Liberdades negras nas paragens do sul – ALADRÉN (VH)

ALADRÉN, Gabriel. Liberdades negras nas paragens do sul: alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. 204 p. VIANA, Larissa. Varia História. Belo Horizonte, v. 26, no. 43, Jun. 2010.

Nenhuma história da escravidão moderna pode prescindir da história dos processos de alforria. Conquistadas ainda na vigência do cativeiro, as alforrias nos desafiam de muitas maneiras: Colocavam em xeque a instituição escravista? Ofereciam, aos libertos, condições efetivas de mobilidade ascendente? Contribuíam para avivar conflitos no “campo negro”, ao beneficiar mais crioulos do que africanos? Ou, inversamente, contribuíam para alargar as expectativas da liberdade, transformando a experiência do cativeiro tanto entre crioulos como entre africanos? Tema de muitos trabalhos recentes da historiografia brasileira, os padrões de alforria constituíram-se em elementos centrais para a compreensão da dinâmica própria da desestruturação da escravidão, cujo marco temporal já não se pode resumir ao ano de 1888. Afinal, a extensão do acesso à alforria no Brasil, sobretudo no período do Império, tornava mais complexa a dinâmica do cativeiro em sociedades nas quais o ideário liberal implantava-se ao lado da manutenção da escravidão.

Liberdades negras nas paragens do Sul relata a história dos processos de alforria e das variadas formas de inserção dos libertos na região de Porto Alegre, nas primeiras décadas do século XIX. Apoiado em notável pesquisa documental, o excelente trabalho de Gabriel Aladrén destaca-se pela originalidade das interpretações, pelo denso diálogo com a historiografia brasileira e internacional, e, não menos, pelo exemplar tratamento metodológico das fontes analisadas. É também inovador, pois ilumina aspectos das liberdades negras em uma região relativamente pouco frequentada nos estudos sobre a escravidão, e até pouco tempo identificada a uma visão tradicional, que tendia a enxergar o Rio Grande do Sul como território de homens livres, herdeiros dos bandeirantes paulistas, inicialmente, e dos imigrantes açorianos, a partir do século XVIII.

Já no início do século XIX, os dados censitários forneciam argumentos contrários a essa visão tradicional. Se consideramos a capitania do Rio Grande de São Pedro, a população de cor, incluindo-se cativos e libertos, perfazia aproximadamente 39% da população total em 1814. O número impressiona, tanto quanto o impacto das alforrias da região de Porto Alegre e seu entorno propriamente ditos, onde Aladrén localizou um total de 771 escravos libertos entre 1800 e 1835. O perfil geral destes libertos, analisados a partir de suas cartas de alforria, é semelhante ao encontrado em pesquisas de outras áreas escravistas brasileiras: predominavam as mulheres e as pessoas nascidas no Brasil entre os que conquistavam a liberdade; do mesmo modo, as alforrias gratuitas e condicionadas superavam numericamante as manumissões pagas pelo próprio cativo. Os nascidos no Brasil eram também majoritários entre os cativos libertados gratuitamente ou sob condição, evidenciando a presença de relações mais próximas entre os crioulos e seus senhores, que, contudo, não excluíam a ocorrência de conflitos e negociações intensas para a obtenção de tais alforrias.

Embora não majoritária, era também muito significativa a incidência de alforrias pagas na região de Porto Alegre, modalidade na qual os africanos cativos se destacavam como “compradores” da liberdade com recursos próprios. A acumulação de pecúlio em uma área predominantemente rural revela as peculiaridades do contexto considerado por Gabriel Aladrén, no qual o acesso a roças em condições relativamente autônomas certamente contribuiu para a obtenção de recursos empregados na compra da liberdade.

A ênfase do livro recai sobre os libertos, cujas histórias descortinam-se, por vezes, com riqueza de detalhes. É o caso do preto forro Pedro Gonçalves, cuja trajetória pôde ser acompanhada através do cruzamento entre duas das fontes privilegiadas na pesquisa: processos criminais e inventários post-mortem. Por seus bens, Pedro Gonçalves apresentava uma posição incomum para os ex-escravos da região analisada: era proprietário de quatro escravos, um rebanho e uma casa com lavouras. Este caso de ascensão econômica significativa era excepcional e ilumina o caráter mais geral da amostra de forros inventariados analisada no livro. No conjunto 26 forros com inventários abertos, observa-se que dezesseis não possuíam nenhum escravo. De fato, os libertos da região de Porto Alegre dificilmente acumulavam o capital necessário para adquirir cativos. Não eram destituídos de recursos, como nota o autor, mas não apresentavam as condições de maior mobilidade econômica observadas em áreas urbanizadas ou mineradoras do Brasil escravista, que forneciam maiores possibilidades de acúmulo de bens aos ex-escravos engajados em atividades tipicamente urbanas, como o comércio ou a oferta de serviços.

