Leão, o Africano. A África e o Renascimento vistos por um árabe | Murilo Sebe Bom Meihy

Com um título que nos remete ao celebrado trabalho do escritor Amin Maalouf (As cruzadas vistas pelos árabes, 1988, ed. Brasiliense), segundo o autor, esta obra traz como uma das propostas analisar o ambiente cultural do Mediterrâneo do princípio da era moderna, ainda que aborde situações aproximadas em períodos anteriores. Neste cenário Meihy se debruça na surpreendente jornada de uma figura singular em suas diversas vidas que incluem eventos comuns às populações do entorno: o exílio, a experiência de viagens como modo de vida, a privação de liberdade, a escravização, a conversão forçada ao cristianismo, a trajetória de erudito, professor de árabe, tradutor, e, sobretudo, a atividade de escrita em meio a uma incessante circulação cultural, acompanhada inevitavelmente pelo protagonista e documentada em seu escrito Della descrittione dell’Africa e dele cose notabli che ivi sono.

Personagem nascido nos estertores do século XV, Leão Africano (mais conhecido como Hassan Ibn-Muhammad Alwazzán), viveu numa época de profundas mudanças sociais, políticas e religiosas em especial para os grupos minoritários muçulmano e judeu, no território que mais tarde constituiria a Espanha. Educado em universidade islâmica, tendo percorrido territórios em missões diplomáticas e comerciais a serviço do soberano de Fez, realizou peregrinações e viagens percorrendo o mundo moderno sob o domínio do Islã. Foi capturado em uma dessas jornadas por piratas sicilianos evento que muda a sua trajetória por incorpora-lo ao mundo cristão. Uma vez tendo retornado à África, depois de ter desempenhado as mais variadas funções, entre elas a de súdito do Papa Leão X, Hassan se reconverte ao Islã.

Sobre o personagem Leão Africano nas últimas décadas outros autores (tais como, o próprio Maalouf e mais recentemente Natalie Zemon Davis) já se dedicaram a tratar tanto dos episódios de suas jornadas como também de seus escritos do século XVI, tendo sido traduzidos para outras línguas, como o espanhol.

O trabalho de Meihy, oriundo de sua pesquisa doutoral, fornece-nos elementos para a compreensão das interações entre uma parte da Europa que se firmava cristã (e católica), e o mundo muçulmano próximo (ou Islã Ocidental) ou mais distante, ainda que seu olhar se detenha, como o título indica, na complexidade da fronteira africana. Neste sentido aponta ainda, para os muitos desafios que o humanismo ocidental do renascimento enfrentou na relação com o Islã, em suas múltiplas vertentes: árabe, andaluza, africana, otomana e persa.

Um dos aspectos mais originais desenvolvidos aqui e que possibilita a necessária reflexão sobre as estratégias dos indivíduos desse mundo relacionando-a ao personagem título, é a encarnação de Hassan como um scaltrito (ardiloso, com capacidade para sagacidade e astúcia) justamente pela afirmação do autor de que “o homem renascentista, sintetiza, em si, a multiplicidade da experiência histórica desse período”. A qualificação de scaltrito busca indicar um dos meios encontrados por membros da comunidade muçulmana (ou recém conversa) na Península Ibérica para conseguir sobreviver em meio a perseguições ou ao controle exercido por instituições como a Inquisição (após batismos ou conversões forçadas que permitiam a ação do Santo Ofício). Esta característica, de alguma forma vinculada a questões de identidade, revela-se um recurso individual para uma questão do coletivo de origem árabe que permaneceu na Península Ibérica após a queda do último reino muçulmano (Reino de Granada) em 1492.

A caracterização do notório viajante como scaltrito, tópico abordado em capítulo específico do livro, pode ser categorizada como uma das estratégias ou refúgios tal como outra prática desse época, a dissimulação (taqiyya) da verdadeira crença. Presente no texto sagrado da crença muçulmana e estabelecida por um jurista do Islã peninsular (o Mufti de Orã – ou de Almagro) este tipo de estratagema foi descoberto pela historiografia apenas no começo do século XX. Tal prática serviu também como alternativa para grupos minoritários que continuaram em suas terras nos territórios da Monarquia Católica após as conversões forçadas no século XVI. Ainda que Meihy não trate deste assunto em seu trabalho, a dissimulação se constituiu em opção específica para os habitantes granadinos, a partir de interpretações locais do texto sagrado. Destacamos este ponto para mostrar o caráter plural das saídas encontradas para escapar de tribulações e instabilidades sociais: “todo indivíduo social é um trapaceiro em potencial”, afirma o historiador sobre isto.

Assim, temos que sua abordagem do assunto referente ao “ardil social” se insere plenamente em aspectos essenciais da pesquisa: a questão da linguagem, as estratégias dos indivíduos em tempos incertos e de mudanças sociais abruptas. Para além destes tópicos, o autor escolheu um termo em língua italiana (com variações em castelhano ou francês), apontando para características individuais que remetem a termos correlatos nesse idioma fortemente associado ao ambiente Renascentista, moldando o perfil de quem buscava caminhos para escapar das adversidades. A partir daí o pesquisador passa a investigar em textos do século XVI e produzidas por indivíduos que alcançaram sua sobrevivência e sustento em meio a trajetórias de vida incertas (Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim, Girolamo Cardano e o próprio João Leão Africano).

