Modos de morar nos apartamentos duplex. Rastros de modernidade | Sabrina Studart Fontenele Costa

Um velho ditado inglês diz que a prova de um pudim é seu gosto – the proof of the pudding is the taste. Talvez isso valha para diversas das realizações humanas e para o abismo que vemos muitas vezes entre traço e resultado ou, como diziam nossos poetas, a distância entre intenção e gesto.

Refiro-me aqui a ideias do mundo da arquitetura e da residência. Riscos que muitas vezes vieram eivados de intenções (geralmente boas) e que passaram pelo escrutínio que só a passagem do tempo pode conferir. Leia Mais

Leão, o Africano. A África e o Renascimento vistos por um árabe | Murilo Sebe Bom Meihy

Com um título que nos remete ao celebrado trabalho do escritor Amin Maalouf (As cruzadas vistas pelos árabes, 1988, ed. Brasiliense), segundo o autor, esta obra traz como uma das propostas analisar o ambiente cultural do Mediterrâneo do princípio da era moderna, ainda que aborde situações aproximadas em períodos anteriores. Neste cenário Meihy se debruça na surpreendente jornada de uma figura singular em suas diversas vidas que incluem eventos comuns às populações do entorno: o exílio, a experiência de viagens como modo de vida, a privação de liberdade, a escravização, a conversão forçada ao cristianismo, a trajetória de erudito, professor de árabe, tradutor, e, sobretudo, a atividade de escrita em meio a uma incessante circulação cultural, acompanhada inevitavelmente pelo protagonista e documentada em seu escrito Della descrittione dell’Africa e dele cose notabli che ivi sono. Leia Mais

A Batalha dos Livros | Lincoln Secco

Lincoln Secco é docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) desde 2003. Seu leque de temáticas conta com razoável amplitude. No mestrado, pesquisou a recepção de ideias de Antonio Gramsci na realidade brasileira. Investida que resultou no livro Gramsci e o Brasil (2002) – uma espécie de état de l’art das apropriações do pensador italiano no país. No doutorado, operou uma certa mudança de sentido investigativo. De um estudo circunscrito à História das Ideias deslocou-se para uma análise político-social da crise do império colonial português. A empreitada, que se derivou em dois títulos (SECCO, 2004;2005), foi logo suplantada por outros interesses. Desde então, o docente dedica-se principalmente ao marxismo e às esquerdas, tanto em abordagens mais restritas às construções conceituais, quanto em investigações voltadas às expressões dessas correntes políticas como fenômeno social. O último trabalho de Lincoln Secco originou-se exatamente dessa segunda vertente. A obra lançada em 2017, intitulada A Batalha dos Livros, é uma pesquisa sobre a história editorial das esquerdas brasileiras. Em grande medida, trata-se de um intento de esmiuçar os caminhos textuais do processo de circulação de ideias de esquerda no Brasil.

Os cinco capítulos de A Batalha dos Livros de Lincoln Secco organizam-se a partir de um referencial diacrônico-qualitativo. Cada passagem concentra-se em um período no qual o autor identificou a configuração de uma qualidade editorial específica dentro das esquerdas. Todo o estudo é fundado em um prisma histórico que tem como balizas o final do século XIX e o princípio da segunda década do século XXI. A pesquisa possui como foco principal, embora não único, os projetos editorais e as publicações do Partido Comunista Brasileiro (PCB).1 Tal afirmação somente não é válida para o primeiro e o último capítulo, pois esse se dedica ao momento anterior a Revolução Russa; e aquele ao período pós-ditatorial quando as esquerdas encontravam-se hegemonizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e o PCB passava por uma profunda crise. Leia Mais

Paulinho da Viola e o elogio do amor | Eliete Eça Negreiros

Paulinho da Viola e o elogio do amor (1) é uma reflexão sobre a lírica amorosa das composições de Paulinho, cujo eixo é a separação dos amantes. Neste livro, Eliete Negreiros reavê o mito fundador do amor romântico, formulado pela primeira vez no Banquete de Platão. De início, cada um era um ser por inteiro que, por uma punição divina, é dividido em duas partes. A nostalgia da fusão originária e a busca da unidade perdida constituem uma inquietação permanente, a procurar no Outro o que completa e dá vida.

Conhecido nos tratados médicos antigos como “mal de amor”, a poética de Paulinho, mostra Eliete, revela seus sintomas, suas causas, seus efeitos e remédios. Ou não: “meu mal é um mal de amor / não há remédio que cure a minha dor”. Se paixão é desejo e falta, ele é “intratável”. Tal como no amor proustiano, o amor é uma doença irremediável. Diferem o intratável e o incurável, pois se este é um mal de que ainda não se encontrou remédio e tratamento, o intratável é um mal sem medicação eficaz ou cura vislumbrada, invulnerável a tratamentos ou às luzes da razão. Leia Mais

Os restauradores | Camillo Boito

Os Restauradores foi uma conferência realizada por Camillo Boito (1836-1914) na Exposição de Turim em 7 de junho de 1884 e posteriormente publicada em texto. Ela é considerada bibliografia básica para quem deseja entender sua obra e a história do restauro como um todo.

Boito foi uma personalidade muito importante para a conceituação teórica acerca da restauração. Ele formulou teorias influenciadas por inúmeros aspectos, conhecidas como restauro “científico” ou “filológico”, que resultaram numa espécie de meio-termo entre as conflitantes mais discutidas na época sobre restauração: as do francês Viollet-le-Duc e as do inglês John Ruskin. Leia Mais

Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política | Dainis Karepovs

Em artigo publicado na década passada, Dainis Karepovs ofereceu uma imagem para a historiografia dos instrumentos de luta da classe operária no Brasil. Segundo ele, a escrita da história dos organismos políticos de esquerda construiu um edifício, bem estruturado em alguns pontos e com lacunas a preencher em outros. A história do trotskismo no Brasil seria um “cômodo” da construção.1 Seguindo a imagem proposta por Karepovs, podemos dizer que o prédio e o cômodo destinado à história do trotskismo – que não é encerrado em si mesmo, estando interligado com os demais espaços da edificação – ganharam mais um ajuste com a publicação de Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política, obra que aborda a trajetória de atuação daquele que estava presente em Paris, em 1938, na conferência que fundou a IV Internacional, mas que também percorreu outros caminhos de elaboração e atuação política.

Dainis Karepovs já se encontrou antes com a figura de Mário Pedrosa. É dele – e de Fulvio Abramo – a organização do livro Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933), obra fundamental para os estudos posteriores acerca dos grupamentos de oposição de esquerda no Brasil, por publicar documentos que dão acesso às formulações políticas de sujeitos e organizações ligados ao pensamento dissidente. É lá que se encontra o clássico texto “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, produção que deu as bases teóricas e conceituais da Oposição de Esquerda no Brasil. A autoria é de Mário Pedrosa e Lívio Xavier, com os pseudônimos de M. Camboa e L. Lyon.2

Em Pas de Politique Mariô!, a escolha teórico-metodológica é a abordagem biográfica, na tentativa de compor uma “biografia política” de Mário Pedrosa. Desse modo, o período tratado no livro vai da década de 1920, com destaque para o ano de 1925, quando Pedrosa ingressa no Partido Comunista do Brasil (PCB), até 1980, ano de sua morte e de seu último ato de militância política, com a filiação ao Partido dos Trabalhadores em seu encontro fundacional.

Mário Pedrosa, nascido em 1900, era um estudante de Direito no Rio de Janeiro quando se aproximou dos comunistas. Leitor de publicações estrangeiras, sobretudo a revista francesa Clarté, Pedrosa adere às ideias de Leon Trotski e constrói uma Oposição de Esquerda no Brasil, junto de outros militantes comunistas como Lívio Xavier. Sua vinculação direta com o trotskismo vai até 1940, quando rompe com a IV Internacional diante da divergência acerca da caracterização da União Soviética como Estado Operário a ser defendido na Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, Pedrosa alinha-se aos norte-americanos na posição de considerar a URSS como Estado imperialista, tal qual as potências ocidentais sobreviventes ao conflito. As fontes utilizadas por Karepovs para apresentar a militância de Pedrosa na Oposição de Esquerda são de vários tipos. O autor utiliza a correspondência entre Pedrosa e Lívio Xavier, as publicações dos diversos organismos políticos trotskistas da década de 1930 e material da imprensa carioca.

O autor procura não tornar os momentos posteriores à militância de Pedrosa junto aos trotskistas como desdobramentos sucessivos de uma identidade política. Da mesma forma, a ruptura não é a extinção de qualquer relação com os sujeitos e as ideias que compunham a sua experiência nos anos 1930.