De volta a Pedro Gonçalves, é sabido que um caso excepcional pode ser muito revelador. De acordo com Aladrén, este preto forro experimentou, além da ascensão econômica, uma restrita mobilidade social. Era casado e ocupava-se da lida com o rebanho e a lavoura, condições de relativa estabilidade – familiar e ocupacional – para a ampliação das possibilidades de ascensão social, de acordo com o autor. Outra condição valiosa para a referida ascensão era a manutenção de alianças com as elites locais. Pedro Gonçalves também as obteve, pois, mesmo na condição de forro, permanecia agregado nas terras do capitão Jozé Alexandre d’Oliveira, grande proprietário do distrito do Caí, provavelmente um dos intermediários locais do acesso de Pedro a terras de cultivo, e certamente um dos avalizadores do reconhecimento social conquistado por este liberto em particular.

A redefinição constante das designações de raça e cor era outra condição experimentada por muitos dos libertos da região de Porto Alegre. Nesse sentido, o aparente paradoxo localizado por Aladrén é intrigante à primeira vista: a maior parte dos alforriados pesquisados era constituída de pretos, mas os mapas de população indicavam que a maior parte dos libertos era designada como parda. Como compreender este deslizamento entre as categorias da cor e da condição em diferentes fontes, referentes ao mesmo período e contexto? A resposta a esta questão encontra-se na própria linguagem, racializada e politizada a um só tempo, que o contexto pós-independência contribuiu para disseminar em diferentes regiões do Brasil escravista. O termo preto, que preferencialmente designava os africanos cativos, era mais usual nas cartas de alforria, que traziam informações relativas a uma situação de liberdade ainda recente, na qual as marcas do cativeiro eram muitas vezes mais pronunciadas. O forro recente, africano ou não, tendia a ser designado como preto por ser esta uma qualificação que expressava sua ligação com o mundo dos cativos, com o qual mantinha vínculos possivelmente ainda estreitos, apesar da conquista da liberdade.

No recensseamento de população, pode-se supor, muitos libertos já eram considerados (pelas autoridades que realizavam tais registros) em fases mais estáveis de suas vidas, nas quais o reconhecimento social da condição de livre traduzia-se pela denominação pardo. Mestiços ou não, ao serem qualificados como pardos, tais libertos já apresentavam os sinais de uma inserção social que se transformava, de muitos modos, à medida que a experiência da liberdade se consolidava. Ou, nas palavras do autor, “pretos e pardos rio-grandenses vivenciaram experiências racializadas”, nas quais os designativos da cor remetiam aos múltiplos significados da experiência de tornar-se livre.

A liberdade negra chegou às paragens do Sul também no contexto das guerras de independência hispano-americanas. As Guerras Cisplatinas – disputadas entre os anos de 1811 e 1828 nos limites territoriais do Rio Grande do Sul com o atual Uruguai – mobilizaram parte da população negra escrava e liberta, engajada em campanhas militares nas áreas de fronteira que desafiavam a dinâmica da escravidão. O recrutamento forçado de escravos para a guerra, as promessas de alforria para os alistados nas tropas de José Artigas (no lado uruguaio) e as fugas de cativos para integrar os batalhões são algumas das experiências analisadas no livro, sempre visando compreender os múltiplos sentidos da guerra para os libertos. As conjunturas de guerra na fronteira, particularmente nessa “era das revoluções” que pôs à prova a manutenção do escravismo em terras americanas, criaram oportunidades de inserção e de mobilidade social para muitos pretos e pardos, alargando os domínios da liberdade em meio à retórica da ruptura com o jugo colonial.

O principal mérito do trabalho de Gabriel Aladrén, a meu ver, está na construção de novos argumentos em torno dos múltiplos significados da liberdade no contexto da formação do Estado brasileiro. A solidez da reflexão está explicitada em cada capítulo, convidando o leitor a trilhar os caminhos de uma história social da melhor qualidade.

Larissa Viana – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense Campus do Gragoatá, Bloco O, 5 andar Gragoatá, 24210-370 – Niteroi, RJ – Brasil [email protected].

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