É feita também uma necessária contextualização histórica dos povos muçulmanos do norte da África, permitindo posicionar o leitor no âmbito das dinâmicas relativas às dinastias que ocuparam essa região, bem como da movimentação de pessoas e culturas, inclusive de práticas alusivas a uma “moral circulatória” que dá margem a descrições sobre viagens, peregrinações, movimentação de mercadorias, indivíduos e mesmo ao corso.

O trabalho incorpora ao debate a questão essencial da circulação de pessoas e as fronteiras fluidas na bacia do Mediterrâneo, bem como as negociações e alianças que frequentemente ocorriam entre impérios e monarcas do Islã e do cristianismo, apontando para uma modernidade complexa retratada por narrativas de viajantes (que desde o período medieval vinham sendo produzidas, inclusive no mundo árabe e nesse âmbito denominadas de rihla), combinando diversos saberes.

No que tange a definições do que denomina como “experiência de tensão” concernente ao processo de tradução cultural (considerada como condição deste viajante e sua produção escrita), o autor trata do caráter interativo que a jornada de viagem proporciona, ao descrever e refletir sobre culturas e cenários distantes.

Ao tratar da trajetória deste homem notável e da sua produção de conhecimento, dentre elas a narrativa de viagem sobre o continente africano, Della Descrittione dell’Africa et Delle Cose Notabili Che ivi Sono (1526-1528), Sebe Bom Meihy realiza uma leitura que insere a sua pesquisa no âmbito da historiografia dos relatos de viagens, gênero diversificado e descortina também possibilidades para investigações históricas e interdisciplinares (geografia, literatura, escritas de si, entre outros). Para além da reflexão sobre lugares e culturas, o trabalho apresenta elementos para a percepção de dimensões de maior abrangência, quanto à modernidade, ao humanismo e aos renascimentos.

A busca por uma compreensão do homem seiscentista no contexto cultural e comercial é explorada por meio da trajetória e produção intelectual do personagem título, expressando a concepção pluralista do indivíduo moderno, voltado para o mundo, transpondo fronteiras (territoriais e individuais), ainda que muitas vezes comprometido inexoravelmente com a sua fé original, para a qual retorna no fim de sua trajetória de vida.

Através de seus escritos e pela sua condição de cativo e viajante e, sobretudo, migrante, Leão Africano é vislumbrado com a agência de interpretar o mundo no espaço por excelência onde ocorrem muitos desses processos: o mar Mediterrâneo. Em seu estudo, Sebe Bom Meihy se detém em uma área denominada de estudos mediterrâneos cuja abrangência é significativa por se dedicar a povos e regiões distintos embora com valores sociais aproximados, ainda que com certa vocação para o eurocentrismo. Analisar algumas dessas sociedades, segundo o historiador, tornaria favorável o entendimento da tradição árabe-muçulmana em Leão Africano. Isto se daria, sobretudo, por meio de dois conceitos: honra e vergonha, tratados por meio dos saberes oferecidos pela antropologia cultural.

Cabe também salientar a qualidade do texto que se reflete nas felizes escolhas do autor quanto aos tópicos que permitem lançar um olhar abrangente na cultura da época da primeira modernidade. Formulado a partir de um capítulo da tese doutoral do historiador, o livro contempla também estas temáticas vinculadas com as percepções da época moderna quanto aos confrontos e negociações das civilizações do entorno do Mediterrâneo, os desafios lançados pelas reflexões dos pensadores destes mundos conectados pelo mar interior, as questões que permeiam as múltiplas relações e o olhar sobre o continente africano: o comércio (e o consequente desenvolvimento econômico), o mar sob o prisma das disputas a ele relacionadas, a colonialidade, o Islã as conexões que a África ofereceu quanto ao que apresenta como “conexão cultural” no âmbito do Renascimento (“espaço de interstício”). Sobre este último ponto o autor se debruça em postulados próprios do século XVI, relativos aos espaços de um mundo que um dia foi romano e noutro tempo, de predominante influência islâmica (árabe ou otomana), entre outros.

Se Meihy observa aspectos e formas de leitura de uma historiografia que contempla o renascimento como um fenômeno primordialmente ocidental, o faz sem abrir mão de uma leitura crítica desta visão, realizando uma revisão do conceito de Modernidade como algo vinculado, primeiramente, às Penínsulas Ibérica e Itálica e, depois, à porção setentrional do continente europeu. O historiador faz nesta obra uso de visão de mundo que percebe uma “fluidez” entre as distintas regiões do planeta e que também participaram da construção desse novo mundo e do homem moderno.


Resenhista

Ximena Isabel León Contrera – Doutora em História Social, pesquisadora independente no GEHIM/USP (Grupo de Estudos em História Ibérica Moderna da Universidade de São Paulo) ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2558-2484


Referências desta Resenha

MEIHY, Murilo Sebe Bom. Leão, o Africano. A África e o Renascimento vistos por um árabe. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2017. Resenha de: CONTRERA, Ximena Isabel León. Um africano em seus múltiplos mundos. Projeto História. São Paulo, v. 72, p. 384-389, set/dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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