Após a ruptura com o trotskismo, Pedrosa engaja-se na construção da União Socialista Popular (USP), grupamento que levantava a bandeira da superação da ditadura de Vargas e visava a construção de um partido político socialista no país. Em 1945, a USP apoiou Eduardo Gomes para a presidência da República. No entanto, a tarefa principal de sua militância na década de 1940 foi a publicação de Vanguarda Socialista, jornal que apresentava-se como um órgão não submetido a nenhuma disciplina partidária, embora fosse construído por um grupo de pessoas com base intelectual comum. Karepovs destaca o papel do periódico como difusor de textos de autores marxistas de épocas e posições políticas distintas como Rosa Luxemburgo, Bukharin, Kautsky, Trotski, Karl Korsch e Julius Martov.

O autor chama a atenção para algo que se apresenta relevante: o trabalho intelectual como característica de um programa político. Mário Pedrosa, nos anos 1930, esteve à frente de um projeto editorial, capitaneado pela Editora Unitas, para pôr em circulação obras de autores marxistas. Nos grupamentos trotskistas dos quais fez parte, a educação política dos trabalhadores também possuía centralidade na atuação dos militantes. Isso leva a uma reflexão sobre a crença no poder da palavra, do estudo e da erudição como característica comum a um determinado grupo de militantes que se forjaram na Oposição de Esquerda na mesma década que Pedrosa, como Lívio Xavier e Edmundo Moniz.

O momento em que Pedrosa busca integrar Vanguarda Socialista à construção do Partido Socialista Brasileiro, ao lado da Esquerda Democrática, se apresenta como uma das contribuições mais inovadoras do livro. Filiado ao PSB a partir da segunda metade da década de 1940, Pedrosa desenvolve intensa oposição ao que considerava ser o varguismo e suas ramificações. Diante do suicídio de Vargas, reage com frieza, vendo aquele momento como oportunidade de libertação das massas frente às lideranças populistas. Tal oposição ao getulismo leva ao ponto alto de sua crítica, quando, após a vitória de Juscelino Kubitschek sobre Juarez Távora, Pedrosa questiona a legitimidade da votação do candidato vencedor. Tal posição o aproximava do udenismo, mas a retórica e as preocupações de Pedrosa mantém-se no campo da defesa do que imaginava ser os interesses do operariado brasileiro. As críticas ao presidente JK seriam amenizadas no fim da década, em um gesto de deslocamento de posições.

Outras elaborações relevantes são acompanhadas de perto pelo autor. Pedrosa, diante do golpe que depôs João Goulart, procura interpretar os motivos e os percursos do desenvolvimento da economia brasileira. Um militante, Pedrosa vai para o MDB e chega a se aproximar da Frente Ampla, mas sem participação efetiva. Busca reforçar as suas concepções ligadas à análise do “terceiro mundo” e se tornava cada vez mais próximo das ideias de Rosa Luxemburgo acerca do caráter da revolução e das organizações de trabalhadores. A “biografia política” se encerra com a morte de Pedrosa em um momento no qual ainda houve tempo de participar da construção do Partido dos Trabalhadores.

Karepovs destina uma segunda parte do livro à publicação de textos de excompanheiros de militância e atividade intelectual, publicados na imprensa partidária e comercial. O autor também apresenta anexos à obra. Lista os livros que compunham o programa editorial Biblioteca Socialista, a ser lançado pela Editora Unitas; relação dos artigos publicados em Vanguarda Socialista; inventário de textos, apresentações, prefácios e livros escritos por Mário Pedrosa. O autor oferece uma obra que realiza uma análise menos fragmentada da trajetória do biografado, demonstra como a identidade destinada à Mário Pedrosa como um trotskista se associou a um conjunto de elaborações muito distintas e conflitantes. Ao mesmo tempo, Karepovs realiza também um trabalho para o futuro, indicando fontes e contribuindo com pesquisas que virão.

Destaca-se o material presente no Centro de Documentação do Movimento Operário Mário Pedrosa – CEMAP, acervo que hoje encontra-se sob guarda do Centro de Documentação e Memória – CEDEM, da Universidade Estadual Paulista. Por fim, gostaria de citar uma lembrança curiosa. Ao visitar o arquivo em questão – no qual Karepovs teve papel destacado em sua criação – acessei um documento no qual estava uma relação de projetos de pesquisa a serem desenvolvidos pelos membros do CEMAP durante a segunda metade da década de 1980. Um dos projetos listados é a construção de um “Dicionário Biográfico” de militantes do movimento operário. No rol dos biografados, estão Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Hílcar Leite, Edmundo Moniz, entre outros. Aparentemente, o projeto vai se realizando, por outras formas, caminhos e ritmos.

Notas

1. KAREPOVS, Dainis. O Arquivo Edgard Leuenroth e a pesquisa sobre o trotskismo no Brasil. Cadernos AEL, v. 12, n. 22/23, p. 267-280, 2005.

2. ABRAMO, Fulvio; KAREPOVS, Dainis (orgs.). Na Contracorrente da História: Documentos da Liga Comunista Internacionalista (1930-1933). São Paulo: Brasiliense, 1987.

Victor Emmanuel Farias Gomes – Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil. Mestre em História pela Universidade Federal do Ceará; graduado em História pela Universidade Regional do Cariri. E-mail: [email protected]  ORCID iD: https://orcid.org/0000-0003-1654-673X CV   Lattes: http://lattes.cnpq.br/5047979239664818


KAREPOVS, Dainis. Pas de Politique Mariô!: Mário Pedrosa e a política. Cotia, SP; São Paulo: Ateliê Editorial; Fundação Perseu Abramo, 2017. Resenha de: GOMES, Victor Emmanuel Farias. A opção intelectual: Mário Pedrosa e a política. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n. 22, p. 235-238, set./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]

 

Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro – CASTILLO (VH)

CASTILLO Gómez, Antonio. Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro. Prefácio Marisa Midori Deaecto, tradução Claudio Giordano. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014, 208 p. NEUMANN, Eduardo Santos. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 58, Jan./ Abr. 2016. 

 

Enhorabuena, esta expressão tão castelhana – que felicita uma realização ou parabeniza um determinado feito -, sintetiza de maneira apropriada a publicação em língua portuguesa de mais um livro do historiador, especialista em cultura escrita, Antonio Castillo Gómez. Este é o primeiro livro de Castillo publicado no Brasil, apesar do autor já possuir diversos artigos e capítulos de livros em periódicos e obras coletivas editadas em nosso país.

Desde a conclusão de sua tese de doutorado, publicada em 1997, ele tem direcionado seus esforços para consolidar uma linha de pesquisa cuja atenção está voltada aos materiais escritos, particularmente aqueles produzidos na sociedade hispânica durante os séculos XVI e XVII. É nesse contexto, o Século de Ouro espanhol, que está situado este livro.

A seleção de textos reunidos nesta obra, uma compilação de trabalhos reelaborados e atualizados, são o resultado da trajetória de um pesquisador maduro e interessado em rastrear as distintas práticas da leitura apesar de suas pistas difusas, pois esta é uma atividade plural. É consenso entre os historiadores que o advento da Idade Moderna marca o ingresso definitivo da sociedade ocidental europeia nas práticas da comunicação letrada, período no qual é registrada uma ampliação das taxas de alfabetização e do número de livros impressos. Assim, as indagações do autor estão direcionadas às práticas de leitura na sociedade castelhana, com ênfase nas suas diferentes modalidades e experiências, seja a leitura erudita ou aquela praticada por pessoas comuns que mantinham contato esporádico com a cultura escrita, fosse através de uma gazeta, um panfleto ou mesmos as escritas expostas ou cartazes fixados nas portas das igrejas.

Afinal, no que consiste atualmente história da leitura? Para responder a esta indagação e necessário inseri-la na perspectiva da história social da cultura escrita. Quando surge este novo campo de estudo? Primeiro: trata-se de um termo recente, cunhado em meados dos anos 90, e designa um campo de investigação fértil, que tem conferido sinais de vitalidade à pesquisa histórica. A segunda consideração diz respeito a sua formulação. Sua gênese está relacionada a recuperação ou as reconsiderações em torno da leitura e principalmente da escrita como objeto de análise histórica, mudança iniciada nos anos 60. E a escrita e suas potencialidades tem em Armando Petrucci, paleógrafo italiano, o principal expoente dessa renovação. Ao propor uma “ciência da escrita” ele argumenta que os textos podem revelar além do seu conteúdo expresso, os valores e condutas de uma época. A partir da fusão de duas vertentes – no caso a história social da escrita e a história do livro e da leitura -, cuja reformulação permitiu uma renovação dos pressupostos teóricos e metodológicos que pautava tais temas, tais modificações conferiram ao estudo da escrita e da leitura um ponto de observação privilegiado para a compreensão das sociedades pretéritas.

