Malcolm X – Uma vida de reinvenções | Manning Marable

Malcolm X – Uma vida de reinvenções, do historiador William Manning Marable, é uma biografia decisiva – embora não definitiva – para quem deseja entender a trajetória de um dos maiores líderes políticos negros dos EUA: um afro-americano muçulmano com passagem pelo crime, que dedicou sua vida a expor e combater o racismo presente em todas as camadas da sociedade norte-americana.

Com exceção da Autobiografia de Malcolm X, lançada pela editora Record em 1992, Malcolm X – Uma vida de reinvenções foi a primeira biografia a ser trazida para o Brasil, tendo sido traduzida pelo jornalista Berilo Vargas e publicada pela Companhia das Letras em 2013. Existem várias outras biografias, como The Death and Life of Malcolm X, de Peter Goldman, On the Side of My People: A Religious Life of Malcolm X, de Louis A. DeCaro Jr., ou Malcom X: In Our Own Image, de Joe Wood.

Através de uma narrativa cronológica, o autor resgata as raízes de Malcolm X: nascido em 1925 em Omaha, Nebraska, Malcolm Little cresceu numa família muito pobre. Seus pais, Earl e Louise, eram membros da UNIA (Associação Universal para o Progresso Negro) fundada por Marcus Garvey, organização que enfatizava a importância do empreendedorismo e da solidariedade dentro das comunidades afro-americanas, e defendia a separação espacial entre negros e brancos. Garvey, um jamaicano que chegara aos EUA em 1916, acreditava que os negros, unidos por um passado comum de opressão, eram parte de uma mesma “nação” transnacional, membros de uma raça poderosa que precisava resgatar o orgulho e o senso de comunidade. Suas ideias, defendidas com ardor por Earl e Louise, também contribuíram de modo significativo para a formação ideológica de Malcolm.

Infelizmente, o ativismo político da família Little acabou trazendo consequências funestas. Em 1931, quando já haviam se mudado para o estado do Michigan, Earl foi assassinado, provavelmente por indivíduos ligados à Ku Klux Klan. Após o falecimento do marido, Louise desenvolveu doenças psiquiátricas, e foi internada num manicômio. Seus filhos mais velhos tiveram de trabalhar para sobreviver, e Malcolm foi acolhido na casa de uma família de sua cidade. Durante a adolescência, morou em Boston na casa de Ella Little, sua meio-irmã, onde se viu seduzido pelo dinheiro fácil advindo do mundo do crime. Conhecido na cidade como Detroit Red – nome inspirado na capital do estado de onde viera, e também na cor natural de seus cabelos – ele transitou entre empregos formais e atividades ilícitas como venda de drogas, agenciamento de prostitutas e arrombamentos de casas, até ser preso em 1946.

Na cadeia, onde foi apelidado de Satã devido a sua postura de repúdio ao cristianismo, conheceu os ensinamentos da Nation of Islam (NOI), seita muçulmana liderada por Elijah Muhammad que defendia a supremacia negra e pregava que os homens brancos eram, literalmente, o demônio. Ao sair da prisão, em 1952, passou imediatamente a trabalhar para a organização, recebendo o sobrenome X, dado a todos os membros, que significava a identidade perdida pelos escravos africanos ao serem levados para os EUA. Sua dedicação chamou a atenção de Muhammad, que logo o transformou no Ministro Malcolm, porta-voz nacional da NOI, posição que ele desempenhou com extremo zelo por 14 anos, durante os quais a organização viu seu número de membros crescer de algumas centenas de membros para cerca de 75 mil. Sua notoriedade e seu comprometimento com as demandas políticas, e não apenas religiosas, do povo negro, acabaram despertando a desconfiança dos líderes da NOI e do próprio Elijah Muhammad. Em 1964, o líder supremo da NOI o suspendeu de suas funções devido à polêmica gerada por seu comentário a respeito do assassinato do presidente John Fitzgerald Kennedy. Muhammad, conhecendo a popularidade do presidente, orientou todos os ministros a evitarem dar opiniões sobre o fato; isso não impediu Malcolm de afirmar que o crime era um caso de “galinhas voltando para o galinheiro” – expressão idiomática que se refere a um castigo aplicado por erros cometidos no passado – e que ele, como “bom menino de fazenda”, não ficava triste. A sugestão de que o assassinato do presidente havia deixado-o satisfeito deixou a imprensa em polvorosa e fortaleceu os argumentos dos inimigos de Malcolm dentro da NOI, levando Elijah a suspendê-lo por noventa dias.

