Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da história e filosofia da educação como disciplina acadêmica – BONTEMPI JÚNIOR (C)

BONTEMPI JÚNIOR, Bruno. Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da história e filosofia da educação como disciplina acadêmica. Uberlândia: Edufu, 2015. Resenha de: MUSTAPHA, Samir Ahmad dos Santos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 666-671, set/dez, 2016.

Bruno Bontempi Júnior apresenta em livro a tese defendida em 2001. O autor conseguiu, no trabalho trazer à luz uma geração de intelectuais da educação que, nas décadas de 50 e 60 (séc. XX), se constituiu em importante espaço científico e de atuação nos fatos políticos do período.

O livro retrata a evolução da universidade como espaço de pesquisa e de formação de quadros intelectuais para uma carreira no ambiente de uma cátedra. Também observa o processo de ambientação em uma cadeira e a definição de saberes em disciplinas, no caso, a constituição do campo de história e filosofia da educação.

A pesquisa surgiu em continuidade a um trabalho historiográfico anterior sobre a história da educação como “terreno do consenso” em suas temáticas e até predominantes nos cursos de pós-graduação em educação nas décadas de 70 e 80. Os trabalhos nesse período tinham suas interpretações teóricas direcionadas pela perspectiva reprodutivista e de intervenção social como superação das matrizes históricas anteriores.

Segundo o autor, a historia social das idéias que marca a historiografia educacional recente dissolve o pensamento individual na ideologia de classe e contrapõe ao “dado de realidade” da história, para assim denunciar os interesses ideológicos subjacentes ao pensamento educacional. (2002, p. 80).

O livro busca romper com a matriz teórica analisada trazendo à tona Laerte Ramos de Carvalho, precursor da sistematização do campo de saber da história e filosofia da educação. Esse personagem teve sua trajetória e produção histórica e filosófica apagadas do campo acadêmico devido à sua adesão ao regime militar no País.

A ruptura com a tradição historiográfica anterior fez com que pesquisadores retomassem o interesse histórico por trajetórias, atuação e formação de núcleo intelectual. Ao analisar a figura de Laerte Ramos de Carvalho o livro aponta o ambiente universitário da USP e a estreita ligação com a imprensa, em especial as páginas do jornal O Estado de S. Paulo.

O trabalho contribui para além da história das disciplinas e dos saberes didáticos. O estudo propicia a compreensão da circulação intelectual de Laerte Ramos de Carvalho, um dos principais intelectuais da educação entre as décadas de 40 a 60, que conquistou prestígio e influência nos meios político e cultural de São Paulo.

Esse personagem teve papel original na consolidação da Seção de Pedagogia da USP ao se dissociar da cátedra de filosofia, à qual estava vinculado, para migrar à cadeira de história e filosofia da educação, na qual desenvolveu sua trajetória catedrática. Carvalho nutre, em sua formação, uma herança intelectual de João Cruz Costa, autor da obra Contribuição à história das idéias no Brasil (1956).

O autor aponta a um ambiente hostil no Departamento de Filosofia, envolvendo figuras importantes no espaço da cátedra, como Bento Prado Júnior. Nesse período, surge o Instituto Brasileiro de Filosofia, importante instituição liderada por Miguel Reale e a criação da Revista Brasileira de Filosofia, publicação que pouco nutria os intelectuais da cátedra da FFCL.

Laerte Ramos de Carvalho, que publicara o trabalho A formação filosófica de Farias Brito, não conseguiu consolidar seu espaço nesse campo e, com um perfil menos diletante, formou seu núcleo de ação na cátedra de história e filosofia da educação, com importantes produções, como a obra As reformas pombalinas da instrução pública.

Porém, a produção filosófico-educacional do autor caiu no esquecimento, e as pesquisas de Bontempi Júnior contribuem à compreensão da “identidade cognitiva” da academia à época e os motivos do esquecimento dessa geração.

Além disso, foi significativa sua extensão intelectual atuando no jornal O Estado de S. Paulo (OESP), sendo, por mais de vinte anos, o editorialista de assuntos pedagógicos na publicação, algo até então não explorado nas obras sobre o tema.

Nesse contexto, Carvalho foi figura ímpar nas discussões em torno dos problemas da USP e atuante ativo na Campanha em Defesa da Escola Pública no momento de tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), conforme apresenta Carvalho (2003).

Bontempi Júnior traça no livro a trajetória, as filiações pessoais e os vínculos construídos na esteira de uma cátedra. O trabalho avança para o estudo das estratégias de projeção, de circulação e veiculação no meio universitário de um professor catedrático e o provincianismo, o simbolismo e o poder nesse núcleo de atuação. A publicação da obra propicia um novo alcance do importante trabalho e o debate historiográfico apresentado.

A cátedra era um lugar de poder estratégico, e o vínculo com o jornal OESP fez que o espaço institucional na faculdade tivesse papel decisivo na elaboração de um discurso pedagógico-político predominante nos meios acadêmico e intelectual.