O livro no seu conjunto está organizado em 6 partes. No primeiro capítulo, o autor aborda os diferentes significados da leitura na sociedade hispânica – o que se lia, como liam e as avaliações a respeito desse habito-, pois como registrou Miguel de Cervantes, através de seu imortal personagem, Dom Quixote, do qual se dizia que de “tanto ler secaria o cérebro”. No segundo dedica atenção a leitura erudita, a leitura por excelência nas avaliações mais tradicionais sobre o tema, e seu vínculo imediato com a escrita. O terceiro “Paixões solitárias”, apresenta um estudo sobre as práticas de leitura daqueles indivíduos privados de liberdade, que exatamente pela reclusão atrás das grades, buscavam na leitura um alento. No quarto capitulo “Ler em comunidade” trata das leituras femininas, particularmente aquelas realizadas por religiosas efetuadas em conventos, no caso a leitura de textos espirituais que tem nas monjas carmelitas descalças, seguidoras de Santa Teresa de Jesús, seu exemplo maior. Nos capítulos finais, Castillo dedica atenção a dois temas de sua predileção: as práticas leitoras cotidianas e o contato estabelecido com a leitura nas ruas, através de folhetos, avisos ou mesmo os pasquins infamantes. O último capítulo é dedicado ao contato com os livros e a leitura. Analisa como esta prática despertou em alguns o desejo de se converter também em autores, seja através da redação de diários ou de “autobiografias”, uma manifestação de uma memória pessoal.

Pelo exposto e evidente que diante da primazia da cultura letrada durante o Século de Ouro espanhol a leitura e a escrita promoveram transformações que afetaram tanto as formas de organização política como as relações sociais. Sem dúvida, a prática da escrita e da leitura foi mais acentuada nos espaços régios, nos círculos cortesãos, mas também estava presente nas oficinas dos artesãos e mesmo nas ruas. Em seus trabalhos o autor tem procurando descrever através da análise dos materiais escritos, tanto os permanentes ou efêmeros, os significados relacionados à presença da leitura e da escrita, indagando a respeito dos efeitos da alfabetização entre as camadas médias e subalternas.

Ao contemplar a atividade de leitores particularmente nos espaços urbanos Antonio Castillo centra atenção àqueles que ao transgrediram as normas vigentes, fizeram outros usos da leitura. Afinal, não saber ler não implicava obrigatoriamente estar excluído do mundo da cultura escrita, e muitos indivíduos ao compartilharem a leitura com os demais utilizaram-na para finalidades distintas. O foco são os outros leitores. As leituras realizadas pelos grupos menos favorecidos, que nos espaços públicos entram em contato com os textos lidos de forma coletiva, independente do fato de serem escutadas ou lidas, permitiram aos distintos públicos contato com os últimos acontecimentos ou mesmo o conteúdo das edições recentes.

No seu conjunto a análise morfológica dos produtos escritos, dos textos manuscritos, está voltada a reconstruir as possíveis conexões existentes entre as diferentes práticas letradas e seus contextos sociais de recepção. Esta é uma das particularidades presentes a história social da cultura escrita, ou seja, uma interpretação pautada em evidências, na constituição de um corpus documental.

Por suas inquietações Antonio Castillo Goméz não se rende às explicações simplistas a respeito dos recortes sociais em sociedades de Antigo Regime. Seu interesse são aqueles grupos cujas evidências de sua capacidade alfabética, apesar de mais esparsas, comprovam a abrangência social da leitura. E a escrita, apesar de suas implicações imediatas com o poder, nem sempre remete obrigatoriamente a uma leitura elitista da sociedade e seu estudo têm sinalizado outras indagações a respeito do consumo cultural. Enhorabuena, repito, os leitores brasileiros agora têm ao seu alcance este excelente conjunto de textos.

Eduardo Santos Neumann – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ivan Iglesias 184, Porto Alegre, RS, 91.210-340, Brasil [email protected].

 

Sociologia da leitura – HORELLOU-LAFAGE; SEGRÉ (ES)

 

HORELLOU-LAFARGE, Chantal; SEGRÉ, Monique. Sociologia da leitura. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. Resenha de: MAZZA, Dévora. Por uma sociologia da leitura. Educação & Sociedade, Campinas, v.34 no.123 abr./jun. 2013.

A ideia principal do livro Sociologia da leitura, de Chantal Horellou-Lafarge e Monique Segré (2010), assenta-se na importância da leitura como atividade integrada à vida cotidiana, que se tornou indispensável nas sociedades contemporâneas a ponto de “parecer” natural. As autoras rompem com essa visão naturalista e desenvolvem uma análise meticulosa e refinada da leitura como uma pratica sócio-histórica que se configura na tensa relação com as culturas, os hábitos dos diferentes grupos, os meios tecnológicos, as instituições, as políticas públicas e a lógica do mercado.

Interessantemente, as autoras problematizam: “O que é a leitura hoje? Quais as novas formas adquiridas por essa prática […] apesar da permanência da percentagem de iletrados? De que maneira os(as) leitore(as) se apropriam da leitura, se levarmos em conta sua classe social, sua idade, sua identidade sexual e seu nível de instrução?” (p. 18).

A fim de explorar estas questões, o livro se organiza em cinco capítulos. No Capítulo I – “A leitura e seu suporte” –, as autoras abordam questões relativas ao nascimento dos grandes sistemas de escrita há cerca de seis mil anos. Em dissertação que perpassa da escrita para a leitura e da cultura oral para a cultura escrita, apresentam, na sequência, o desenvolvimento das técnicas de fabricação do livro, que foi da argila à imprensa e assim subsequentemente até o surgimento do livro eletrônico; abordam a evolução e especialização dos ofícios ligados à produção, circulação e consumo do livro, evolução esta que tem início no livro como um objeto raro e reservado a poucos e que é lentamente transformado em um produto de massa, disponível, como qualquer outra mercadoria, nas prateleiras de livrarias, supermercados, bancas de revistas, feiras e brechós.

No Capítulo II – “A leitura e as instituições” –, as pesquisadoras vinculam o nascimento do leitor ao papel desempenhado pela Igreja e pelo Estado na Antiguidade. A partir deste quadro, o aprendizado da leitura é compreendido como uma ferramenta de propaganda e difusão tanto das ideias religiosas, quanto dos assuntos do Estado. Neste cenário de interesses contraditórios, a leitura vai se constituindo como prática que concomitantemente emancipa, enquadra, cria fronteiras sociais e é alvo de censura e de políticas públicas indutivas de formas de pensar, agir, sentir, relacionar. Nesse tópico, torna-se claro que a leitura, que inicialmente era privilégio reservado às elites e aos adultos, vai lentamente se estendendo a outras classes, frações de classes e grupos etários.

No Capítulo III – “Ler, um aprendizado escolar determinante” –, as autoras discutem o papel específico da escola e dos métodos de ensino e aprendizagem da leitura na França, tendo em vista o domínio da língua oral, da escrita e da leitura pela criança. Se, por um lado, a escola se afirmou como a instituição que tem como função “ensinar tudo a todos” (COMENIUS, 1996), por outro lado, os resultados alcançados sugerem que a construção da leitura como um costume compartilhado por todos chama uma ação conjunta da família e de outros espaços, meios e agentes. Sobre este tema, as autoras apontam que:

A relação entre instituição escolar e atividade de leitura é complexa: varia conforme os indivíduos e seu meio social de origem, e conforme suas representações da instituição e dos professores. A escola dá condições de adquirir as aptidões necessárias para ler, é uma instância que dá legitimidade às leituras, mas, devido às normas que transmite, às coerções diretas e indiretas que exerce, corre o risco, ao mesmo tempo, de criar entraves para uma possibilidade de leitura como prazer e distração. (p. 89)

Como conciliar, na instituição escolar, a leitura prescrita e necessária – considerada como um dever, em todas as atividades ensinadas – com a leitura-prazer, reconhecida como uma distração e um gosto? São problematizações suscitadas pela leitura do livro.

No Capítulo IV – “Uma prática cultural diferenciada” –, o livro realiza uma discussão que relaciona o ato de ler, os leitores e os suportes de leitura de acordo com as diferenças de classes sociais, grupos profissionais, sexo, faixa etária e nível de escolaridade. A partir disso, sugere que hoje é mais difícil afirmar que uma determinada classe, ou um grupo, seja herdeira ou detentora da cultura considerada legítima, tal como afirmou Bourdieu e Passeron (1964) nas pesquisas realizadas sobre os hábitos de leitura dos estudantes universitários franceses.

Pela perspectiva sociológica, é possível apontar as regularidades e as singularidades que cercam a leitura. As regularidades apontam que os leitores hoje se diferenciam pelo conteúdo de suas leituras e que, “apesar de sua relativa banalização, o livro continua sendo um bem reservado àqueles que gozam do beneficio da cultura” (p. 105), que, “quanto mais se ascende na hierarquia social, mais aumenta o número de livros lidos” (p. 105), que “as atividades masculinas, em particular voltadas para o ‘mundo das coisas materiais’, reclamam leituras técnicas e científicas” (p. 119), que as atividades das mulheres “mais ligadas ao mundo das ‘coisas humanas’ […] envolvem leituras documentais sobre os problemas de saúde e doença, a educação, a infância, a crise da adolescência” (p. 120). As singularidades sugerem que, pelo contato e pela divulgação, os interesses de diversas categorias sociais e grupos etários, em matéria de leitura, tendem a se assemelhar. Nesse sentido, a leitura deixa de ser uma prática distintiva, se transformando em prática de usos sociais diversos.

