Lúdico e História / História, histórias / 2019

Apresentação

Em 1938 o medievalista holandês Johan Huizinga publicou Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (Homo ludens. Proeve eener bepaling van het spel-element der cultuur), a primeira obra dedicada a examinar o elemento lúdico nas culturas e sociedades humanas. Em 1990, o assiriologista britânico Irving Finkel organizou um colóquio no Museu Britânico que deu origem à International Board Game Studies Association. Onze anos depois, a revista online Game Studies (Suécia/Dinamarca) publicava seu primeiro número, no qual o editor Espen Aarseth declarava 2001 como o “ano um” dos estudos de jogos eletrônicos.

Embora o campo tenha demorado a se constituir como uma área independente, a produção dos estudos lúdicos nos últimos vinte anos é tão vasta que se torna impossível listá-la. Impulsionada pela popularidade dos jogos eletrônicos, a ludologia se enraizou e se expandiu abarcando áreas previamente inimagináveis como o uso de jogos para a produção artística, o estudo das ‘economias virtuais’ internas aos jogos, a análise das ‘culturas lúdicas’ criadas pelos jogadores interconectados ao redor do mundo, o efeito dos jogos na saúde (especialmente os benefícios de jogar para idosos), a aplicação de conceitos lúdicos na administração de negócios reais ou em políticas públicas, entre outras.

A Historiografia não se manteve à parte desses desenvolvimentos. Por um lado, ela se enveredou em um tipo de estudo bastante venerável e tradicional: os jogos como instrumento de ensino. De fato, a pedagogia tem, por muito tempo, explorado a ludicidade: Platão já discutia o tema há 2.500 anos e os mais importantes pedagogos do século XX, como Piaget e Vygotsky, ou o pediatra britânico Donald Winnicot dedicaram páginas à questão.1

Um marco importante para esse tipo de estudo foi a tese de doutoramento (2004) do norte-americano Kurt Squire, hoje professor na Universidade da Califórnia em Irvine, sobre o jogo eletrônico Civilization III como forma de aprender história. Nela, Squire analisou importantes questões teóricas e realizou estudos de diferentes aplicações do jogo ao ensino, mostrando que era possível discutir conceitos historiográficos por meio de um jogo eletrônico.2 No Brasil, até hoje essa é a subárea da ludologia mais explorada pelos historiadores, com publicações recentes como Jogos e ensino de história ou Ensino de história e games.3

Mas a historiografia também criou uma subárea própria dentro da ludologia, o estudo de jogos históricos.4 Aqui, o marco fundamental foi o texto do norte-americano William Uricchio, ‘Simulation, history, and computer games’, publicado em 2005 como um dos capítulos do Handbook of Computer Game Studies. Afastando-se da ‘aplicação’ de jogos à outras áreas (como o ensino) ou da análise isolada de seu conteúdo (e, portanto, da questão simplificadora de saber se o jogo era ‘fiel’ à realidade histórica como discutida na historiografia profissional), Uricchio analisou os jogos como uma ‘forma’ de historiografia, buscando compreender as características e implicações desse modo de fazer história, incluindo as teorias históricas que os jogos – com frequência inconscientemente – expressavam.

Essa nova subárea ainda é muito pequena em comparação com outros campos do estudo ludológico e menor ainda quando comparada com outros campos da pesquisa e da teoria historiográfica. Não obstante, trata-se de um horizonte de investigação em expansão com imenso potencial inexplorado, no qual começam a surgir contribuições deveras interessantes. Arrisco-me a listar, sem a intenção de ser exaustivo, as coletâneas Playing the past. History and nostalgia in video games, editada por Zach Whalen e Laurie Taylor (2008), Playing with the past. Digital games and the simulation of history, editada por Matthew W. Kappell e Andrew B. R. Elliott (2013) e Early modernity and video games, editada por Tobias Winnerling e Florian Kerschbaumer (2014), além do instigante livro de Adam Chapman, Digital games as history. How videogames represent the past and offer access to historical practice (2016).