A suspensão abriu caminho para que ele decidisse se desligar da organização e fundar um novo movimento, onde teria liberdade para expor suas próprias opiniões. Surgiram, então, a MMI (Mesquita Muçulmana), e a OAAU (Organização da Unidade Afro-Americana), ambas sediadas no Harlem. Nessa nova fase, marcada por sua viagem à Meca, Malcolm adotou o nome de Al-Hajj Malik Al-Shabazz, convertendo-se ao islamismo sunita – vertente do Islã ortodoxo que, ao contrário da NOI, acredita que apenas Maomé é o profeta inspirado por Alá, e que todos os seus seguidores formam uma mesma comunidade de fé independente de cor ou raça. Como reflexo de sua mudança religiosa, assumiu um tom mais secularista e conciliador, propondo ações conjuntas entre os diferentes movimentos negros dos EUA e reconhecendo que a cor da pele não determinava o comportamento moral de um ser humano.

As transformações em seu caráter e em sua retórica constituem o mote central da obra: reinventando-se constantemente, ele desafiou todas as tentativas de defini-lo. Embora fosse reconhecido por todos como uma pessoa reservada, permitiu-se ser representado oficialmente numa autobiografia, escrita na verdade pelo jornalista Alex Haley, livro que acabaria se tornando um imenso sucesso e nas décadas posteriores quase uma leitura obrigatória para os jovens afro-americanos ávidos por mudanças sociais para a comunidade negra.

Dentre esses jovens estava o próprio Manning Marable. Num artigo publicado numa revista acadêmica da Universidade de Columbia, ele descreveu o fascínio despertado pela autobiografia e a importância desta para seu engajamento político durante a juventude. Com o passar dos anos, a leitura apaixonada das memórias de Malcolm X deu lugar ao interesse de investigar as imprecisões e inconsistências presentes na narrativa autobiográfica. No fim da década de 1990, conciliando seus compromissos profissionais no Instituto de Pesquisas em Estudos Afro-Americanos, da Universidade de Columbia, o professor montou o “Projeto Malcolm X”. Onde dezenas de estudantes, a maioria de doutorado, foram responsáveis por levantar centenas de documentos, reunir fotografias e extensa bibliografia acadêmica e agendar entrevistas com familiares, amigos, admiradores e até mesmo detratores de Malcolm. Neste processo foram fundamentais a abertura do acervo pessoal da família Shabazz, que reunia muitas cartas e um diário, e que até 2008 não estava disponível para pesquisa; e também dos arquivos da Nação do Islã, que dispunham de gravações de mensagens pregadas pelo Ministro, além de farta correspondência entre ele e Elijah Muhammad.

Tamanho esforço deu origem a um vigoroso relato de mais de 600 páginas, que conta com 16 capítulos, além de prólogo, epílogo, notas, bibliografia e imagens pouco conhecidas pelo grande público. O livro foi coroado com o prestigiado prêmio Pulitzer em 2012, mas infelizmente Marable não pôde se satisfazer com o reconhecimento, pois faleceu em 1º de abril de 2011, dias antes de o livro ser lançado. Como historiador, entrelaçou de modo competente fatos da vida de Malcolm X com o contexto histórico dos EUA, explicando ao leitor brevemente, de modo didático, temas tão diversos como as trajetórias de W. E. DuBois e Booker T. Washington – intelectuais afro-americanos que no século XIX já se posicionavam contra a desigualdade racial -, as diferenças entre muçulmanos sunitas e xiitas ou as mudanças vividas pelo jazz nos anos 40. Além de se dedicar à vida de Malcolm, Manning Marable escreveu também uma biografia sobre W. E. Du Bois e organizou outra sobre Medgar Evers, ativista do movimento por direitos civis assassinado em 1963 por um supremacista branco. Além disso, publicou diversos livros acadêmicos sobre a relação entre desigualdade racial e injustiça econômica.

Buscando encontrar o homem por trás do mito, o historiador trouxe à tona fatos polêmicos da trajetória de Malcolm, como um possível envolvimento homossexual quando ainda era conhecido como Detroit Red, e o encontro com líderes da Ku Klux Klan no início de 1961. Por vezes Marable parece ter incorrido no erro de interpretar certos episódios a partir de um olhar excessivamente analítico, ignorando o modo como Malcolm concebia suas próprias experiências. Ao tratar da conversão de Detroit Red ao islamismo, o grande ponto de virada de sua vida, o autor atribui maior crédito a motivações racionais, desvalorizando a dimensão sobrenatural da experiência de conversão, fator importante quando se fala de religião:

“ParaMalcolm, a atração era mais secular: a Nação do Islã oferecia a oportunidade de sentir autorrespeito e até mesmo dignidade como homem negro. Aquela fé afirmava que os negros não tinham motivo algum para se envergonharem ou se desculparem. Mas, acima de quaisquer objetivos espirituais ou políticos, havia um objetivo pessoal: a conversão era uma forma de manter a família Little unida. (p. 94)”