No Capítulo V – “As modalidades da leitura” –, as autoras afirmam que o amor pela leitura não é um dom inato, mas um exercício que vira necessidade na medida em que é incorporado como hábito. O gosto pela leitura, a relação sensorial com o livro, “a dor da vida sem os livros” (p. 122) são sentimentos ignorados pelos não leitores. As maneiras de ler dependem das condições de leitura, dos momentos e tempo que lhe são concedidos, e do papel simbólico que lhe é atribuído. A leitura pode acontecer como um ato individual, particular, que se efetiva no silêncio, e nos espaços secretos e íntimos, ou como prática coletiva, comentada, realizada em reuniões em encontros públicos e serões. Pode ser leitura de um livro do começo ao fim ou uma atividade fragmentada, quebrada, descontínua. Pode ser leitura de texto, de figuras, fotos, quadrinhos.

A modalidade de leitura que se generalizou na atualidade enquadra-se no processo gradativo de recalque das paixões e emoções e na passagem das coerções impostas de fora para a autocoerção (ELIAS, 1969). Ela configura-se como ato solitário exercitado no âmbito privado, segundo um padrão burguês. Ao mesmo tempo, é importante considerar a leitura como “atividade dinâmica, em constante evolução; onde as maneiras de ler, compreender e interpretar variam segundo as aptidões e investimentos individuais e coletivos e os modos de apropriação dos textos são frutos de criação, invenção e movimento” (p. 144).

Nesse sentido, a leitura é um processo que alterna liberdade, criação e coerção. Liberdade, porque o texto é sempre inacabado e aberto; criação, porque suscita o trabalho imaginário do leitor e a cooperação ativa; coerção, posto que o texto emoldura-se em pontos de ancoragem que induzem à compreensão (p. 139-140). Apesar disso, é possível afirmar que a apropriação de um texto depende sempre dos horizontes e expectativas do leitor.

Em paralelo, as autoras apontam que o livro convive com uma profusão de suportes de leituras e resiste a uma multiplicidade de tecnologias da comunicação e informação, tais como cinemas, computadores, televisão, jogos eletrônicos, sites de buscas e de relacionamentos. Ainda assim, a leitura continua se afirmando como uma atividade errante que permite rotas de fuga, difusão de ideias e polissemia de sentidos.

O livro faz-nos compreender que a leitura se realiza nas fronteiras movediças dos determinismos sociais, da cultura de massa, da lógica de produção, circulação e consumo do livro como mercadoria, e, ao mesmo tempo, provoca voos que alimentam a reflexão crítica, a imaginação criadora e os movimentos libertários.

Por fim, como afirma Rancière (2010, p. 44):

[…] o livro é uma fuga bloqueada: não se sabe que caminho traçará o estudante, mas sabe-se de onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade. Sabe-se, ainda, que o mestre não terá o direito de se manter longe, mas à sua porta. O estudante deve ver tudo por ele mesmo, comparar incessantemente e sempre responder à tríplice questão: o que vês? O que pensas? O que fazes com isso? E, assim, até o infinito.

Boa leitura!

Referências

BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. Les héritiers. Les etudiants et la culture. Paris: Minuit, 1964.         [ Links ]

COMENIUS, J.A. Didactica magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Introd., trad. e notas de Joaquim Ferreira Gomes. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 .         [ Links ]

ELIAS, N. La civilization dês moeurs. Paris: Livre de Poche, Pluriel, 1969.         [ Links ]

HORELLOU-LAFARGE, C.; SEGRÉ, M. Sociologia da leitura. Trad. de Mauro Gama. Cotia: Ateliê Editorial, 2010. (Titulo original: Sociologie de La Lecture).         [ Links ]

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Cinco lições sobre emancipação intelectual. Trad. de Lilian do Vale. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.         [ Links ]

Débora Mazza – Pós-doutora em Sociologia e professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

Retrato do Brasil em cordel | Mark Curran

Retrato do Brasil em cordel é o mais recente livro do pesquisador norte-americano Mark Curran sobre a literatura de cordel brasileira. Professor aposentado de Língua Portuguesa e Estudos Brasileiros da Arizona State University, Curran é autor de vários livros e artigos sobre o cordel desde os anos 1960, em um contexto no qual vários pesquisadores estrangeiros vieram ao Brasil para estudar esta literatura, vista então como a expressão da cultura popular nordestina e brasileira.2

Mark Curran informa na “Introdução” que o livro “não é teórico em sua abordagem; ao contrário, é descritivo e, principalmente, informativo”, tendo como objetivo “contar uma estória, recontar o que o cordel (um meio folclórico-popular) diz dos brasileiros e do Brasil.” (CURRAN, 2011, p. 16). Desse modo, o autor deixa claro que o livro não se destina exclusivamente ao meio acadêmico, mas sim ao público em geral, utilizando para isso uma linguagem bastante acessível. Leia Mais

Esplendor do Barroco luso-brasileiro – TOLETO (S-RH)

TOLEDO, Benedito Lima de. Esplendor do Barroco luso-brasileiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2012, 368 p. Resenha de: SANTOS, Izabel Maria dos. O barroco e seu esplendor, no Brasil e em Portugal. sÆculum REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, [28] jan./jun. 2013.

Arquiteto e urbanista por formação, Benedito Lima de Toledo é professor titular de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Especialista nos estudos sobre a formação da cidade de São Paulo e autor de vários livros a respeito da História da Arquitetura da referida cidade, Benedito Lima de Toledo é referência quando o assunto é a arquitetura e o urbanismo da maior metrópole do país e sua trajetória intelectual tem sido voltada para questões e assuntos ligados à terra da garoa.

Em seu último livro, porém, Lima de Toledo envereda pelo fantástico universo do Barroco e resvala em um dos períodos mais ricos da arte brasileira, em que podemos perceber três séculos das mais variadas formas de manifestações artísticas marcadas pela atmosfera emocional e mítica característica da estética barroca. O leitor é convidado a mergulhar em 365 páginas de História e rico acervo visual para entender os caminhos e descaminhos do estilo europeu em terras tupiniquins.

O livro é dividido em 17 capítulos e traz, além de um vasto material fotográfico, mapas e desenhos, um aporte teórico e uma densa bibliografia sobre o tema em debate. O autor inicia a obra abordando as diversas teorias acerca do Barroco e a ainda candente querela acerca da periodização do movimento, sempre fazendo ligações diretas com a Arquitetura, seu lugar de conforto. Ao longo de todo o livro, Lima de Toledo consegue trazer a teoria para explicar suas ideias a respeito das mais diversas características daquilo que define como Barroco luso-brasileiro, comparando monumentos erigidos no Brasil com outros, localizados em Portugal, tornando a discussão compreensível e, de maneira interessante, indiscutivelmente didática.

Enquanto no primeiro capítulo Lima de Toledo, ao discutir as teorias do Barroco lançadas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, vai de Pierre Lavedan, passando por Lourival Gomes Machado, até Heinrich Wölfflin, e deixa claro que o Barroco já foi visto, entre outras coisas, como arte da Contrarreforma e como arte do Absolutismo. No segundo, ele discorre sobre a questão da periodização e cronologia do Barroco no Brasil e defende que podemos estabelecer três etapas de evolução do barroco no Brasil, afirmando que a primeira etapa do barroco nos trópicos brasileiros foi uma tentativa de reproduzir os padrões europeus mesmo sem ter os meios necessários, a segunda etapa foi marcada pela Restauração de 16402 e pela descoberta do ouro no território brasileiro, que teria feito com que a Coroa portuguesa voltasse seus olhos para a sua rica colônia tropical e a terceira e última etapa foi caracterizada pelo apogeu da riqueza e do ouro e pelo período de produção das mais originais manifestações da arte barroca do Brasil.

Para Benedito Lima de Toledo, quando falamos em Barroco nos referimos não só a um estilo de arte, mas a uma autentica civilização. Ele acredita que o barroco está não só na arte e na mentalidade, mas inclusive na formação espacial da própria cidade e isso se confirma, segundo o autor, no fato de as cidades que nasceram à época do Barroco terem uma estrutura diferente das demais, ou seja, uma configuração específica. As cidades portuguesas, portanto, não fugiriam a esta regra e teriam se desenvolvido à luz das imposições barrocas e da influência mediterrânea, e este legado teria chegado às enladeiradas e mal ajambradas ruas do território brasileiro, encontrado assim terreno propício ao desenvolvimento, de sua chamada, civilização barroca. O mundo colonial estava se barroquizando, em especial, devido à semelhança topográfica encontrada pelos portugueses nas cidades do Brasil, especificamente, nas cidades mineiras.

