Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva | Marcos Edilson de Araújo Clemente

Diferente das abordagens históricas que visam reconstituir a trajetória de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, bem como o movimento de resistência sertaneja das primeiras décadas do século XX conhecido como cangaço, o professor da Universidade Federal do Tocantins, Marcos Edilson de Araújo Clemente, propõe analisar a forma como a temática tem sido apropriada pela Associação Folclórica e Comunitária Cangaceiros de Paulo Afonso (Bahia). Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva é também “consequência direta” das lembranças do próprio autor que, em sua infância assistia às apresentações desta agremiação..

Antes, contudo, Clemente busca entender o modo como outras cidades nordestinas se apropriaram deste legado histórico-cultural. Os lugares escolhidos refletem os caminhos trilhados pelo “rei do cangaço”, a citar, Serra Talhada e Triunfo, PE; Mossoró, RN; Poço Redondo, SE e Piranhas, AL. Assim como foram diferentes as circunstâncias da passagem de Lampião em cada uma dessas regiões, também são os modos de apropriação das memórias que resistem, sobretudo nas últimas décadas, através de instituições conhecidas por “museus do cangaço”. Sendo Lampião exaltado ou mesmo condenado, a exemplo da memória construída em Mossoró, importa é que, de qualquer forma, sua representação e a do cangaço são recorrentes na promoção das identidades destes lugares de memória.

Além dos museus, Clemente lembra outros mecanismos de apropriação que contribuíram para eternizar a memória do cangaço, logo após a morte de Lampião em 1938, a exemplo da literatura, do cinema, das artes, dos folhetos de cordel e da tradição oral, estes últimos constantemente utilizados na pesquisa em análise. É justamente com este caráter, que o autor vislumbrará o papel dos “cangaceiros de Lampião”, como também é conhecido o grupo de Paulo Afonso, que, de acordo com o trabalho, pode ser considerada a primeira “forma de representação coletiva do cangaço” (p.69). Ao perscrutar sua trajetória, podem-se delimitar períodos distintos, marcado pelo processo de institucionalização dos “cangaceiros” na década de 1980.

Originado em 1956, a evolução do grupo relaciona-se com a história da cidade de Paulo Afonso que, antes da implantação da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF) no final dos anos 1940, era uma vila do município de Nossa Senhora da Glória. Somente na década seguinte, após a empresa receber grande quantidade de operários sertanejos, abrigando em suas dependências verdadeiros bairros populacionais, é que Paulo Afonso recebe sua emancipação política, em 1958.

Contudo, a segregação entre os funcionários da CHESF era enorme. Os antigos trabalhadores rurais viviam em condições precárias de moradia, ao passo que os setores especializados, constituído principalmente por engenheiros, dispunham de boas residências, serviços básicos e até mesmo lazer, com clubes de diversão, cujo acesso era proibido aos operários. Diante disso, os sertanejos encontraram em seus festejos carnavalescos uma nova alternativa para o lazer. Após uma breve narração sobre o desenvolvimento da cidade dos “cangaceiros”, Clemente analisa as apropriações feitas pelo grupo.

Inicialmente, o autor não encontra uma explicação contundente para que as apresentações públicas dos “cangaceiros” ocorressem durante o período carnavalesco, já que poderiam se remeter mais facilmente à tradição junina. Ao que parece, a encenação contrapunha as práticas da elite que desfilava em blocos pelas ruas, brincadeira desconhecida pelos fundadores da agremiação na década de 1950.

Constituindo-se num espaço de sociabilidade, as reuniões entre os “cangaceiros” de Paulo Afonso ocorriam com, pelo menos, dois meses de antecedência aos festejos. Naquele momento, trocavam experiências acerca do que sabiam ou tinham ouvido falar sobre Lampião e outros cangaceiros. Dentre os pré-requisitos para participar dos subgrupos de “cangaceiros”, “volantes” ou “coiteiros” estava a conduta moral do membro, bem como a necessidade de autorização policial para utilização das armas confeccionadas.

