María Lugones | Revista Estudos Feministas | 2022

Maria Lugones
María Lugones | Foto: Daily Nous/Reprodução

Homenagear María Lugones no segundo ano após a sua morte é algo pensado a partir do reconhecimento dessa intelectual no reencontro ou na descoberta das feministas brasileiras e latino-americanas com uma teoria própria, que desconstrói o cânone acadêmico e abre para uma virada epistêmica, ao mesmo tempo em que alimenta práticas e utopias.

Pensar Lugones dois anos depois é buscar entender o alcance de sua influência, que vai sendo sorvida em um momento de tensões sociais acirradas, em que o eurocentrismo ainda predomina e se impõe sobre o território latino-americano e o Sul global. E se essa centralidade branco-europeia se perpetua e é sentida, na intersecção entre raça, gênero e situação geopolítica, os esforços intelectuais de Lugones reverberam e não param de abrir novas opções teóricas, outros caminhos de luta e resistência.

María Lugones se torna, assim, uma ancestral (una ancestra) pensadora lesbofeminista, decolonial, educadora popular e professora de Literatura comparada e estudos das mulheres: ética, filosofia política, raça e gênero, na Universidade de Binghamton, nos EUA. Nascida na Argentina em 26 de janeiro de 1944, chegou aos Estados Unidos nos anos 1960, em plena efervescência do movimento Black Power. É parte de sua oferenda, a nós dirigida, consolidar o paradigma situado para pensar a ‘colonialidade de gênero’ e outros conceitos tão centrais que fazem de sua obra, uma referência incontornável para os feminismos descolonizadores e decoloniais latino-americanos, com influências transnacionais.

No caso do Brasil, historicamente, o feminismo de linhas centrais bebeu preferencialmente de fontes europeias e, por mais enriquecedor que possa ter sido, isso ainda se apresenta como um limite, uma transposição teórica que muitas vezes não dá conta de certas especificidades localizadas, como as das mulheres rurais, sertanejas e indígenas-originárias, por exemplo.

Alcançar o pensamento de Lugones é encontrar um vértice, um ponto de apoio e de interesses comuns com os feminismos latino-americanos, é refletir a partir dessa localização e da situação de sujeitas racializadas, que vivem, ainda na atualidade, a experiência da colonialidade sobre seus corpos, seu lugar no mundo e sua intelectualidade.

Se isso parece exagero, basta sairmos do nosso espaço geográfico, nosso ambiente de conforto, para a imediata percepção de que somos racializadas pelas visões hierarquizantes eurocêntricas e seu ‘ranço colonial’, seja nos espaços europeus ou em território estadunidense – o mesmo que abrigou e confrontou Lugones e suas origens, desde a juventude. Lá, ela se viu desafiada a pensar, sentir e lutar como ‘mulher de cor’, relegada a um não-lugar, uma brecha que soube bem ocupar dentro da academia. O próprio grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) surgiu de uma interpelação racial que remete à subalternização – tema inicial de seus estudos e motor para os debates decoloniais travados na atualidade por autoras e autores latino-americanos.

Quando pesquisamos sobre María Lugones no Brasil, os equívocos da internet e do desconhecimento cultural, nos levam a criar uma imagem dessa intelectual como parte das linhas centrais do feminismo argentino. Longe disso, Lugones não era nem branca nem porteña de criação, mas descendente dos povos originários e criada em uma pequena cidade do interior da província de Buenos Aires, chamada Los Toldos, distante cerca de 300 km da capital argentina. Em sua família, era tratada como ‘A Negra’. Ou seja, quando ela se envolve, nos Estados Unidos, nas lutas pelos direitos e reivindicações das ‘mulheres de cor’, é por ela mesma que age e reivindica. Certamente não estava sozinha nessa condição.

Outras autoras latino-americanas, chicanas e amefricanas vieram encorpar os debates promovidos por Lugones, e são amplamente citadas nos textos desta seção temática, tratando dos mais diversos fatores e categorias que demarcam o conceito de interseccionalidade (o cruzamento e o sobrepeso das opressões). São feministas negras, indígenas, lésbicas, entre outras, que compõem esse cenário acadêmico-ativista latino-americano e chicano, e que nos oferecem renovadas propostas e ferramentas conceituais e analíticas.