Após a explanação teórica e a cronologia, e deixando clara a ligação das manifestações barrocas do Brasil com as de Portugal, o autor começa a traçar um detalhado panorama da arte e da arquitetura no Brasil. Ele inicia falando um pouco sobre a arquitetura Jesuíta no Brasil, passa pela Franciscana e chega, por fim, a Beneditina. Em seguida, faz um apurado estudo sobre a azulejaria e a talha brasileiras e ainda nos traz algumas palavras sobre o rococó mineiro, sobre a arquitetura de mineração e a arquitetura civil e sobre a pintura e a cerâmica produzidas no Brasil. Ou seja, o autor nos dá um panorama geral sobre o comportamento e a adaptação do estilo barroco no Brasil sempre deixando claros os seus antecedentes portugueses em todas as suas formas de manifestação. Mas afinal, para Lima de Toledo que rumos teria tomado o Barroco ao aportar nos trópicos? Segundo o autor, a especificidade barroca pode ser percebida mesmo em território europeu, antes de mais nada, pela configuração espacial e arquitetônica das cidades que surgiram na época do Barroco, sobre isso Lima da Toledo afirma que:

[…] as cidades nascidas à época do Barroco, ou que então conheceram florescimento, têm configuração específica, criando por vezes surpresas, como espaços abertos em meio a traçados irregulares de rua, frente a edifícios, só perceptíveis quando aí chegado, o que pressupõe movimentação do observador. (2012, p. 31)

Nesse sentido, podemos perceber que a distribuição espacial das ruas e dos prédios obedece às leis de configuração barrocas, onde o espectador é convidado a movimentar-se para observar com precisão as formas, linhas e curvas dramáticas características do estilo em questão. Essa peculiaridade por ser conseqüência da mentalidade barroca acaba transparecendo em todas as manifestações artísticas, sociais e culturais da Europa, inclusive nas soluções encontradas para problemas públicos como o abastecimento de água. Sobre isto, o autor afirma que o problema foi resolvido com a instalação de pequenos aquedutos e chafarizes ao redor das cidades. Esses chafarizes, porém, acabaram tornando-se símbolos de poder e de autoridade e ostentavam um rico conjunto de formas, constituindo-se como verdadeiras obras de arte.

Também como conseqüência dessa nova mentalidade a imagem passa a ter o destino certeiro de comover até mesmo os mais indiferentes à fé através da emoção, da dramaticidade e do realismo. Esse apego a imagem dramática acaba chegando aos grandes templos e igrejas da época e encontra na talha dourada e na música a alquimia perfeita para encher de emoção e dramaticidade a estética da época.

A preocupação com a expressão dramática era tanta que Lima de Toledo chega a firmar que “nos retábulos dos altares, colunas, entablamentos, frontões, tudo perdeu sua função estrutural, para se tornar elemento expressivo.” (2012, p.35).

Assim, o autor deixa claro que o Barroco é muito mais que um estilo, é uma mentalidade, uma civilização, e que isso pode ser comprovado na medida em que percebemos que a Europa barroca alimenta-se de todos os sentidos e sentimentos proporcionados pelo estilo e que isto é feito em tão alto grau que não fica restrito à arte, reverbera também nas manifestações cotidianas, no equipamento público, como os ricos chafarizes da época, no equipamento domiciliar, como o mobiliário, no vestuário e até nos hábitos daquela sociedade, ou seja, para Lima de Toledo nenhuma forma de expressão da época escapou ao conceito barroco.

Assim, o Barroco, desconhecendo limites, chegou ao Brasil pelas mãos dos portugueses e logo tratou de adaptar-se à região, adaptação esta que encontrou facilidades devido à semelhança espacial entre algumas das mais antigas cidades brasileiras e as cidades portuguesas, já que, segundo o autor, os portugueses, donos de uma forte tradição marítima, historicamente não se incomodavam em desenvolver seu caminhos e sistemas de comunicação terrestres e eram completamente indiferentes à qualquer preocupação com a ordenação de ruas e cidades, tanto na Metrópole, quanto em sua porção colonial da América. Dessa maneira, a desorganização estrutural das cidades portuguesas acabou encontrando semelhanças nas cidades brasileiras, sobre isto Lima de Toledo afirma que, as exceções a este traçado, cidades como Recife e Mariana, devem seu plano regular a agentes externos e não aos esforços portugueses.

As cidades brasileiras, portanto, obedecem às mesmas regras de ordenação espacial das portuguesas e acabam herdando características consequentes da tradição portuguesa como a maritimidade, além, é claro, de constituírem-se como grandes espaços abertos diante das Igrejas e de seus elementos externos como o adro, as escadarias e o próprio cemitério. Dessa forma, muitas das cidades brasileiras, em especial as cidades mineiras, assumem semelhanças, não só de ordenação, mas, inclusive, de topografia, com as cidades portuguesas e acabam tornando-se palco perfeito para a implantação e adaptação da mentalidade e do conceito barroco. A respeito disto o autor afirma:

Essas cidades mineiras lembram as cidades montanhosas do norte de Portugal, com suas ladeiras e terreirinhos (para usar a expressão de Alexandre Herculano). Por vezes em cidades como Bragança (Trás-dos-Montes), temse a sensação de se ter regressado ao Brasil e se estar a percorrer as ruas de Serro, Diamantina, São João Del- Rei, Ouro Preto, Mariana. A mesma topografia, a mesma implantação das casas subindo e agarrando-se às ladeiras.

Em Braga, ou em Guimarães, são as igrejas que nos trazem à mente as capelas das ordens terceiras de Minas Gerais. Em Bom Jesus do Monte, Braga ou em Nossa Senhora dos Remédios, Lamego, a evocação do santuário de Congonhas do Campo é inevitável. Em Guimarães a Igreja do Senhor dos Santos Passos evoca os melhores exemplares do barroco mineiro. (2012, p. 63) Assim, fica claro que para Lima de Toledo o Barroco ganha espaço no Brasil devido à sua rápida adaptação às condições de desenvolvimento que são semelhantes às encontradas pelo estilo da Metrópole. Dessa maneira, o Brasil constitui-se como campo fértil para as mais ricas manifestações do estilo, que mesmo com antecedentes portugueses diretos, acabou ganhando características próprias em terras tropicais.

Na arquitetura, por exemplo, a influência das ordens religiosas portuguesas se faz presente e fortemente influente na construção do conjunto arquitetônico das mais diversas cidades brasileiras. Essas ordens enviam para o Brasil dezenas de pedreiros, carpinteiros, mestres de obras e arquitetos para que estes construam em terras brasileiras Igrejas que sigam o mesmo plano das igrejas portuguesas e, assim, mantenham uma unidade na arte produzida na Metrópole e na colônia. Entre jesuítas, franciscanos e beneditinos o conjunto arquitetônico das cidades brasileiras foi tornando-se real e adaptando-se às condições locais de materiais disponíveis, de clima e de paisagem. Segundo Lima de Toledo um dos exemplos mais notáveis dessa adaptação do estilo ao território brasileiro é o convento franciscano de Santo Antônio em João Pessoa na Paraíba, sobre este o autor afirma:

O convento franciscano de João Pessoa é, por tudo isso, um documento de invulgar importância na arquitetura brasileira. É o coroamento vigoroso de um longo processo evolutivo que deixou no Nordeste conventos de proporções generosas, dotados de claustros notáveis pelo ritmo de suas arcadas e por sua adequação ao nosso clima, de adros acolhedores e frontispícios onde se permitiu aos artistas a realização de apurada obra de cantaria. (2012, p. 116) Nos conventos Beneditinos, a tradição de ser criterioso na escolha de seus arquitetos é transportada juntamente com a ordem para o Brasil. Eram enviados ao Brasil respeitados arquitetos que pudessem trazer para as construções da ordem o máximo de rigor e seriedade, estes, algumas vezes trabalhando em conjunto com aprendizes brasileiros, acabaram nos deixando como herança construções inspiradas em importantes Igrejas européias, como é o caso do Mosteiro de São Bento em Salvador, que, segundo Lima de Toledo tem influência evidente da planta da Igreja de Gesú em Roma. Sobre isto o autor afirma que:

As afinidades com São Bento são inúmeras, a começar pela planta da Igreja. A influência da planta de Gesú, de Roma, é muito clara, incluindo transepto, nave com abóbada, cúpula e capelas laterais intercomunicáveis. O frontispício aproxima-se do primeiro desenho de Vignola para Gesú em 1569. (2012, p. 133).

As ordens religiosas, portanto, acabam fazendo o trabalho de transposição do estilo e de seu conceito para o Brasil, impedindo que este perca sua essência, mas, ao mesmo tempo, permitindo adaptações à nova realidade espacial em que ele está inserido. Dessa maneira, podemos dizer que, para o autor, o conjunto arquitetônico colonial do Brasil sofreu influências do método europeu, mas acabou ganhando novas características devido ao novo ambiente em que estava inserido.

