Marx e a dialética da sociedade civil | Marcos Del Roio

Diante da crise mundial, nos últimos anos, os estudos sobre a obra de Marx voltaram a ganhar força no meio acadêmico. É neste cenário que foi produzida a obra Marx e a dialética da sociedade civil. O livro é resultado do “V Seminário Internacional de Teoria Política do Socialismo”, evento realizado na Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília (UNESP/Marília) com apoio do Grupo de Pesquisa Cultura e Política do Mundo do Trabalho e do Instituto Astrojildo Pereira.

O livro é organizado por Marcos Del Roio, professor titular de Teoria Política da UNESP de Marília, e possui quinze capítulos distribuídos em cinco unidades. É um livro interdisciplinar, pois seus autores são pesquisadores das mais diversas áreas das humanidades, como História, Ciência Política, Filosofia, Ciências Sociais e Educação.

A orelha do livro foi escrito por Antonio Carlos Mazzeo, professor do Departamento de História da USP, que salientou o papel da Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília como vanguarda dos estudos marxistas nas últimas décadas e sua participação ímpar no debate sobre o papel do marxismo no século XXI. O pesquisador salientou a importância dos estudos marxistas frente às novas demandas do capitalismo, nos últimos anos, e procurou demonstrar que a obra apresentada buscou revisitar conceitos importantes dentro da área, como revolução, negatividade dialética, trabalho, consciência, sociedade civil e alienação.

Na apresentação, Marcos Del Roio demonstrou que o papel da obra foi mostrar novas possibilidades de estudo e o papel de Marx dentro da historiografia do capitalismo e do capital nos dias atuais. Desde a reorganização do capitalismo, em finais do século XX, conhecido como neoliberalismo, os estudos marxistas vêm perdendo espaço nos meios acadêmicos. O autor lembrou a importância única do método marxista nesses tempos de crises e transformações radicais.

A primeira parte, denominada “Sobre as obras completas de Marx & Engels. A Mega²”, trata das tentativas de publicações das obras completas dos autores por uma edição crítica nas primeiras décadas do século XX. A unidade está organizada em dois capítulos, que analisam as dificuldades encontradas para a consecução desse projeto.

O primeiro capítulo, “Karl Marx após a edição histórico-crítica (MEGA2): um novo objeto de investigação”, escrito por Roberto Fineschi, professor da Filosofia na Universidade de Siena (Itália), trabalhou a história do projeto de edição crítica das obras completas de Marx, que se iniciou na década de 1920. Desde a Revolução Russa (1917) já era pensada a possibilidade de uma edição crítica das obras completas de Marx e Engels. Em 1921, a primeira tentativa foi levada a cabo pelo presidente do Instituto Marx-Engels (URSS) com o apoio do Partido Social Democrata Alemão, que possuía os manuscritos originais. O primeiro volume, de quarenta e dois planejados, saiu em 1927. Essa primeira proposta foi adiada com a ascensão de Stalin e a tomada de poder por Hitler. Em 1975, o projeto foi retomado com o nome de MEGA2 (Marx-Engels-Gesamtausgabe) sob a direção do Instituto de Marxismo-Leninismo (IML), do Comitê Central do Partido Comunista da URSS e do Comitê do Partido Socialista Unificado da Alemanha Oriental (SED). Com o colapso do socialismo real, aconteceu um debate sobre a importância da continuidade das publicações. Desde 1990, essa proposta ficou a cargo da Fundação Internacional Marx-Engels (IMES).

No segundo capítulo, “Sobre a nova edição da obra de Marx e Engels: só a filologia salva?”, Mauricio Vieira Martins, professor de Sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF), analisa como a história do projeto MEGA2 se confundiu com os percalços do projeto socialista, ao longo do século XX. O autor notou que a primeira tentativa do projeto, na década de 1920, sofreu uma politização excessiva e que o procedimento filológico fornecia cientificidade ao projeto. O atual diretor executivo da MEGA, Gerald Habmann. prevê a finalização da proposta de edição crítica das obras completas de Marx e Engels em 2025.

A segunda unidade do livro, intitulada “Alienação e Emancipação”, adentra em alguns conceitos importantes das obras de Marx, como alienação, ideologia, práxis, trabalho, emancipação, revolução e dialética. No primeiro capítulo que integra essa segunda parte, nomeado “Revisitando a concepção de alienação em Marx”, Marcello Musto, professor de Sociologia na Universidade de York (Canadá), salienta como a alienação foi uma das teorias mais relevantes e debatidas ao longo do século XX. A noção de alienação foi trabalhada por diversos escritores nas primeiras décadas dos Oitocentos, entre eles Hegel, Ludwig Feuerbach, Durkheim e Georg Simmel. O conceito de alienação, em Marx, ganhou evidência a partir do trabalho de Lukács, que utilizou algumas passagens de “O Capital” para tratar do conceito de reificação, se apropriando da ideia de fetichismo da mercadoria.