Neste dossiê, dois artigos caminham por essa nova seara dos estudos históricos. Alex Alvarez Silva, em Simulações do tempo histórico em jogos eletrônicos: a estrutura procedimental da história universal em Sid Meier’s Civilization, analisa o tempo histórico conforme estruturado na popular série de jogos eletrônicos Civilization (1991-hoje). Conjugando a leitura de ludologistas como Jesper Juul com a de historiadores como Adam Chapman e Jörn Rüsen, o professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia investiga a temporalidade do jogo, confrontando-a com noções como ‘consciência histórica’ e derivando questões interessantes para a constituição de uma cultura histórica pelos jogadores.

Marco de Almeida Fornaciari, em Progredir ou perecer: modernidade, aceleração da história e etnocentrismo em Sid Meier’s Civilization, analisa igualmente o tempo histórico na mesma série de jogos, mas de um ponto de vista diferente, relacionando o sucesso no jogo ao domínio da temporalidade. De fato, caso o jogador deseje ‘vencer o jogo’, ele deve maximizar uma série de fatores que lhe permitam manter-se na temporalidade ‘correta’ ou, ao menos, ‘à frente’ de seus concorrentes no tempo da história (conforme narrada pelo jogo). Confluindo noções antropológicas e historiográficas, o artigo de Fornaciari complementa e expande os elementos discutidos por Alvarez Silva em seu texto.

O ensino de história e a sala de aula também se encontram representados neste dossiê. Rodrigo Cardoso Soares de Araújo, em “Nunca foi tão divertido descascar batatas”: os jogos como possibilidade a ser explorada no ensino de História, analisa a ludicidade em sala de aula de um amplo ponto de vista, destacando os chamados ‘jogos educativos’, tanto em suas potencialidades quanto limitações. O texto do professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, traz diversas considerações teóricas e práticas sobre a ludicidade em sala de aula e certamente constitui uma contribuição instigante para professores que desejem se aventurar pelo caminho dos jogos.

Laura Bossle Caríssimi e Roberto Radünz, em A Ditadura Civil Militar e o ensino de História: o jogo Arquivo 7.0, tomam uma perspectiva bem mais específica: a análise da história recente do Brasil em um jogo de tabuleiro particular. A partir da aplicação do jogo em sala de aula, os autores discutem as percepções discentes a respeito da história recente e como o jogo colabora para construir essas percepções em conjunto com outras fontes da prática pedagógica. Um interessante exercício das possibilidades educacionais do lúdico.

Por fim, Mateus Pinho Bernardes, em Reflexões sobre o lançar de dados em sala de aula: considerações sobre o desenvolvimento de um jogo de tabuleiro moderno para o ensino de História e suas possibilidades, apresenta suas experiências com jogos em sala de aula. Depois de uma profunda análise das possibilidades oferecidas pelo tabuleiro, o texto envereda por um caminho diferente e até então inexplorado neste dossiê: a criação de um jogo para uso em sala de aula. Tentando sanar uma dificuldade em relação a um recorte da história brasileira na primeira república, o autor produziu um jogo novo que abordasse a conjuntura da época e propusesse problemas para os alunos.

Embora tenhamos aqui um conjunto diversificado de artigos, que abordam temáticas e problemas múltiplos, ainda resta um grande potencial inexplorado. Mais do que um panorama das pesquisas atuais, este dossiê pretende ser um convite aos colegas para pensarmos o lúdico e imbricarmos o jogo cada vez mais à produção historiográfica. Os jogos históricos continuarão a ser produzidos e, se o sucesso de séries como Civilization ou Assassin’s Creed for algum parâmetro, cada vez mais pessoas aprenderão mais história por meio de jogos. Cabe a nós, historiadores, decidir se queremos fazer parte desse processo.

Prof. Dr. André Pereira Leme Lopes. Professor da Universidade de Brasília, Brasil. Doutor em História pela Universidade de Brasília, Brasil. e-mail: [email protected].

Organizador

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