Isso pode ser constatado também na própria arquitetura civil das cidades coloniais do Brasil, que apesar de guardar peculiaridades regionais, segue um estilo e conceito aplicável em todo o território. Ou seja, podemos dizer que, mesmo guardando proporcionais peculiaridades regionais, a arquitetura civil do Brasil colonial segue um padrão nos hábitos construtivos, padrão esse que é diretamente influenciado pelos padrões portugueses.

No Brasil, a arquitetura popular em grande parte é produzida através da técnica do pau a pique que consiste basicamente em fincar esteios no chão, verdadeiras varas dispostas perpendicularmente e amarrá-las com embira3 e depois arremessar barro contra o trançado. A técnica desenvolveu-se a acabou conhecendo formas estruturalmente mais apuradas, sendo utilizada, inclusive na construção de grandes sobrados. Além das construções em pau a pique, podemos citar também as construções em taipa e em granito bem desenvolvidas no Brasil. A chegada de engenheiros europeus ao Brasil acabou contribuindo para uma renovação das técnicas arquitetônicas locais, mas não alterou substancialmente a essência da arquitetura civil no Brasil colonial, que manteve sua personalidade a despeito das influências.

Essas mudanças podem ser observadas não só na arquitetura, mas também na azulejaria, na talha, na pintura, na cerâmica e na escultura barrocas produzidas no Brasil. Lima de Toledo também discorre sobre estes temas em seu livro.

Sobre a azulejaria e a talha, tradições nacionais portuguesas, o autor afirma que encontraram solo fértil para o seu desenvolvimento em solo brasileiro e que, aqui adaptadas, sofreram um processo de renovação, cultivando novas características, algumas destas seriam transportadas para a própria Metrópole. Como afirma o autor, quando diz que:

Os claustros conventuais no Brasil, revestidos de azulejo, evocam os pátios das alcáçovas com seu arejamento aprazível. No Brasil, o azulejo ganhará o exterior dos edifícios e,bem sucedido aqui, esse processo será levado à Metrópole. Um brasileirismo, portanto. Mas não termina aí essa evolução. Em Minas Gerais, na cidades distantes do litoral e dele separadas por péssimas estradas, o uso do azulejo se tornará quase impossível. Surgirá, então, como já vimos, uma solução local: tábuas com bordas recortadas serão afixadas às paredes da capela-mor de igrejas e pintadas de forma a lembrar azulejos. Olhando esses painéis constatamos o quanto se caminhou ao sabor da invenção desde os panos de rás flamengos, dos até a solução mineira. (2012, p. 144) Com relação à talha, podemos entender que ocorre o mesmo processo evolutivo e adaptativo quando esta chega ao Brasil e encontra condições diferenciadas das de seu lugar de origem. Essas mudanças, segundo Lima de Toledo, ficam mais claras quando percebemos que “a imaginária da pedra vai no seiscentismo cedendo lugar à escultura em madeira policromada. Os objetos de culto anteriormente feitos em ouro ou prata dourada passam a ser elaborados em madeira dourada, conservando por vezes o tratamento próprio do metal” (2012, p. 145). Os retábulos brasileiros, portanto, apesar de seguirem o estilo português também cultivam características e personalidade próprias, especialmente aqueles que foram produzidos em terrenos distantes do litoral sob o influxo das atividades de mineração de ouro e diamante, já que esta concentração de riquezas, segundo o autor, atraiu mestres de obras portugueses, o que influenciou a formação de uma intensa vida urbana nessas regiões e, portanto, o florescimento de uma intensa vida cultural. Sobre isto, Lima de Toledo afirma que:

O relativo isolamento das cidades terá tido influência no surgimento de uma arte com personalidade própria, fato por vezes superestimado. Distantes do litoral e dele separados por péssimos caminhos, os núcleos de mineração não podiam ter à mão material trazido como lastro de navio como ocorria nas cidades litorâneas. (2012, p.181) Como não tinham acesso ao material vindo de Portugal, utilizavam-se dos materiais abundantes na região, inclusive do ouro, e isso teria legado às manifestações artísticas da região, à essa época, uma personalidade própria que contribuiu categoricamente para o que se denomina problematicamente de Barroco Brasileiro. Tal denominação enfrenta grandes dificuldades para se afirmar, já que sabemos que “há um descompasso entre manifestações de regiões diferentes, tornando-se problemática a caracterização formal implícita na expressão ‘Barroco Brasileiro’ para um momento específico” (2012, p. 356).

Com relação à pintura, o autor defende que “a pintura do Brasil colonial, como estamos vendo, conheceu uma diversificação em função de vários condicionantes, como região, entidade patrocinadora que por vezes formava seus próprios artistas e fatores circunstanciais” (2012, p. 345). A pintura de forro, por exemplo, que era feita por pintores locais acabou por revelar-se como personalidade da arte colonial manifesta no Brasil, mesmo tendo grandes problemas na denominação estilística.

Um exemplo disso são as pinturas ilusionísticas, que alcançaram grande expressão no Brasil, seguindo a tradição italiana e espalhando-se pelo território, ostentando grande diversidade.

Com relação aos ceramistas o autor afirma que tal arte até hoje ainda sofre certos preconceitos por ser uma manifestação artística que presta-se a artistas de qualquer nível, mas que mesmo assim, podemos dizer que são feitas de barro algumas das melhores e mais ricas peças da arte colonial brasileira, em especial os trabalhos feitos pelos freis Agostinho da Piedade e Agostinho de Jesus. Esses dois artistas traduzem em barro a mesma dramaticidade e emoção características do Barroco e são de grande sensibilidade artística, pois trazem para o barro, com muita competência, temas muitas vezes explorados com materiais considerados mais nobres.

Podemos perceber, portanto, que ao longo do livro, Benedito Lima de Toledo, percorre os mais diversos caminhos para entender e elucidar a arte barroca no Brasil, deixando evidente a matriz portuguesa dessas manifestações, mas fazendo questão de sublinhar a personalidade artística desenvolvida pelo estilo em território tropical.

O autor investiga os diferentes aspectos dos diversos campos de manifestação do Barroco, levando em consideração não só a arquitetura, mas também a pintura, a escultura, a talha e a azulejaria, dando assim um panorama geral que exprime a ideia de que o Barroco no Brasil tem uma personalidade própria.

O autor conclui o livro concordando com Victor Tapié, quando este alerta para o problema das denominações de estilos, já que acredita que uma denominação só é válida para orientar pesquisas. E, portanto, foi baseado nisto que Lima de Toledo escreveu, consciente de que os rótulos estilísticos e cronológicos não dão conta dos descompassos da arte no Brasil e que termos como arte colonial e Barroco tornamse apenas denominações que orientam e organizam a pesquisa, mas que por vezes perdem seu significado.

Dessa maneira, Lima de Toledo nos faz crer que o Barroco luso-brasileiro não obedece a enquadramentos cronológicos e cultiva, apesar de seus íntimos antecedentes portugueses, características próprias que foram desenvolvidas devido ao contato com a realidade colonial e que foram, antes de qualquer coisa, produto das novas relações estabelecidas entre Metrópole e Colônia, assim o autor afirma que “o maneirismo, o barroco e o rococó escapam aos enquadramentos regionais e cronológicos globalizadores, sendo, nesse aspecto, imagem do próprio país”.

(2012, p.356) Portanto, podemos dizer que mesmo intimamente ligado a Portugal, o Barroco encontra seus caminhos e descaminhos em solo brasileiro e traduz as contradições do Brasil dando expressão aos desejos de autoafirmação da nação.

Notas

2 Em 1640 Portugal torna-se livre do jugo espanhol e coloca fim na chamada União Ibérica, tornandose novamente um país independente, restaurando assim o trono português. Este processo teria como conseqüência a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro e, dessa maneira, a restauração do poder português sobre as terras do Brasil.

3 Fibra extraída da casca de algumas árvores, para a confecção de barbantes e cordas.

Izabel Maria dos Santos – Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em História da Arte, Patrimônio e Turismo Cultural pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E-Mail: <izzabelmds@ gmail.com>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

A Idade Média no cinema – MACEDO; MONGELLI (CTP)

MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. Resenha de; PRATA, Rafael Costa. A Idade Média no Cinema, de José Rivair Macedo e Lênia Márcia Mongelli. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2011.

Em 28 de dezembro de 1895, os irmãos Lumiere projetavam no porão de um salão de café em Paris, seus primeiros rolos de filmes compostos por imagens do cotidiano da sociedade francesa de outrora. Pouco tempo depois, em 1899, George Meliès, encenava “para a câmera cenas históricas recentes, como em L´affaire Dreyfus”.2 Conforme Rosenstone:

Os primeiros filmes históricos dramáticos não eram concebidos como investigações serias a respeito do significado dos acontecimentos passados. Eram momentos nacionais breves, muitas vezes não mais do que encenações teatrais que a platéia facilmente reconheceria (…).3

Contudo, “no final da década de 1910, houve o surgimento de uma outra tradição de filmes históricos que não hesitam em fazer perguntas e apresentar interpretações serias sobre o significado do passado”.4 Com isso, o Cinema começa a ganhar força, suscitando assim intensos debates envolvendo a apropriação do conhecimento histórico produzido pelo saber erudito por parte do campo cinematográfico.

