nas jornadas eleitorais.

Essa cultura política é herdeira da tradição e mobilização política existente no começo do século marcado por revoluções. É também tributária das relações políticas de tipo moderno pautadas pela representação que então se constrói. Essas práticas sociais são possíveis por que há um aceite por parte da elite local que não vê ameaças à ordem, mas antes um espaço para a consolidação de lideranças dentro da sociedade.

Assim, é possível dizer como Hilda Sabato que ‘os portenhos se reuniam e se mobilizavam para manifestar opinião, defender seus interesses, atuar pública e politicamente, e desenvolveram uma capacidade especial para criar instituições duradouras ou efêmeras que expressaram essa vontade comum de ação.’ (p. 246)

Em sua conclusão, Hilda Sabato aponta que a relação entre governantes e governados em Buenos Aires de meados do século XIX se pautava pelas eleições e pelas mobilizações públicas. As eleições eram uma construção do pensamento político moderno que estava se construindo. Os partidos de então eram reproduções das relações clientelistas do caudilhismo e o mecanismo eleitoral fraudulento e violento o que levava a afastar parcelas significativas das populações urbanas.

Em outro sentido, formavam-se inúmeros entidades e jornais que atuavam na formação de uma esfera pública, onde eram possíveis a expressão e a manifestação política distante da violência. Nelas a idéia de igualdade, étnica ou de interesses era muito mais presente. Através delas, era possível mobilizarar a população para a defesa de interesses coletivos e interferir nas decisões tomadas pelo Estado.

Hilda Sabado ainda recheia seu trabalho com uma série de pequenos estudos de caso que corroboram suas hipóteses e ainda brinda seu leitor com a reprodução de alguns dos documento mais significativos que lhe serviram como fonte para a pesquisa. Esses elementos por si já justificariam a leitura da obra mas o trabalho de reflexão e a análise final da autora não podem ser ignorados. Para Sabato, Buenos Aires constrói, na segunda metade do século XIX, uma cultura política que considera legítima duas formas de relacionamento sociedade/Estado. A primeira são as eleições, que, controladas pelos partidos e pelas lideranças políticas da elite, estão pautadas pela violência e por isso mesmo delas se afastam setores ilustres da sociedade. A outra forma que os governados articulam para se fazer ouvir pelos que governam é a ‘cultura de mobilização’. As mobilizações de rua são práticas consideradas socialmente legítimas de resistência social. Por decorrência, elas fazem parte da campo de possibilidades da ação dos membros da comunidade política, ou seja, elas são uma forma de exercício da cidadania.

Este é um trabalho de grande rigor teórico e metodológico. Sabato apresenta ao público os resultados de uma ampla pesquisa documental, em que dialogou com grandes nomes da historiografia. Sem dúvida, uma obra que muito contribui para o entendimento da cultura política, não somente Argentina, mas também latino-americana.

Referências

SABATO, Hilda. Ciudadania el la historiografia política argentina. In: Anos 90: Porto Alegre. v.1, n.1, maio 1993.

_________. Ciudadania, participação política y la formación de una esfera pública en Buenos Aires, 1850-1880. Entrepassados: Buenos Aires. 1992. p.65-86

CARVALHO. José Murilo de. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

_________. A formação das almas. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

_________. Desenvolvimiento de la ciudadania en Brasil. México: Fondo, 1997.


Resenhista

Ricardo de Aguiar Pacheco – Mestre em História pelo PPG-História/UFRGS e professor da rede municipal de ensino PMPA.


Referências desta Resenha

SABATO, Hilda. La política en las calles: entre el voto y la movilización (Buenos Aires, 1862-1880). Buenos Aires: Sudamerica, 1998. Resenha de: PACHECO, Ricardo de Aguiar. Diálogos. Maringá, v.3, n.1, 367-374, 1999. Acessar publicação original [DR]

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