Em 1932, aconteceu a publicação inédita dos “Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844”, nos quais Marx analisou que a alienação não estava apenas presente nas esferas política, religiosa e filosófica, mas vai além, propondo sua presença nas perspectivas econômicas da produção material. Após a Segunda Guerra, o conceito de alienação começou a ser estudado por psicanalistas e virou tema da literatura nas obras de Sartre. Na década de 1970, aconteceu o aumento das pesquisas acadêmica em torno da temática.

No capítulo seguinte, “Alienação e ideologia: a carne real das abstrações ideais”, Mauro Luis Iasi, professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tratou dos conceitos de ideologia, estranhamento e alienação dentro dos estudos marxistas. Para o pesquisador, a ideia de estranhamento em Marx é fruto da ordem da mercadoria, levada a seu ponto máximo no desenvolvimento do capitalismo, e ideologia seria os ideais das classes dominantes que movem as sociedades. Segundo Iasi, a ideologia se diferenciou da consciência social por uma particularidade definida em sua função e só pode ser compreendida pela natureza das relações sociais que constituem as ordens das classes sociais.

No terceiro capítulo, “Práxis, trabalho e dialética da negatividade em Marx”, Paulo Denisar Fraga, professor de Filosofia na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), buscou revisitar os conceitos de práxis e trabalho nas obras do filósofo alemão. Para Marx, práxis é a ação do homem no sentido de transformar o mundo histórico e natural. Uma dessas formas de transformação da natureza é por meio do trabalho, a partir do qual o homem modifica o meio em que vive e sua realidade social.

No último capítulo dessa unidade, “Emancipação e revolução: crítica à leitura lukacsiana do jovem Marx”, escrito pelo professor titular em Ciência Política da Unicamp, Armando Boito Jr., foi analisado um texto de Lukács, de 1955, denominado “O jovem Marx – sua evolução filosófica de 1840 a 1844”, no qual o autor reconheceu que havia diferenças teóricas entre os escritos do jovem Marx e suas obras na maturidade. As distinções começaram a aparecer no livro Sobre a Questão Judaica. Em seus escritos, Marx teria transitado de uma posição democrática revolucionária para o comunismo. Desta forma, seu pensamento é um constante processo evolutivo desde 1842. isso é notado pelas diferentes interpretações de Estado encontradas no jovem Marx e em suas obras posteriores.

Na unidade seguinte, “Proletariado e Revolução”, os textos abordam os conceitos de lutas de classes, processo revolucionário e revolução permanente e buscam teorizar a concepção de partido em Marx. A periodização é uma particularidade dos escritos que compõem essa parte da obra, todos eles se concentram na década de 1840, tratando das primeiras formulações do teórico alemão. No primeiro capítulo que compõe esta unidade, intitulado “Alguns apontamento sobre a concepção de partido em Marx – 1843 a 1848”, Anderson Deo, professor de Ciência Política na Universidade Estadual Paulista (UNESP), responde uma pergunta: há uma teoria sobre partidos políticos na obra de Karl Marx? A partir da trajetória teórica e política do filosofo alemão, o pesquisador buscou explicar os modelos de partido que o autor se propôs a implementar e teorizar.

Entre os anos de 1842 e 1843, em seus primeiros contatos com grupos socialistas, Marx começou a se preocupar radicalmente com a realidade material. Em 1844, um fato inusitado, a Revolta dos tecelões da Silésia, promoveu um impacto nas obras de Marx. Em 1845, Marx passa a teorizar sobre a revolução comunista a partir das iniciativas de um partido revolucionário, que conseguiria conquistar seus objetivos caso não se distanciasse das massas operárias.

No capítulo seguinte, “Luta de classes e luta revolucionária em Marx”, o organizador da obra, Marcos Del Roio, situou os posicionamentos políticos de Marx nos anos finais da década de 1840. Em 1844, devido às suas manifestações em jornais, ele foi deportado da França. A partir dai, o teórico estudou sobre a economia política e o papel do operariado na negação da ordem burguesa vigente. Fundou, durante sua estadia em Londres, a Revista de Economia Política, importante veículo de divulgação dos seus ideais na década de 1840.

Em 1847, Marx adentrou a Liga dos Justos, que foi o embrião da Liga Comunista. Essa entidade foi fundada em 1834 com o lema “todos os homens são irmãos”. Seus ideais eram embasados no socialismo utópico de Saint-Simon e seus membros tinham como principal objetivo o estabelecimento de uma República Social nos territórios da Prússia. A partir de sua participação na Liga, o filósofo começou a considerar que a sociedade civil seria o local das relações sociais de produção e exploração do homem. Frente à situação da França entre os anos 1848 a 1850, Marx passou a considerar a aliança operário-camponesa como a única forma de reestruturação do país.