Esses debates, em grande parte surgiam em decorrência de que o Cinema até então era visto pelo saber erudito como uma arte voltada às camadas populares, um entretenimento pueril despossuído de qualquer tipo de responsabilidade metodológica e histórica. Nascido nos porões de um café em Paris e reduzida a um publico muitas vezes formado pela classe operaria, o Cinema amargou por muito tempo ter de levar esse fardo adiante.

Esse muro foi sendo lentamente derrubado quando a partir da terceira geração dos Annales, historiadores como Pierre Nora e Marc Ferro, imbuídos da necessária defesa do alargamento das fontes históricas, criaram “um clima que permitiu que os acadêmicos passassem a levar a cultura popular mais a serio e começassem a observar mais de perto a relação entre filme e conhecimento histórico”.5 Não obstante, será então curiosamente o período histórico convenientemente denominado como Idade Média, marcado por uma gama de preconceitos e legendas negras edificadas historicamente pelos humanistas e posteriormente pelos iluministas do século XVIII, esta, a “Idade das Trevas” ou “Longa Noite de Mil anos”, o momento histórico mais procurado para as ambientações cinematográficas.

Procurando refletir como se dá tais relações, é que a obra “A Idade Média no Cinema” aparece com grande importância dentro do polêmico e conturbado cenário das relações entre o Cinema e os seus usos do saber histórico. Lançada em 2009 pelo Ateliê editorial, e de organização dos medievalistas, José Rivair de Macedo (UFRGS) e Lênia Márcia Mongelli (USP), tal obra nasceu curiosamente como fruto de inúmeras palestras, congressos e seminários realizados a partir do primeiro semestre do ano de 2001, quando, encabeçadas pela ABREM,6 foram realizadas em todo o país, lotando universidades, e outros centros de estudo, sempre levando daqueles locais, a certeza de que seria necessário se aventurar mais ainda sobre a temática a fim de responder aos inúmeros questionamentos que daqueles ambientes emergiam em profusão.

Partindo destas premissas, a obra então nos leva a uma importante reflexão acerca das representações incidentes sobre o Medievo no campo cinematográfico, principalmente quando “o que está em discussão é a necessária distinção entre uma Idade Média propriamente histórica, objeto de estudo dos medievalistas, e uma Idade Média vista em retrospectiva, isto é, uma certa idéia do passado medieval visto pela posteridade”.7 A proposta metodológica é a mais sensata possível, haja vista que todos os articulistas ao desviarem o seu olhar a estas apropriações cinematográficas, não procuram esquecer-se da linguagem, das subjetividades e objetivos, que são próprios ao Cinema, que devem ser entendidos, para se evitar os eternos choques entre ambos os campos.

Não é de se surpreender, portanto, que grandes obras de reconstituição histórica, feitas com consultoria de renomados historiadores, acabam sendo repudiadas por estes mesmos durante sua produção por diversos motivos apontados. Tal situação pode ser vista com clareza a partir de dois paradigmas clássicos ocorridos durante as filmagens da película de destaque, “O Nome da Rosa”, quando o renomado medievalista Jacques Le Goff, convidado para atuar como consultor histórico, acabou abandonando seu ofício durante a produção do filme e pediu para não ter seu nome posto nos créditos da obra, ao discordar em absoluto das decisões tomadas pelo cineasta Jacques Annaud durante o andamento da produção fílmica. Outro caso talvez mais significativo do que pode resultar tais choques, aconteceu durante a produção do filme “O Retorno de Martin Guerre”, no ano de 1982, quando a também consultora histórica contratada para a obra, a historiadora Natalie Zemon Davis, também discordara da recriação feita pelo cineasta Daniel Vigne, e indo mais além, em 1987, cinco anos após então, lança uma obra homônima ao filme, onde demostra toda a sua insatisfação e as diferenças de leituras ocorridas entre ela e o cineasta.

Em geral, A Idade Média que acaba aparecendo nas telas do Cinema, não é mais do que um mero espelho das angustias, sofrimentos e desejos da contemporaneidade, que encontram numa Idade Média sonhada ou fantasiosa, campo propicio como subterfugio ou como fuga da realidade. Um Medievo de Bruxas, de princesas e cavaleiros encantados e envoltos na mais pura magia do amor cortês e da coragem, cavalgando em meio aos perigos de uma floresta onde residem magos e outras figuras estranhas. O Medievo será “inapelavelmente, a Idade Média do fantástico e da religião, do Graal e do amor, das grandes guerras e das heroínas como Joana D`arc”.8 Daí é que:

É no âmbito da Medievalidade [conceito cunhado pelo mesmo e de fundamental importância no decorrer da obra], e não da historicidade medieval, que o cinema alusivo a Idade Média deve ser pensado.9 (…) As motivações da Medievalidade encontram-se estreitamente ligadas aos problemas atuais: os dilemas éticos do herói, a fidelidade aos princípios morais do individuo em relação ao grupo, a prevalência do bem sobre o mal.10

Sobre o aspecto temporal e temático: Áreas ou períodos da Idade Média aparecem com maior frequência no cinema do século XX. Não seria demais insistir no fato de que, comparativamente, os temas medievais que mais interessam aos cineastas digam respeito aos séculos posteriores ao XI, poucos filmes tendo abordado a Alta Idade Média (séculos V – X). Enquanto determinados temas (como a peste, as Cruzadas, os Vikings, as guerras, as querelas dinásticas) e determinados personagens (como Joana D´arc, Robin Hood, Henrique V, o Rei Arthur) são reiteradamente retratados, a partir de diversos ângulos ou pontos de vista.XI Para concluir, além destas e outras reflexões, esta significativa obra nos traz ainda seis ensaios independentes, que procuram manter a coesão ideológica sobre filmes renomados ambientados na Idade Média, procurando discutir como tais obras constroem e se utilizam deste tão procurado Medievo.

“A Idade Média no Cinema”é uma obra fundamental e que consegue contribuir em muito para o estudo da relação Cinema – História, demonstrando como o bom relacionamento entre os campos não precisa ser necessariamente uma utópica relação amorosa, mas uma compreensão de suas particulares dimensões, construções simbólicas e signos, que respeitadas, podem e muito contribuir para a construção do conhecimento histórico em todas as suas dimensões.

Notas

2 ROSENSTONE, Robert. A História nos filmes, os filmes na História, São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.27.

3 Idem, p.29.

4 Idem.

5 Idem, p.40-41.

6 ABREM – Associação brasileira de estudos medievais.

7 MACEDO, José Rivair. Introdução – Cinema e Idade Média: perspectivas de abordagem. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p.14.

8 PEREIRA, Nilton Mullet. Imagens da Idade Média na Cultura escolar. AEDOS, vol.2, No. 2, 2009, p.4.

9 MACEDO, José Rivair. Introdução – Cinema e Idade Média: perspectivas de abordagem. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p.18.

10 Idem, p.47.

11 Idem, p.46-47.

Referência

MACEDO, José Rivair ; MONGELLI, L. M. (Orgs.) . A Idade Média no Cinema. 1ªed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. v. 01. 268 p .

Rafael Costa Prata – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected].

Consultar publicação original

Cultura das bordas: edição, comunicação, leitura – FERREIRA (VA)

FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura das bordas: edição, comunicação, leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, 192p. Resenha de: GUIMARÃES, Valéria. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Todo mundo conhece Zé do Caixão. Globalizado, o personagem de cine trash Coffin Joe passou a compor o imaginário do terror internacional. O que nem todos sabem é que vários dos roteiros de filmes, histórias em quadrinhos, programas de TV e fotonovelas de José Mojica Marins, seu criador, são assinados por Rubens Lucchetti, figura bem menos conhecida que seu parceiro.

Ilustração EM CARTAZ Lucchetti

Ouvi falar dele nos anos 90 lendo HQs das produções O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Anos depois, seu nome aparece, para a minha surpresa, em pleno ambiente acadêmico, onde estes mauvais genres demoraram a ser considerados dignos de estudo. A responsável pela façanha foi a professora Jerusa Pires Ferreira, realizadora de uma longa pesquisa sobre Lucchetti. Devorei o texto que resultou de tão interessante encontro e soube, enfim, de quantas rocambolescas facetas esse Ponson du Terrail brazuca era capaz.

Hoje, o grande público pode se deliciar com estas e outras histórias no livro Cultura das Bordas – edição, comunicação, leitura, obra recém-lançada pela Ateliê Editorial na qual Jerusa nos brinda com sua leveza de estilo ao se movimentar pelos altos e baixos das práticas culturais.