A autora brasileira Cláudia de Lima Costa e a argentina Karina Bidaseca, há muito, fazem parte dessa arena transdisciplinar de debates voltada ao pensamento feminista na América Latina e no Brasil. Em diversos textos (COSTA, 201020122014BIDASECA, 20142021), abordam conceitos e teorias trazidos por Lugones. Como ponto em comum entre ambas, a Revista Estudos Feministas aparece como prioridade em termos de publicação.

Depois de trazer a público pela primeira vez, em 2014, a tradução e um debate inicial sobre o artigo “Rumo a um feminismo descolonial” (LUGONES, 2014), a REF abre novamente espaço para esta seção temática, que reúne textos em diálogo direto com Lugones, como uma referência a ser mencionada e homenageada, enquanto outros demonstram a capilarização das suas teorias e conceitos, discutidos no interior de pesquisas específicas.

Por todos os lados, os textos da autora serviram para instigar reflexões e ações políticas, transitando pela academia, mas também pelas ruas, sempre em ações de militância pelo reconhecimento do lugar das mulheres em espaços mais plurais e diversos.

Diante de sua partida repentina, em 14 de julho de 2020, esse ‘sentir-pensar’ com María Lugones, essa reflexão que parte do interstício, continua sendo fundamental para estes tempos tão complexos, atravessados pela invenção reversa de uma suposta ‘ideologia de gênero’1, que promove a opressão e o silenciamento a respeito de uma disparidade histórica vivida pelas mulheres, com ênfase na interseccionalidade que afeta negras e indígenas-originárias latino-americanas, e pela população lgbtqia+. Contra tais práticas e discursos, a decolonialidade e o pensamento de Lugones emergem como ferramentas intelectuais e políticas.

A repercussão da obra dessa pensadora nos âmbitos brasileiro, argentino e latino-americano ainda se faz sentir, e estamos muito agradecidas às autoras dos textos aqui apresentados, por deixarem impregnadas suas próprias experiências, seus afetos e saberes nesta seção temática. A atual ressonância da obra de Lugones é o ponto comum que emerge do conjunto de artigos que ora apresentamos.

O texto que abre a seção, escrito por Karina Bidaseca e Michelly Aragão, foi intitulado “Viajar-mundos hacia María Lugones”. Sua tessitura traça um panorama dos trabalhos da autora, muitos deles ainda desconhecidos ou pouco explorados no Brasil. Karina e Michelly apresentam Lugones em sua identificação como mulher de cor, no começo de sua trajetória, e mostram como ela própria vai se tornando um ponto de referência para as comunidades latinas, chicanas, afros e originárias neste amplo território latino-americano, nossa arena de debates e discussões teórico-conceituais, e de práticas feministas das mais variadas. As autoras mencionam a influência de pensadoras estadunidenses sobre María Lugones, seu contato primeiro com Aníbal Quijano, seguido da descoberta de Lugones por parte desse autor basilar dos estudos decoloniais. Com admiração, Quijano percebe a importância das críticas de Lugones ao seu conceito de ‘colonialidade do poder’, ao introduzir no debate o conceito de ‘colonialidade do gênero’.

O artigo seguinte, “Decolonial Feminism: María Lugones’ influences and contributions”, é de autoria de Laís Rodrigues e apresenta uma visão panorâmica da obra da autora argentina, atentando para seus principais conceitos e teorias e como eles vêm suprir uma lacuna e abrem caminhos para a crítica feminista latino-americana, ainda marcada pelo feminismo branco do mainstream do Norte global e pelas hierarquias ainda impostas sobre o pensamento feminista na localização Sul. Laís situa os textos “Colonialidad y género” (LUGONES, 2008) e “Rumo a um feminismo descolonial” (LUGONES, 2014) como inauguradores de conceitos-chave para os feminismos do Sul global, que continuam a fornecer as bases para debates que não cessam de se reinventar, na apropriação de Lugones por autoras e autores diversos.

