Max Weber / Revista de Teoria da História / 2016

A atualidade do pensamento de Max Weber se faz notar numa diversidade de áreas do conhecimento que se cruzam e se reforçam. Em nenhuma delas, talvez, ela se faz sentir tão intensamente quanto como no debate contemporâneo sobre a natureza e o funcionamento do capitalismo como sistema, mais que econômico, cultural, como forma de vida. Muitas vezes acusado por seus opositores de um amargo pessimismo, a leitura que Weber fez do capitalismo moderno se mostrou em muitos aspectos de uma lucidez quase extemporânea, pois foi capaz de vislumbrar algo que para muitos até hoje ainda não está claro: a constituição histórica do capitalismo como uma engrenagem de reprodução autônoma e irreversível, fadada a se desenvolver sob a égide do mesmo princípio – o princípio de eficiência e competência oriundo da ascese intramundana – até que se queimasse a última porção de combustível fóssil. O diagnóstico sombrio dado por Weber ao final da Ética Protestante, de um processo de racionalização que, apesar de conduzir a um modo de vida irracional, não pode ser interrompido nem evitado, continua de pé até os dias de hoje.

O puritano queria ser um profissional – nós devemos sê-lo. Pois a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem – não só dos economicamente ativos – e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil.1

Ao que parece, a única força capaz de deter o capitalismo, para Weber, seria o próprio esgotamento dos recursos naturais que moviam sua engrenagem sistêmica, no caso, os combustíveis fósseis. A lucidez penetrante do diagnóstico weberiano certamente incomodou a todos aqueles que sustentavam esperanças utópicas de emancipação numa sociedade pós-capitalista, mas não foi longe o bastante para prever que o próprio capitalismo desenvolveria dispositivos de manipulação energética que o livraria de sua dependência dos combustíveis fósseis – e que, nesse sentido, o potencial de desenvolvimento do capitalismo iria a um limite ainda bem mais longe daquele vislumbrado por Weber. Esse limite, difícil de ser determinado, vai ao ponto de o capitalismo constituir, como nos mostra José Luis Villacañas Berlanga, o seu próprio entorno, a sua própria natureza. Em relação ao tema do desenvolvimento e caracterização do capitalismo no mundo contemporâneo, o dossiê Max Weber da Revista de Teoria da História nos premia com quatro artigos de amplo espectro crítico e reflexivo.

José Luís Villacañas Berlanga traça um lúcido e profundo diagnóstico do capitalismo tardio à luz do vocabulário weberiano, refletindo sobre duas direções do pensamento de Weber cujo cruzamento põe em primeiro plano o conflito entre a racionalização capitalista, por um lado, e a política e a legitimidade, por outro. Villacañas, fazendo convergir o pensamento de Weber com o de Hans Blumenberg, Reinhart Koselleck e Michel Foucault, coloca o problema da relação entre capitalismo e legitimidade em termos ontológicos, mostrando como enquanto o capitalismo “se impõe como um espaço ontológico próximo ao necessário”, a legitimidade, por sua vez, evoca uma ontologia do possível.

Elizângela Valarini e Markus Pohlmann realizam, à luz do instrumental heurístico weberiano, uma formidável pesquisa empírica que procura investigar a emergência de um novo espírito capitalista entre os executivos brasileiros. Assim, a partir de uma atualização do conceito de “espírito do capitalismo” no contexto da globalização, Valarini e Pohlman reconstroem, por meio de entrevistas dirigidas realizadas com vários executivos, as estruturas de significado disponíveis no contexto de ação do empresariado brasileiro, destacando os elementos cognitivos e normativos que orientam sua conduta.

No que toca ao estatuto das ciências da cultura como expressão reflexiva das sociedades modernas, como forma de auto-reflexão da modernidade, a RTH apresenta também estudos um tanto promissores para o debate. Em seu ensaio Luiz Sérgio Duarte da Silva, reflete sobre como o conhecimento racional dos fenômenos simbólicos foi identificado por Weber como um produto positivo da modernização que, além disso, pode ser entendido como um gesto politicamente comprometido de sua obra. Duarte da Silva, assim, colabora para sobrepesar a imagem de um Weber resignado, fixada no Brasil pela já clássica interpretação de Gabriel Cohn em Crítica e Resignação, trazendo à tona uma dimensão de “responsabilidade radical” que redefine a imagem de Weber: Weber, o engajado. As ciências da cultura são entendidas, assim, não como um fim em si mesmas, mas como um meio (político) essencialmente moderno para minimizar as consequências dos paradoxos da ação humana.

Astor Antônio Diehl realiza uma profunda inspeção na rede de relações estabelecidas pelo conceito weberiano de cultura, destacando a História como explicitação do conceito de ciência da cultura. Após desdobrar aquelas que seriam as funções conceituais da cultura – a saber, a de motivação de interesses, de orientação temporal e de regulamentação de ações – Diehl passa a uma consideração sistemática sobre as funções existenciais e transcendentais da cultura, enfatizando em seguida a cultura historiográfica e a história como capazes de desempenhar o nobre e árduo papel de “texto representativo das experiências humanas”.