No último capítulo que constitui a unidade, nomeado “O conceito de revolução permanente em Marx e Engels”, David Maciel, professor de História da Universidade Federal de Goiás (UFG), tratou do panorama que possibilitou os teóricos pensarem a conceituação de revolução permanente. A partir de 1848, a burguesia deixou seu papel de classe revolucionária, como ocorrera no panorama das Revoluções de 1848, e os movimentos que aconteceram na Europa no final da década de 1840 constituiram o núcleo de ideias de Marx e Engels para construir a ideia de revolução permanente, fenômeno que permitiria a ascensão do proletariado à condição de classe dirigente da sociedade. Nesse sentido, a revolução carregaria, em sua essência, a perspectiva da emancipação social e humana. Esse conceito foi pensado em seu sentido político e prático para as estratégias revolucionárias que poderiam ser adotadas nos territórios alemães.

Os artigos que compõem a quarta parte do livro, “A dialética do capital”, fazem uma análise da principal obra de Marx, O Capital, buscando interpretá-la em panoramas diversos e trazer sua importância para os dias atuais. No primeiro capítulo da unidade, “Ler O Capital: a primeira frase ou o capital começa com a riqueza, não com a mercadoria”, John Holloway, professor de Sociologia na Universidade de Puebla (México), analisou a primeira frase do texto de Marx, mostrando as enormes implicações teóricas e políticas de se perceber que a mercadoria não seria o ponto de partida para o início das análises de Marx sobre o capitalismo, mas que a riqueza seria a chave de seu entendimento sobre esse sistema.

No segundo capítulo, “Método e representação: o dinheiro como expressão conceitual da forma de si do capital”, o professor de sociologia da Unicamp, Jesus Ranieri demonstrou como o dinheiro é a forma básica da circulação de capital e como toda a entidade social é produto das atividades do homem. Assim, existiria uma relação entre dinheiro e mercadoria, pois o mesmo seria uma fabricação resultante do tempo de trabalho do homem.

No último capítulo da unidade, “Capital: subjetividade e relação”, o professor de Filosofia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Hélio Ázara de Oliveira, buscou explicar o que seria o capital, compreendido não apenas como dinheiro e mercadoria, mas como a relação entre esses produtos. Assim, o capital seria a conexão existente entre mercadoria e dinheiro.

A quinta e última unidade do livro, “O fim do Estado”, é composta por três textos que buscam teorizar o conceito de Estado nas obras de Marx. A ideia de fim do Estado, ou de fim da História, teoria iniciada por Hegel no século XIX, foi retomada nas últimas décadas do século XX por Francis Fukuyama, em O fim da história e o último homem, obra duramente criticada em diversos círculos intelectuais acadêmicos.

No primeiro texto que compõe a unidade, intitulado “Marx diante da acusação de ser um defensor do Estado”, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Paulo Douglas Barsotti, ressaltou como os impactos da Queda do Muro de Berlim gerou uma crença no fim da história, das utopias e ideologias. Para entender a concepção de fim do Estado, o autor buscou analisar excertos das obras do Marx que tratavam da superação do Estado burguês e a destruição das instituições políticas pela ação revolucionária. Desta forma, salienta a importância dos estudos marxistas para a compreensão dos processos revolucionários e das mudanças que estes desencadeariam dentro do aparelho estatal.

No artigo seguinte, “A questão da transição e de fim do Estado nas obras do Marx tardio”, o professor de Filosofia da Universidade Tuiuti (Paraná), Pedro Leão da Costa Neto, resgatou o período final de escrita de Karl Marx, entre os anos de 1871 a 1883, posteriormente à Comuna de Paris. Nessa época, de acordo com sua análise, Marx acreditava que a Ditadura do Proletariado seria o tempo de transformação revolucionária entre o capitalismo e o comunismo e que, após isso, haveria o fim do Estado burguês.

No último capítulo do livro, “Trabalho associado e extinção do Estado”, o professor de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Ivo Tonet, salientou a importância das obras de Marx diante da crise econômica vivida nos dias atuais. A partir desse panorama, o autor recua no tempo de modo a demonstrar o tratamento dado ao marxismo nos Estados soviéticos e explicar a teoria de trabalho associado, peça importante em uma sociedade comunista. No processo revolucionário, a transferência do poder do Estado de uma classe para outra implicaria na substituição do trabalho assalariado pelo associado. Essa mudança seria necessária, pois, segundo o autor, o Estado burguês é o instrumento para a manutenção da exploração do homem pelo homem e para a continuidade da propriedade privada.

Em suma, o livro Marx e a dialética da sociedade civil cumpre um papel ímpar no panorama acadêmico atual: demonstrar a importância dos estudos marxistas nos tempos atuais e o papel de Marx nas interpretações do sistema capitalista. O livro é um convite à reflexão para os iniciados nos estudos marxistas e um convite para aqueles que conhecem pouco da historiografia sobre o assunto.

Conhecer um pouco da obra de Marx nos dias atuais é uma forma de resistência única diante dos tempos sombrios de conservadorismo e intolerância para os quais o sistema empurra a humanidade. Marx e a dialética da sociedade civil advoga a revisitação das obras clássicas do marxismo para melhor compreensão dessa era.


Resenhista

Thiago Henrique Sampaio – Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

DEL ROIO, Marcos (Org.). Marx e a dialética da sociedade civil. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 18, n. 1, p. 95-99, maio. 2018. Acessar publicação original [DR]

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