A interseccionalidade aparece como categoria central na obra de Lugones, em contato com as autoras afroestadunidenses. Este é o tema do artigo “Interrogando Lugones: reflexões sobre um debate inconcluso”, assinado por Cláudia de Lima Costa. No texto, a autora busca mapear novos conceitos e aprofundar o debate quando acadêmicas, muitas delas chicanas, dão sequência às propostas teóricas de Lugones, que justificam e incentivam encontros, práticas e a emergência de feminismos que se reinventam, dentro e fora da academia. Além de se referir a essa importante conexão entre os conceitos de interseccionalidade e decolonialidade, Cláudia revisita as principais críticas a Lugones, elaborando a sua própria e ampliando os limites da recepção desse conjunto de textos ao sinalizar diálogos frutíferos que partem dessa perspectiva.

No texto “Territorios textuales disidentes: leyendo con María Lugones las literaturas de Bolivia”, Magdalena Almada aponta para a possibilidade de se ler estratégias de resistência à ordem colonial dominante na América Latina, por meio de narrativas bolivianas interpretadas à luz da obra de María Lugones, estabelecendo diálogos inéditos dessas perspectivas teórico-conceituais no campo da literatura boliviana. Os usos dos conceitos e teorias de Lugones são múltiplos e, ao mesmo tempo, transnacionais; eles se revelam no campo dos estudos literários – uma ampla seara relacionada aos trabalhos de Lugones e às referências que deles emergem no contexto sul-americano, onde esses textos são apropriados por autoras de áreas distintas, mantendo-se, porém, como elementos presentes e visíveis nas áreas de literatura e teoria literária.

Perceber essa multiplicidade de leituras e apropriações da obra de Lugones, incluindo as críticas, é o convite feito também por Ana Maria Veiga no artigo “Fraturando o locus – a influência de María Lugones no Brasil”, que aborda pesquisas que fazem um debate teórico com a autora e com as teorias decoloniais, entre artigos, livros e teses escritos a partir dos anos 2010 e a publicação em português de “Rumo a um feminismo decolonial” (LUGONES, 2014). Após o falecimento dessa pensadora feminista decolonial, homenagens foram publicadas, como reconhecimento à relevância do seu trabalho e à herança intelectual deixada por ela. Assim, os tons dos textos variam de acordo com o período de escrita e com a maior ou menor proximidade com sua obra. Ana entende que as críticas não diminuem o lugar da intelectual que Lugones foi, e é, na arena de debates acadêmicos e ativistas, de dentro e de fora do Brasil.

É isso o que fica evidente nos dois últimos textos da seção, voltados à aplicabilidade dos conceitos e teorias da autora a pesquisas específicas, como os campos do ensino – com destaque para docentes e alunas negras – e do cinema considerado decolonial. A apropriação da teoria de Lugones para pensar a relação ensino-aprendizagem é realizada por Janaina Guimarães no artigo “Lugones e o escurecer do ensino de história”, que traz a experiência de um projeto de ensino desenvolvido numa escola da Mata Norte pernambucana. Como professora e mulher negra, Janaina entrelaça sua vivência à pesquisa, embasada no conceito de colonialidade de gênero e na busca pela descolonização das relações e dos papéis sociais encontrados nas salas de aula, em todos os cantos do Brasil. Ao abordar o tema das professoras negras em escolas de localidades não centrais, a autora revela os meandros do racismo nas escolas e como ele pode estar atrelado às relações de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, Lugones oferece alternativas teórico-metodológicas para se lidar com o desafio.

Por fim, Danielle Noronha e Maíra Ezequiel questionam a colonialidade no cinema, por meio do artigo “A presença da colonialidade no cinema feminista latino-americano”, que investiga filmes produzidos nos anos 1960 e 1970 por mulheres da Venezuela, de Cuba e da Costa Rica; respectivamente Margot Benacerraf, Sara Gómez e Kitico Moreno, em diálogo com a teoria feminista decolonial latino-americana, onde María Lugones assume um lugar central para se discutir a colonialidade de gênero em um veículo midiático de largo alcance, como o cinema. Se pensarmos na mídia como um dos mais importantes meios de (re)produção da colonialidade do poder, do saber e do ser, o texto de Danielle e Maíra aprofunda o conhecimento dos meandros sutis por meio dos quais as mulheres vão sendo aprisionadas em suas imagens e representações, mas também como utilizam esses mesmos meios para uma virada e a expressão de um posicionamento político. O feminismo decolonial se adequa prontamente a esse propósito.