Seu livro vem compor o panorama das pesquisas sobre a edição popular, que tem se expandido nos últimos anos. Está dividido em dez capítulos, que por sua vez são organizados em três partes: Um autor singular e os Almanaques; Leituras e Enigmas e Palavras e Ofícios: Editores e Edição Popular. Pioneira, a autora faz parte de uma rede de pesquisadores que se dedica a pensar a lógica das práticas letradas com olhar inovador.

O livro se abre com Lucchetti e seus mais de 300 livros, suas “vidas passadas” e seus inúmeros heterônimos. Nascido em 1930 e ainda em atividade, ele é decifrado frente à rede a que pertence, o da cultura popular, de massa, da margem… ou melhor, das bordas. Literatura policial, esotérica ou de terror, Lucchetti é popular na origem, chegando ao cult de inclinação britânica – as tais vidas passadas reencarnadas em Theodore Field, no francês Urbain Laplace ou nas autoras Margareth Rice, Mary Shelby ou Madame Vera Waleska, o que parece ser alusão à mais famosa ocultista dos tempos modernos, Madame Blavatsky. E muitos outros, que se autoreferem tendo, inclusive, um “tradutor”, outro heterônimo, o T.G. Novais.

E assim Jerusa nos apresenta outros reis do pulp. O Livro de São Cipriano – o Legítimo Capa Preta é um exemplo – e estaria muito bem num filme de Zé Mojica, aliás. De certo modo esteve, pois o almanaque cristãoibérico-afro-mágico, cujas inúmeras edições se espalham pelo mundo, incluindo o Brasil, também teve versões de Lucchetti.

Mergulhada na biblioteca deste mago das palavras, a autora percorre o mundo dos almanaques para situá-lo neste assemblage mítico e na tradição enciclopédica do saber popular: agricultura, fases da lua, esoterismo, bulas de remédio, piadas, literatura, receitas, curiosidades, magia, espiritismo etc. etc.

Na parte II, entra com tudo nos livros de alta e baixa magia, analisandoos muito além do bem e do mal. Por trás deles brotam referências aos autores reciclados e ao substrato comum que compõe a “cultura das bordas”, definida pela autora como aquela que é “contígua à grande indústria de massas”. O conceito recusa a visão engessada do folclorista, que a tudo classifica e higieniza encarando a cultura popular como estanque e a ser interpretada pela lógica da cultura erudita.

Ela detalha o trajeto antropológico da pesquisa e as dificuldades de se conseguir em livrarias as tais fontes interditas, assim como a ausência desta literatura maldita nos acervos. Todo este conjunto provindo de práticas culturais remotíssimas, percorrido em movimentos ousados, compõe um universo fáustico que não raro fora legitimado por uma suposta autoria cristã.

Usa das fontes orais do sertão, passeia na periferia da grande cidade e decifra enigmas das re-reciclagens de referências que para o leitor comum se perderam, mas que sua sólida erudição permite recuperar: “é preciso lembrar que nada daquilo foi simplesmente inventado. Não se trata de uma pura forjação de temas, ao contrário, tudo tem aí sua profunda razão de ser” (p.66).

Passa também pelos Livros dos Sonhos, cujas práticas divinatórias se entrelaçam num mecanismo complexo com o jogo do bicho, loteria, charadas e decifração. A importância das obras que tentam interpretar os sonhos na cultura popular é vista como espaço possível da realização utópica, recorrência a “depósitos míticos” (p.77) que nem mesmo Freud dispensara, usando-os em sua conhecida teoria.

A esta síntese de culturas relegadas (p.80) corresponde um resgate da importância desta literatura para o leitor, o que lhe permite uma “participação iniciática” nas forças ocultas. Um pacto que é lido pelo viés da semiótica e do conceito de fascinação, onde o signo é deflagrador da magia que a palavra impressa perdera.

As artimanhas da performance oral-impresso-oral transformam o narrador contemporâneo em transmissor do momento extático, responsável por inserir toda a tradição da cultura popular no contexto da cultura midiática. Para além da discussão sobre a dissolução das dicotomias entre cultura popular e cultura de elite, entre centro e periferia hoje bem esmiuçada por autores diversos e da qual a autora foi também pioneira, o que este trabalho traz de mais inovador é o levantamento das fontes e dos caminhos por elas tomados, o que requer um esforço hercúleo de erudição.

Tais práticas culturais são vistas como “gestada(s) e produzida(s) no âmbito desta cultura das bordas” (p.93), cujo elemento residual compõe o repertório comum.

Lembremos de Chartier, que revisa a idéia de que o “popular” esteja ligado à determinada “classe social” e de que seja uma fonte reveladora da visão de mundo de um grupo social específico, defendendo a existência de uma recepção dos artefatos culturais impressos por toda a sociedade.

Caminhando tranquilamente entre as estruturas imutáveis do imaginário tradicional e a historicidade das narrativas nos novos meios de comunicação em que re-aparece, evoca nosso grande Sérgio Porto (Stanislaw Ponte-Preta) e seu “samba do crioulo doido” para precisar com humor o resultado das tramóias da ficção para o grande público.

A terceira e última parte é dedicada a uma editora popular dos anos 20, a Editora João do Rio, de Savério Fittipaldi, ele próprio uma mistura de empresário com visionário. A imprensa teve grande importância na composição do imaginário deste imigrante italiano, a começar pelo nome de sua editora, João do Rio, um dos grandes jornalistas e escritores da época.

Assim, temas também presentes no jornal como faits divers de crimes sensacionais, grandes golpes e falsários internacionais, tragédias, a Guerra, fenômenos fantásticos e sobrenaturais, além do repertório folhetinesco e da literatura de sensação (erótica/pornográfica), compunham o catálogo deste editor naïf e autodidata, como eram muitos de sua geração. A autora mostra como as práticas do editor definiam uma pauta que, a julgar por seu sucesso de vendas, estava em sintonia com seu público.

O sobrinho de Savério, uma espécie de Savério Fittipaldi “segundo”, também editou de tudo. Seu sucesso foi tão amplo que para de publicar o Livro de São Cipriano por “desvirtuar a mente”. Nos anos 70 também interrompe a publicação de outros títulos, como Carlos Magno ou O Conde de Monte Cristo, mas por motivo diverso: a função de entretenimento migrava definitivamente do livro popular para a TV.

No fabuloso depoimento de Savério Fittipaldi Sobrinho, que a autora tem a sensibilidade de reproduzir na íntegra, são desvendadas as engrenagens das fases da edição popular, sua lógica de publicação e venda e suas “pesquisas de mercado”, feitas diretamente com o público: “A minha filosofia sempre foi fazer tiragens maiores para vender mais livros por um preço menor”, diz ele (p.143). E aí se multiplicam as coletâneas de cartas de amor, livros de piadas, eróticos, de simpatias, de sonhos etc. Um de seus autores? Rubens Lucchetti, claro, que escrevia livros esotéricos, de terror e policiais.

Com a Luzeiro, editora que é tema do último capítulo, os cordéis entram na era da comunicação de massas, revisitados pela prensa moderna e acompanhados pelos mesmos tipos de títulos que se repetem nas editoras populares em geral. Os interditos, sempre os mesmos, como o Livro de São Cipriano, resistem pelo poder de venda que possuem. Este mesmo livro ainda aparece no catálogo de outra editora citada, a Edições O Livreiro que, a despeito de não ter uma linha para esotéricos, publica-o em resposta à fabulosa demanda.

Finalizando o livro em grande estilo, um caderno de imagens é aberto por uma alegoria bicromática de Rubens Lucchetti, cujo manto negro à la Zé do Caixão parece querer revelar o que de há de oculto por trás do mundialmente ilustre Coffin Joe. Seguem reproduções de capas de livros e almanaques citados na obra, cuja estranha uniformidade nota-se principalmente nos títulos de grande corpo, no uso de intensas cores, na temática popular e nas fartas ilustrações que indicam serem publicações “Para Todos”.

Desde já o livro Cultura das Bordas compila material precioso antes disperso em artigos e suscita questões pertinentes aos estudos da história cultural do livro e da leitura, situando esta produção entre o massivo e o popular, em um lugar pouco definido e que parece sempre estar no limiar entre mundos diversos: nas bordas.

Valéria Guimarães – Doutora em História Social pela USP,Pesquisadora do COS-PUCSP (Fapesp) e do CHCSC-UVSQ. [email protected].

Fronteiras culturais. Brasil-Uruguai-Argentina – MARTINS (

MARTINS, Maria Helena (org.). Fronteiras culturais. Brasil-Uruguai-Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial; Prefeitura de Porto Alegre; Centro de Estudos de Lieteratura e Psicanálise Cyro Martins, 2002. Resenha de OLIVEIRA, Maria da Glória de. Anos 90, Porto Alegre, v.10, n.18, p.163-165, 2003.

Maria da Glória de Oliveira – Graduanda do Bacharelado em História UFRGS.

Acesso apenas pelo link original

[IF]