L’incendie planétaire. Que fait l’ONU? – DEJAMMET (RTA)

DEJAMMET, Alain. L’incendie planétaire. Que fait l’ONU? Paris: Cerf, 2015. Resenha de: SILVA, Daniel Afonso. Da Organização das Nações. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n.16, p. 299 ‐ 303, set./dez. 2015.

O fim do conflito Leste‐Oeste modificou a densidade e a qualidade de todas as ações no meio internacional. Os Estados Unidos acreditaram ter ganhado a guerra fria e decretaram o fim da história. Doravante o mundo inteiro serviria pretensamente aos seus preceitos liberais marinados no american way of life. Mas as fraturas no modelo não tardaram a aparecer. Os europeus estavam em vias de consolidar uma nova Europa. Iugoslávia e Iraque demandavam atenção especial dos defensores da nova ordem mundial. Ruanda e Sérvia mostravam a impotência das potências. Os sul‐americanos iam‐se acomodando no Mercosul e em suas novas repúblicas ávidas por democracia. Os russos iam aprendendo a viver depois da URSS. Os chineses e indianos planificavam o seu novo lugar ao sol. Os africanos iam amargando o choque da descolonização. De súbito, veio o 11 de setembro de 2001 e com ele a revanche de todos aqueles, especialmente muçulmanos, retirados, anteriormente, da história. Seria o choque de civilizações? Não demorou a demonização do Oriente Médio e o apelo à perseguição sem fim do inimigo sem rosto nem nome encarnado no terror. Iraque e Afeganistão voltam às páginas dos jornais. Estados Unidos e seus aliados investiram contra eles. E eis que surgem os BRICs, a quintessência dos países emergentes. Mas Egito, Turquia, Líbia continuavam às voltas com suas tensões por não serem países ricos nem emergentes. Da Eurásia, georgianos e ucranianos reivindicam a soberania nacional de sua integridade territorial enquanto no Cáucaso a demanda segue pelo direito de autodeterminação. Em meio a isso irromperia a crise financeira de 2007‐2009. A recomposição de forças vai‐se impondo. Os 99% começariam a bradar mais forte contra os do 1%; e da ocupação de Wall Street insuflaram a ocupação da praça Tahrir e de outras praças. A primavera dos povos árabe estava, assim, em marcha. Da Tunísia ao Egito, ao Barein, ao Mali, à Líbia, à Síria, a palavra de ordem era modificar seus mandatários. Alguns conseguiram; outros não. Mesmo aos observadores acostumados com as turbulências do mundo contemporâneo, a aceleração dos fenômenos e das crises aflige e constrange.

Haja agonia e haja história.

Mas mais pela agonia que pela história, justamente após o conflito Leste‐Oeste, a instituição que surgiu após o conflito 1939‐1945, de nome Nações Unidas, voltou a protagonizar a resolução de conflitos e a promoção da paz. Teria ela conseguido? Essa pergunta nada ingênua e muito consequente representa a discussão central de L’incendie planétaire de Alain Dejammet.

Às voltas com as comemorações dos setenta anos das Nações Unidas em 2015, esse experiente diplomata francês e profundo conhecedor da estrutura onusiana põe em perspectiva a atuação da Organização e evoca suas profundas contradições internas de 1991 aos nossos dias, mostrando como ela vem atuando nessa reconfiguração do mundo após o fim do conflito Leste‐Oeste.

Ele ressalta que desde a gestão de Boutros Boutros‐Ghali (1992‐1996) a obsessão por reforma tomou conta das Nações Unidas. Após a paralisação de grande parte de suas atividades durante o conflito Leste‐Oeste, os anos de 1990 assistiram a sua hiperatividade. Grandes conferências em torno de temas como clima, população, racismo, direitos humanos, direitos das mulheres, habitação deram mostra de sua performance, mas não resolveram seus problemas internos. Desde seus inícios, os membros das Nações Unidas preferiram cooperar mais em pequenos grupos que com o conjunto dos participantes que hoje correspondem a 194. Isso denota desconfiança entre todos, o que acaba por impedir reformas. O caso do Conselho de Segurança talvez seja dos mais emblemáticos.