Sem dúvida, um dos aspectos que caracteriza a apropriação do cangaço feita pelos idealizadores fora constituído através de sucessivas imbricações que consideram tanto a oralidade, quanto à escrita, além do imaginário dos mundos rural e urbano, decorrência da migração dos campos para o trabalho na CHESF. Em virtude disso, é comum que fatos narrados em folhetos de cordel ganhem veracidade, contradizendo até mesmo a historiografia, como, por exemplo, a crença de que Lampião não morreu em Angico. Atrelado ao fato de que a maior parte dos operários sertanejos era analfabeta, tudo aquilo que era ouvido, inclusive dos narradores de literatura popular, adentrava no imaginário dos “cangaceiros” de Paulo Afonso.

Portanto, na interpretação do grupo, a “volante” era sinônimo de violência, enquanto que os “cangaceiros”, portadores da justiça. Nas encenações, enquanto a primeira equipe se portava com seriedade, sempre à caça da outra, os “cangaceiros” brincavam e dançavam com o público que fazia questão de recebê-los em suas casas. A trama se condensa no desfecho, com a morte de Lampião. Dentre os protagonistas da brincadeira, está o “coiteiro”, caracterizado como “traidor”; “Lampião”, originalmente interpretado por um dos fundadores, Guilherme Luiz dos Santos; “Maria Bonita”, inicialmente interpretada por homens, já que não havia a participação feminina; e, “Zabelê”, o sanfoneiro de “Lampião”, originalmente interpretado por Nelson Ferreira da Silva.

Em 1988, com a legalização da associação, mudanças implementadas pelo seu estatuto geraram polêmica e discussão entre os membros. Segundo o costume, Guilherme dos Santos possuía a palavra final nas decisões que agora caberiam a uma diretoria executiva. Com isto, ressalta o autor, perdem-se o conjunto das experiências dos mais velhos (p.147). Outra novidade fora a ampliação dos locais de apresentação do festejo, exibidos em outras cidades e Estados. Mudou-se ainda o calendário, ocorrendo a encenação também no período junino. As transformações, percebe Clemente, visam atender as necessidades do turismo. Para ele, “ainda que continuem existindo, tais festas passaram ao campo do residual”, perdendo “parte considerável do seu significado primitivo” (p.150).

Finalmente, o autor explica o processo de aquisição da memória do grupo de Paulo Afonso a partir do conceito proposto por Maurice Halbwachs, ou seja, “a memória individual transforma-se na memória coletiva, inclusive pela forma como define a identidade do grupo” (p.156). De modo geral, o cangaço é visto como movimento politizador, capaz de representar bandeira de lutas contemporâneas. Além disso, a figura de Lampião é associada ao fenômeno como um todo, evitando-se o debate sobre o seu caráter, preferindo-se ressaltar que sua imagem não expressa herói ou vilão, mas sim, história.

O trabalho de Marcos Clemente é notório, na medida em que consegue resgatar parte da memória que vem sendo transformada, balizando momentos distintos da apropriação de uma cultura, dando voz àqueles que aos poucos cedem seu espaço para novas gerações. A escrita envolvente do autor nos faz querer acompanhar todo o processo de construção da memória dos “cangaceiros” de Paulo Afonso, inclusive nos brindando com os “causos populares” que abordam a vida sertaneja e se fazem presentes nos discursos de seus entrevistados. Sua curiosidade de infância denota a persistência que, muitas vezes falta aos historiadores mais experientes, ou seja, a superação de obstáculos na busca de fontes indispensáveis para a construção de seu trabalho. .


Resenhista

Aaron Sena Cerqueira Reis – Licenciado em História pela UFS. Membro do Grupo de Pesquisa História Popular do Nordeste. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

CLEMENTE, Marcos Edilson de Araújo. Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviedo Teixeira, 2009. Resenha de: REIS, Aaron Sena Cerqueira. Lampião na memória coletiva de Paulo Afonso – BA. Ponta de Lança- Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. São Cristóvão, v.3, n. 6, p.122-125, abr./out. 2010. Acessar publicação original [DR].

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