Carvalho inaugurou uma tradição acadêmica pelo caráter das atividades didáticas nas disciplinas e um tipo de vínculo criado com seus alunos, assistentes e auxiliares. Nesse meio, uma gama de licenciados produziu teses no âmbito da disciplina, guiadas pela orientação do intelectual, irradiando, sobre a área da educação, novas perspectivas de análise acerca de questões pedagógicas. Entre os personagens vinculados a esse núcleo se encontram Roque Spencer Maciel de Barros, Jorge Nagle, Heládio Antunha e João Villalobos.

Essa tradição e esse reconhecimento acadêmico foram estremecidos com o Golpe Militar de 1964. A aliança de Laerte Ramos de Carvalho com o regime instaurado, assumindo cargo de Reitor na Universidade de Brasília, gerou o distanciamento da geração posterior de sua obra e de seu grupo intelectual.

A obra prefere não aprofundar diretamente esse conflito que resultou em rejeição interna e externa à sua figura nas disputas acadêmicas. Carvalho manteve vínculos com a cátedra e com a universidade mesmo no período que esteve ausente e no qual se manteve até a repentina morte em 1972. Por sua vez, o livro aponta aos mecanismos que levaram à negação da tradição por questões ideológicas. Esse grupo intelectual teve um ocultamento por parte da geração predominante na historiografia marxista da educação nas décadas de 70 e 80, esboçada na análise de Brandão ao explicar o positivismo de uma nova memória de educação como sendo a verdadeira: Tem sido muito comum, no campo da historiografia, [a] utilização de uma referência teórica que se busca em um certo marxismo, para servir de pauta explicativa à “evolução da história”. O solo histórico do objeto de estudo passa a ser utilizado exclusivamente para ilustrar uma determinada explicação que, quase sempre, é extraída diretamente dessa teoria desencarnada. (1999, p. 43).

A figura de Carvalho reflete o silêncio existente por muito tempo sobre a produção teórica da geração de 1950 e 1960. As pesquisas, em sua maioria, dedicavam estudos ao período do Estado Novo ou da Ditadura Militar. Quinze anos passados da tese publicada, ainda existem muitas lacunas a serem exploradas, e o trabalho contribui na busca de respostas históricas e produção de outras pesquisas sobre o período e as experiências daqueles intelectuais.

A atuação de Carvalho simboliza a redefinição do papel do intelectual e sua posição na universidade como irradiador de saberes, organizador de grupos de pesquisa, criador de instituições e atuando em outros espaços externos à academia.

A constituição da Faculdade de Educação tem Carvalho à frente como protagonista da empreitada, mas o preço dessa conformação do território institucional traz concessões políticas que não devem ser obscurecidas.

Dessa forma, o trabalho do autor consegue, de forma intensa, citar seus núcleos de atuação, mas deixa (como lacunas a serem complementadas) aspectos e motivações externas, diante do cenário de mudança de período histórico, o Golpe de 1964, que não devem ser menosprezados. As questões políticas também não devem servir para análises julgadoras do intelectual, visão empobrecedora que, por muito tempo, negou a importância de Laerte Ramos de Carvalho, como se lê: Fez com que o rompimento político com relação ao pensamento liberal que havia alimentado os esforços de investigação do grupo reunido em torno de Ramos de Carvalho. O obscurecimento dessa literatura e o restrito aproveitamento de seus resultados podem ser explicados, além disso, em função de rompimentos políticos entre os sujeitos da produção de 1970 e 1980 e seus antecessores imediatos. (BONTEMPI JÚNIOR, 2015, p. 35).

Mas seu envolvimento na Reforma Universitária e em aspectos políticos desse período não deve ser deixado de lado e precisa ser explorado, como aparece, por exemplo, no trabalho desenvolvido por Celeste Filho (2013). Esses fatores, certamente, influenciaram nas gerações que estiveram nas cadeiras da Faculdade de Educação e, consequentemente, na consolidação da disciplina “História e Filosofia da Educação”.

Referências

BONTEMPI JÚNIOR, Bruno. Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da História e Filosofia da Educação como disciplina acadêmica. Uberlândia: Edufu, 2015.

BONTEMPI JÚNIOR, Bruno. História da educação brasileira: o terreno do consenso. In: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.). Memória Intelectual da educação brasileira. 2. ed. Bragança Paulista, SP: CDAPH; Edusf, 2002.

BRANDÃO, Zaia. A intelligentsia educacional: um percurso com Paschoal Lemme por entre as memórias e as histórias da Escola Nova no Brasil. Bragança Paulista, SP: Ifan – CDAPH; Edusf. 1999.

CARVALHO, João do Prado Ferraz de. A Campanha de Defesa da Escola Pública em São Paulo (1960 – 1961). 2003. Tese (Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.

CELESTE FILHO, Macioniro. A constituição da Universidade de São Paulo e a Reforma Universitária na década de 1960. São Paulo: Ed. da Unesp, 2013.

Samir Ahmad dos Santos Mustapha – Doutorando pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), São Paulo, SP. E-mail: [email protected]

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