Sérgio da Mata, num artigo cujo tema central é o contemporâneo de Weber, Ernst Troeltsch, traz à tona elementos da atualidade do debate travado em torno da fundamentação das ciências humanas nas primeiras décadas do século XX, destacando a posição de Ernst Troeltsch como aquela que inauguraria, senão um novo paradigma teórico, uma nova etapa do debate do qual o próprio Weber participara tão intensamente. Ele apresenta a posição de Troeltsch, assim, como se situando entre tradição hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, por um lado, e a tradição lógico-formal no neokantismo de Baden, especialmente Windelband e Rickert. Resumindo os traços fundamentais das críticas de Troeltsch a Rickert, Sérgio da Mata indica os fundamentos de uma nova classificação das ciências encaminhada por Troeltsch, que subdividia as ciências humanas em ciências ético-históricas e ciências histórico-tipológicas.

De caráter essencialmente metodológico são as contribuições de Daniel Fanta e Henrique Florentino. Fanta apresenta uma rigorosa análise de uma das categorias da sociologia compreensiva de Max Weber: o tipo de racionalidade referente ao correto. No caso, Fanta desvela o caráter heurístico dessa categoria conceitual, acentuando o modo como o tipo correto pode ajudar na compreensão de uma ação. Enquanto tipo ideal e instrumento heurístico do investigador, o tipo correto constitui a construção de um curso de ação cujo sentido subjetivo seria rigorosamente racional de acordo com os meios que são considerados adequados para a realização dos fins daquela ação. Quanto mais os meios empregados pelo ator social na busca de um fim coincidirem com aqueles que, segundo o estoque de conhecimento do próprio cientista social, são adequados, mais racionalmente compreensiva será a ação e menos a compreensão precisará recorrer a procedimentos empáticos.

Florentino, por sua vez, opera uma análise abrangente da categoria weberiana de compreensão, diferenciando a compreensão do sentido subjetivamente visado, por um lado, da compreensão psicológica do agente, por outro, destacando a complementaridade entre conceber (Begreifen) e compreender (Vertehen), entre interpretação e compreensão. Florentino mostra como a interpretação vai além da compreensão, constituindo um modo de conceber o que não está dado na compreensão do que é intuitivamente evidente – isto é, do que foi vivido.

Maria Palacios e Ariovaldo de Oliveira Santos exploram outras facetas da obra de Weber. Palacios reflete sobre o tema das cidades na obra de Weber, chamando a atenção para a necessidade de se considerar as dimensões não econômicas que compõem a cidade, especialmente os aspectos políticos, administrativos e culturais. Oliveira Santos sugere uma aproximação entre a sociologia compreensiva de Weber e o Serviço Social. O autor destaca como relevante a compreensão do sentido visado subjetivamente pelos agentes e a ação individual como fundamento da análise sociológica; além disso, alerta ainda para o risco de reificação conceitual das estruturas sociais, compostas sempre, em última instância, por indivíduos e suas respectivas ações individuais; e destaca, por último, a importância dos tipos ideais, da tipologia da ação e da dominação burocrática para o Serviço Social. Por fim publicamos, ainda dentro do dossiê, uma tradução do artigo de Thomas Schwinn “Problemas de uma compreensão plural de modernidade”.

Fora do dossiê ainda publicamos dois artigos e duas entrevistas. No artigo de Breno Mendes e Pedro Henrique Barbosa Montandon de Araujo “Quentin Skinner e Paul Ricoeur: do giro linguístico ao giro ético-politico na historia intelectual” o autor busca compreender as articulações entre o giro linguístico e o giro ético-politico tendo como aporte a obra de Quentin Skinner e Paul Ricoeur, perscrutando as implicações éticas do estudo da historia intelectual. A. Paulo Dias Oliveira e Renata Malcher Araujo em “Tempo e modernidade, espaço e os paradoxos de Zenão. Com uma apostila sobre o conceito de espaço” os autores trabalham sobre o conceito de tempo e espaço a partir d uma longa duração. Por fim publicamos duas entrevistas. Uma com o professor espanhol Josep Fontana sobre a sua produção teórico-historiografica como também as suas reflexões sobre a dimensão política da historiografia. A segunda entrevista com o professor Estevão Chaves de Rezende Martins versa sobre conceitos gerais da historia da historiografia e da teoria da historia como também suas implicações éticas.

A Revista de Teoria da História, assim, recomenda a todos uma excelente leitura e se mantém, desde já, um espaço aberto a críticas e ao debate suscitado pelos artigos.

Nota

1. Weber, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 165.

Ulisses do Vale – Professor doutor do departamento de história da UFG. Membro do Conselho Editorial da Revista de Teoria da História


VALE, Ulisses do. Apresentação. Revista de Teoria da História, Goiânia, v.16, n.2, dezembro, 2016. Acessar dossiê [DR]

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