Em outro ponto, incomoda o uso que o autor faz da posição de “narrador onisciente”, utilizando conhecimento histórico posterior à época para de certa forma expor as fraquezas do discurso de Malcolm:

“Agora os líderes negros ‘exigem certa cota, uma percentagem, de empregos dos brancos’. Essa exigência provocaria ‘violência e derramamento de sangue’. Foi outro exemplo no qual o futuro imaginado por Malcolm o levou a tirar conclusões equivocadas: apenas seis anos depois, um presidente republicano, Richard M. Nixon, com a oposição frontal de milhões de brancos, pôs em prática a ação afirmativa e programas como fundos de reserva para minorias. Essas reformas foram realizadas sem a ‘violência e o derramamento de sangue’ que Malcolm tinha previsto” (p. 294).

Um fator que compromete o ritmo de leitura é a profusão de nomes e datas; ao percorrer os capítulos, é fácil se perder entre a miríade de pessoas e lugares que Malcolm conheceu, o que parece difícil de ser contornado, dada a agitação em que ele sempre viveu. As substanciais mudanças nas ideias de Malcolm, que após a visita à Meca ocorreram em ritmo mais acelerado, também são difíceis de acompanhar. Marable identificou que seus discursos variavam muito dependendo do lugar onde estava e a qual grupo se dirigia. No exterior, mostrava-se extremamente ácido e combativo, denunciando mais ferozmente a opressão racial nos EUA; dentro do país, atenuava suas diferenças com outros grupos dos movimentos por direitos civis, propondo ações conjuntas e identificando-se com os valores da Declaração de Independência e da Constituição norte-americanas.

Contudo, isso não tira o brilho da obra; o autor merece os louros por tecer uma narrativa tão minuciosa e honesta, que parece nos aproximar da personalidade arrebatadora de Malcolm X. No penúltimo capítulo, destinado à última semana de vida do Ministro, as páginas nos transportam a uma atmosfera quase palpável de tensão, causada pelas ameaças de morte da NOI, que culminaria em seu assassinato, na tarde de 21 de fevereiro de 1965, num evento no Auditório Audubon, em Nova York, em circunstâncias ainda mal explicadas. A polícia de Nova York e os homens mais próximos do Ministro mostraram-se relapsos naquele dia, deixando diversos furos na cobertura de segurança que normalmente era feita em eventos públicos, o que favoreceu a ação dos conspiradores da Nação do Islã. O desinteresse da Polícia pelas investigações provavelmente tinha a ver com o fato de que o FBI já há muito tempo temia a influência de Malcolm sobre os afro-americanos e desejava calar sua voz de protesto.

No último capítulo, Marable analisa como a imagem de Malcolm X foi ressignificada com o passar dos anos, e o prevalecimento da visão que o identifica como representante do orgulho negro. O ator Ossie Davis, que conhecera Malcolm em vida, diria em seu funeral: “Malcolm era nossa virilidade, nossa negra e atuante virilidade”. Isso talvez explique seu imenso sucesso com as mulheres, tema explorado na narrativa. Enquanto sua relação com Betty Shabazz, sua esposa, afastava-se muito do ideal romântico – os conflitos, documentados em cartas citadas no livro, ocorriam principalmente devido às longas ausências de Malcolm – muitas outras admiradoras, como a escritora Maya Angelou, ficavam magnetizadas por sua fala. A imprensa, que constantemente o acusava de ser um pregador do ódio, parecia ficar ao mesmo tempo horrorizada e fascinada com seus discursos incendiários, que chamavam atenção em quaisquer veículos de comunicação.

Incapaz de passar despercebido em qualquer lugar, eternizado seja nas letras de rap do Public Enemy ou no filme de Spike Lee, Malcolm X passa pelo cuidadoso escrutínio de Manning Marable, que lança luz sobre aspectos não muito honrosos de sua trajetória. Mas emerge como o homem que sempre foi, um ardoroso defensor de suas crenças, que, antes de dar voz às aspirações dos esquecidos, deu ouvidos a eles, e transformou para sempre o significado de ser negro nos Estados Unidos. Ao fim de “Malcolm X: uma vida de reinvenções” o que nos ocorre é que nenhum título caberia melhor à narrativa que Marable empreendeu: nos conduzindo pelas múltiplas identidades de seu biografado – Malcolm Little, Detroit Red ou Al-Hajj Malik El-Shabazz – o autor nos mostra por que Malcolm X escreveu seu nome na história dos EUA, e, por que não?, na História de toda a humanidade.


Resenhista

Camila Peres Lima – Graduanda em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MARABLE, Manning. Malcolm X – Uma vida de reinvenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Resenha de: LIMA, Camila Peres. As muitas faces de Malcolm X. Revista Outrora. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 186 – 191, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]

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