Na certeza da relevância de Lugones e na satisfação com a publicação desta seção temática, esperamos que as leitoras e os leitores se encantem, como nós, organizadoras, com a variedade e a fecundidade desse diálogo.

Como é reiterado em cada um dos artigos que se seguem, María Lugones vive! Ela continua a falar, por meio de nós.

Nota

1 Nos anos 1990, Teresa De Lauretis já advertia sobre a ‘ideologia de gênero’ imposta sobre as mulheres. No final da última década, este conceito foi revertido contra professoras-pesquisadoras-autoras que atuam no campo dos estudos feministas e de gênero ou que discutem a temática em sala de aula, como uma ‘ideologia’ subversiva.

Referências

BIDASECA, Karina. “Los peregrinajes de los feminismos de color en el pensamiento de María Lugones”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 953-964, set./dez. 2014. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/DZkMkYVffMPKk7bPgMwCG8b/abstract/?lang=es Acesso em 16/10/2021.
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BIDASECA, Karina; ARTEAGA, Teresa. “Introducción”. In: BOLETÍN DEL GRUPO DE TRABAJO EPISTEMOLOGÍAS DEL SUR. Poética erótica de la relación: Sentipensar con María Lugones. Una reflexión desde el intersticio Buenos Aires, n. 4, julio, 2021, CLACSO.

COSTA, Claudia J. de Lima. “Feminismo, tradução cultural e a descolonização do saber”. Fragmentos, Florianópolis, n. 39, p. 045-059, jul./dez. 2010. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/29649/24801 Acesso em 13/09/2021.
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COSTA, Claudia J. de Lima. “Feminismo e tradução cultural: sobre a colonialidade do gênero e a descolonização do saber”. Portuguese Cultural Studies, Amherst, Massachusetts, v. 4, p. 41-65, Fall 2012. Disponível em Disponível em https://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1001&context=p Acesso em 13/09/2021.
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COSTA, Claudia J. de Lima. “Feminismos descoloniais para além do humano”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, dezembro 2014. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/qNnTL8TXntRD55pTsqWVq7g/?lang=pt&format=html Acesso em 13/09/2021.
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LUGONES, María. “Colonialidad y género”. Tabula Rasa Bogotá, Colombia, n. 9, p. 73-101, jul./dez. 2008. Disponível em Disponível em https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf Acesso em 15/09/2021.
» https://www.revistatabularasa.org/numero-9/05lugones.pdf

LUGONES, María. “Rumo a um feminismo descolonial”. Revista Estudos Feministas Florianópolis, SC, v. 22, n. 3, p. 935-952, set./dez., 2014. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755/28577 Acesso em 15/09/2021.
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Organizadores

Ana Maria Veiga – Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina com pós-doutorado em Ciências Humanas pela UFSC. Professora do Departamento de História e do PPGH da Universidade Federal da Paraíba. Suas áreas de interesse são teorias da história, história visual e digital, estudos decoloniais e interseccionalidades. É líder do grupo de pesquisa ProjetAH – História das mulheres, Gênero, Imagens, Sertões. E-mails: [email protected]; [email protected]

Karina Bidaseca – Professora titular da Universidad Nacional de San Martín e Universidad de Buenos Aires. Investigadora principal CONICET. Coordenadora Programa Sur Sur de CLACSO. Editora da publicação feminista “El Mismo Mar”. Seus livros recentes: “La Revolución será feminista o no será. La piel del arte feminista descolonial” (Prometeo); “Por una poética erótica de la relación” (El Mismo Mar). E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

VEIGA, Ana Maria; BIDASECA, Karina. Lugones: um caminho no horizonte decolonial. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 30, n.1, 2022. Acessar publicação original [DR]

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