Ele avalia que, desde a fundação das Nações Unidas em 1945, os autoproclamados vencedores da segunda guerra mundial – Estados Unidos, Reino Unido, Rússia, China e França – concorrem para a manutenção da paz com seu direito a vetar ou liberar a atuação da organização na gestão de crises internacionais. O passar dos anos foi permitindo a ampliação dos membros consultivos, mas engajados como não‐permanentes. Ao menos a partir de 1994, foi‐se fazendo algum consenso pela inclusão de mais membros como permanentes. Do lado europeu, a Alemanha estaria na frente da disputa. Mas sua entrada imporia a discussão do ingresso de outros pretendentes de importância como a Itália e a Espanha. Do lado latinoamericano, o Chile e a Argentina manifestam dificuldades em apoiar as intenções brasileiras em ser membro permanente. Na Ásia cabe ao Paquistão desconfiar das manobras dos indianos. Na África inexiste consenso diante da possível candidatura da África do Sul. O caso japonês segue dos mais complexos por causar constrangimento entre norte‐americanos, russos e chineses

Em sua perspectiva, o Conselho Econômico e Social, menos conhecido e pouco difundido pela imprensa, possui importância decisiva e suscita o mesmo debate. Ao menos desde os anos de 1975 ele gravita sobre o G7, tornado G8 nos anos de 1990 e ampliado, em ocasiões, em G20 nos anos 2000. Esses grupos acabam por imprimir seus interesses no Banco Mundial, no Fundo Monetário Internacional e na Organização Mundial do Comércio. Mas como aceitar – pergunta‐se Dejammet – que, entre os africanos, somente a África do Sul faça parte do grupo e, entre os países árabes, somente a Arábia Saudita?

Além da “imperfeição” dos Conselhos, ele ainda chama a atenção para o desprezo dirigido à Secretaria Geral das Nações Unidas. Mostra que existe pouco consenso diante da atuação dos secretários gerais, mas todos vêm exercendo suas funções sob o imperativo da discrição sugerido pela Carta das Nações Unidas. Lembra que Dag Hammarskjöld (1953‐1961) foi enfático na defesa de saídas para as crises em Suez e no Congo. Maha Thray Sithu U Thant (1962‐1971) pediu mais atenção à Ásia. Kurt Waldheim (1972‐1981), ao Oriente Médio. Javier Pérez de Cuellar (1982‐1991), diante dos conflitos no Iraque, no Irã e na América Central. Boutros Boutros‐Ghali (1992‐1996), pelas operações na Iugoslávia e no mar vermelho. Koffi Annan (1997‐2007), contra os norte‐americanos em sua investida no Iraque. Ban Ki‐Moon (2008 ao presente), pelas crises humanitárias.

Dejammet ainda lembra que, às voltas com seus setenta anos de existência, as Nações Unidas organizam entre trezentas e quatrocentas reuniões anuais dispondo de um orçamento de 3 bilhões de dólares para despesas ordinárias e 8 bilhões de dólares para operações de manutenção da paz. Os Estados Unidos são os que mais contribuem, 22%, seguidos de Japão, 14%, Alemanha, 8%, França e Reino Unido, 6%, China, 5%, Rússia, 3% e todos os demais menos de 1,5%. Isso indica que a máquina burocrática onusiana ficou deveras pesada e custosa. Entretanto, reformá‐la, advoga Dejammet, continua sendo um desafio mais e mais distante mesmo diante desse torvelinho de transformações internacionais que suscitam cada vez mais o reforço das estruturas estabelecidas. Uma efetiva reforma dependeria, segundo ele, “da parte de todos, mais escrúpulos, humildade, consideração pelos motivos coletivos, ou seja, um pouco mais de conhecimento de história e geografia”. Essa franqueza permeada de clareza absoluta no domínio dos meandros das Nações Unidas, que está presente em todo o livro, é que faz de L’incendie planétaire de Dejammet uma leitura indispensável.

Daniel Afonso da Silva – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor‐pesquisador no Ceri‐Sciences Po de Paris. França. E-mail: [email protected].

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