Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico – VIDAL (VH)
VIDAL, Laurent. Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 294 p. Resenha de: FURTADO, Júnia Ferreira. Varia História. Belo Horizonte, v. 25, no. 41, Jan. /Jun. 2009.
Raiava o dia 11 de março de 1769. Na fortaleza portuguesa de Mazagão, situada no noroeste da África, encravada no Marrocos, cercada pelos mouros, desde cedo os moradores se irmanavam num movimento incomum. Para estes 1642 habitantes, esta data ficará gravada com fogo na memória de cada um, apesar desta praça, desde 1509 sob a posse da Coroa portuguesa, já ter passado pelas mais dolorosas privações. Durante 260 anos, as sucessivas gerações de moradores, vivendo isolados do restante do continente, numa fortaleza debruçada sobre o mar, ao qual se ligavam por uma estreita porta, haviam sido fustigadas pelo isolamento, pela fome, pelas epidemias, pelos conflitos internos, mas também pelo tédio e pela inércia, todos subprodutos da sua reclusão. Mas nada se comparava ao que estava para acontecer. Apesar de todas as dificuldades, ao longo dessa longa jornada, haviam sempre resistido bravamente aos avanços do inimigo infiel. A bandeira portuguesa, que, por dois séculos e meio, com orgulho e a todo custo, mantiveram hasteada na fortaleza, para além da submissão à Coroa portuguesa, também era símbolo de sua bravura, pois fora graças a esta que mantiveram viva a presença do catolicismo numa região dominada pelos hereges mulçumanos. Seus feitos e sua tenacidade repercutiriam ainda por longo tempo na memória dos portugueses.
Porém, nesse dia, um outro capítulo de sua história, bem diferente da tradição de heroísmo precedente, estava para se iniciar. Cercada por 120 mil soldados mouros, sob o comando do sultão Mohamed, ao longo do dia, sob as ordens do rei dom José e de seu poderoso ministro – o marquês de Pombal -, a fortaleza será evacuada de forma definitiva. Em Mazagão: a cidade que atravessou o Atlântico, Laurent Vidal se debruça sobre a saga destas 469 famílias desterradas, cujo destino vai flutuar, ao sabor das ondas, entre a África, Portugal e o Brasil. Premidos pelo contexto de disputa entre Portugal, Espanha e França pelos territórios americanos, a Coroa portuguesa decide trasladar toda a comunidade para os confins da Amazônia e, como peões num tabuleiro de xadrez a serviço da realeza, os mazaganenses vão ser deslocados sob a justificativa do uti possidetis – o direito de posse a quem efetivamente tiver povoado –, o que garantiria o efetivo domínio português das terras entre o norte do rio Amazonas e a Guiana Francesa.
Como acentua o autor, a cidade que atravessa o Atlântico vai ao longo do tempo se desdobrar em inúmeras outras. Com o passar das vagas, a cidade-fortaleza de Mazagão vai se configurando apenas como uma “cidade-da-memória”, cuja identidade guerreira, tão arduamente construída, vai aos poucos se dissolver nas espumas flutuantes do tempo para dar lugar a novas cidades que sintetizam as diferentes experiências vivenciadas pelos moradores na sua trajetória rumo à Nova Mazagão. Inicialmente, tendo perdido suas muralhas, embarcada em 14 naus, a cidade se transforma em “14 bairros flutuantes”, que procuram, balançando no mar salgado, reproduzir a ordem e a hierarquia da fortaleza abandonada. Em seguida, como num rito de passagem, a comunidade de Mazagão, distribuída em inúmeras residências temporárias, é instalada provisoriamente em Lisboa, dispersando-se pelo bairro de Belém. Torna-se uma cidade dentro de uma outra pré-existente, desta feita sem as muralhas que a circundavam. Esta “cidade-alojamento” ou “cidade-transitória” não dura por muito tempo, pois em setembro de 1769 chega então o tempo de uma nova mudança.
Aos poucos, num processo que se arrasta entre 1769 e 1770, “a cidade desmontada atravessa o Atlântico”. Do outro lado do oceano, novamente em caráter provisório, a “cidade-de-muralhas-líquidas” se instala em Belém, porta de entrada da Amazônia portuguesa. Ali, se transmuda na “cidade da espera”, uma cidade-do-vir-a ser, pois não é este ainda o destino final dos mazaganenses. Em Belém, o tempo se alonga e a “cidade-vivida” se altera com o passar do tempo: uns morrem, uns se casam, uns partem, outros nascem. Começa então a última etapa, chega o tempo de se transmudar novamente, para cumprir seu destino final. Em pequenos grupos, embarcados em frágeis canoas, a partir de 1771, a “cidade-em-deslocamento” vai aos poucos sendo conduzida pelo leito do rio Amazonas com destino ao seu novo pouso. Trata-se da cidade de Nova Mazagão, a “cidade-do-futuro”, às margens do rio Mutacá, cujas águas se lançam no Amazonas cerca de trinta léguas ao sul de Macapá, do outro lado da ilha de Marajó. Ali, utilizando-se de mão-de-obra indígena cuja presença se perdeu no tempo, no que se constituiu uma “cidade-sem-rosto”, a Companhia do Grão Pará vinha edificando uma “cidade-imagem”, como “aposta de um futuro possível” para que os mazaganenses-ainda-em-trânsito finalmente se instalassem e vivessem o destino que as autoridades tinham meticulosamente traçado para eles. A antiga cidade-guerreira deve se tornar uma cidade de agricultores-escravistas. Esse é o plano da Coroa, transforma-los em colonizadores para assegurar as fronteiras amazonenses.
Porém a cidade-do-sonho se configura numa dura realidade. A “cidade-de-papel” que as autoridades tinham planejado, ao ser vivida enquanto “cidade-renascente”, gera uma corrente sem fim de tensões e dificuldades. Os neomazaganenses não se ajustam a essa nova configuração. Para eles, trata-se de uma “cidade-purgatório” e coletivamente recusam a identidade amazônica que, artificialmente, as autoridades querem lhes imputar. A “cidade-da-memória” passa, então, a ser constantemente invocada como um passado ideal, “a linguagem perdida de uma sociedade morta”. Segundo o autor, 1783 marca o fim da transmigração da cidade e de sua refundação. Daí para frente, os documentos são escassos e a cidade quase desaparece entre a selva densa que a circunda, como a muralha perdida da Mazagão africana, tornando-se uma “cidade-invisível”, cuja saga em grande parte se perdeu no tempo. Porém, como o estudo revela, na verdade, ao longo dos séculos XIX e XX, se a “cidade-real” foi sendo aos poucos abandonada pelos antigos mazaganenses e seus descendentes, novos moradores vêm se instalar. São remanescentes de escravos, quilombolas, que, desta feita, conferem-lhe uma feição de “cidade-mestiça”. É essa “cidade-amazônica” que o autor visita em seu périplo para reconstruir seu passado e sua memória. Encontra uma cidade-em-festa que, na ritualística da luta entre mouros e cristãos, recria sua identidade atual, reinventa seu passado e projeta seu futuro. Nesse livro, como Homero, inspirado pela musa da História, Laurent Vidal nos revela, de maneira brilhante e instigante, os destinos de Mazagão, uma cidade-odisséia que atravessa o Atlântico.
Júnia Ferreira Furtado – Professora do Departamento e Programa de Pós-graduação em História da UFMG. Av. Antônio Carlos, 6627, Caixa Postal 253. Belo Horizonte – MG- CEP. 31.270-901. juniaf@ufmg.br.