Medicine & Health Care in Early Christianity | Gary B. Ferngren

Em 1874, o inglês John William Draper publicou o livro The history of the conflict between religion and science. Como o próprio título denota, o autor adotava uma perspectiva segundo a qual existiria um antagonismo entre religião e ciência desde que o cristianismo ascendeu politicamente.[2] Cerca de vinte anos depois, Andrew Dickson White publicou A history of the warfare of science with theology in Christendom, em que adotava uma ótica similar à de Draper. [3]

Esses dois trabalhos experimentaram um grande sucesso comercial, influenciando na produção posterior dos historiadores da ciência. Dessa forma, tornaram-se as principais referências numa tendência historiográfica conhecida como tese do conflito. Segundo seus adeptos, a História da Ciência seria constituída de uma série de conflitos entre religião e ciência, tendo nos casos de Galileu Galilei e Charles Darwin seus exemplos mais ilustres.

No decorrer das décadas de 1980 e de 1990, surgiram pesquisas que questionavam a existência de um conflito perpétuo entre a religião, mesmo a cristã, e a ciência.[4] Gary B. Ferngren, professor de história grega e romana da Oregon State University desde 1970, realizou sua pesquisa sobre a interação entre o cristianismo dos séculos I ao IV em consonância com essa nova perspectiva. Seu livro Medicine & health care in Early Christianity, ora resenhado, expõe os resultados desse esforço investigativo.

No primeiro capítulo, intitulado Methods and approaches, apresenta um balanço crítico da produção concernente à relação dos cristãos com a medicina grega. Nele, Ferngren destaca o viés positivista da tese do conflito, avaliando-o como responsável pela hipótese inapropriada, mas muito difundida, de que os primeiros cristãos eram contra a medicina.

Ferngren aponta os três pressupostos que norteiam seu trabalho. O primeiro consiste na confiabilidade do Novo Testamento como fonte para o estudo do Jesus histórico e do cristianismo originário. O segundo concerne à metodologia: considerando o aporte das ciências sociais e do pósestruturalismo restritivo, Ferngren defende que a perspectiva histórico-filológica seria a mais apropriada. Por fim, a terceira pressuposição tem por fundamento a tese de que, na época romana, a medicina praticada em todo o mundo mediterrâneo era tributária do saber médico grego – inclusive a dos judeus e dos cristãos.

O segundo capítulo tem por objetivo comprovar que, entre os séculos II e IV, o entendimento cristão a respeito da medicina não diferia do conhecimento aceito na Roma imperial. Para tanto, Ferngren esclarece a compreensão gregas das causas e formas de tratamento das doenças e sua absorção no contexto cultural romano e judaico. Após tal exposição, o autor aborda o posicionamento dos apologistas da segunda centúria frente ao saber médico, constatando que tais escritores não o condenavam e até mesmo demonstravam ter grande conhecimento anatômico.

Ao fim do capítulo, é analisada a obra do retórico Arnóbio de Sica, que se converteu ao cristianismo no começo do quarto século. Após tal exame, Ferngren constata que esse intelectual, mesmo inclinado a denunciar as crenças pagãs que então abandonara, considerou a medicina um presente de Deus e cuja prática seria lícita ao cristão. Sua hipótese de que a adesão ao cristianismo não implicava numa negação do saber médico clássico é devidamente corroborada por essa constatação.

Partindo da crítica da tese de que o cristianismo atribuía uma origem demoníaca a todas as doenças, o objetivo do terceiro capítulo do livro é de examinar a compreensão cristã de enfermidade em seus primeiros cinco séculos. Conforme exposto, a cura promovida por Jesus geralmente não era por magia e nem por exorcismo, uma vez que não atribuía causas demoníacas às doenças, distanciando-se da perspectiva do Antigo Testamento. Entre os apologistas do século II, a influência de entidades demoníacas sobre a saúde não era clara, uma vez que ora atribuem as dolências a demônios e ora, a causas naturais.

Ferngren demonstra que foi a partir do século III, com o aumento das referências ao Diabo e às vitórias de Cristo sobre seu oponente, cresceu a reflexão e o recurso ao exorcismo – o que, entretanto, não necessariamente fez crescer o uso desse rito para fins curativos. A difusão da procura por curas milagrosas ocorreu a partir do século IV, fenômeno que não provocou o abandono da crença no poder da medicina. Ao contrário: o milagre operava junto ao tratamento médico, particularmente quando esse falhava ou estava indisponível.

Ao final do capítulo, o autor defende que os autores cristãos relacionavam os problemas de saúde ao Pecado Original e à expulsão do homem do Paraíso. Assim, nem toda a enfermidade era causada pelas forças de Satã, pois a possibilidade de adoecer era uma consequência da Queda. Nessas circunstâncias, a medicina seria um presente de Deus para curar naturalmente esse tipo de mal, sendo o restabelecimento da saúde algo proporcionado pelo desígnio divino.

No quarto capítulo do livro, Ferngren propõe a discussão da tese de Adolf Harnack de que o cristianismo originário foi uma “religião da cura” e que proporcionava um modelo curativo alternativo à medicina secular.[5] Sem negar que o milagre teve destaque na trajetória de Jesus e na literatura neotestamentária, Ferngren destaca que as narrativas apresentavam tais curas como manifestações físicas de uma nova ordem espiritual marcada pela atuação do Messias. Algumas leituras cristãs posteriores dos Evangelhos apontavam que a cura não seria apenas física, mas também espiritual, estabelecendo um vínculo entre o pecado e a enfermidade.

Entre os autores cristãos dos séculos II e III, houve uma diminuição do número de referência a curas milagrosas. Na interpretação de Ferngren, a quantidade de relatos da atuação do deus Asclépio era maior que as de Jesus, dificultando o trabalho de desacreditá-las; assim, a argumentação racional tinha um potencial de captação de fieis do que os milagres. Foi somente no século IV, com a atribuição de poderes curativos aos ascetas, que o cristianismo se tornou uma “religião da cura” – o que não significou o repúdio à atividade médica.

Ferngren, no quinto capítulo, discorre sobre o desenvolvimento do auxílio médico como atividade caritativa cristã. Conforme expõe, os autores cristãos exaltavam a figura do médico motivado pela virtude da caridade, tendo como base os conceitos greco-romanos de philanthropia e agape, tal como a ideia hebraica de imago Dei. A caracterização o próprio Cristo como médico e a difusão do saber medicinal entre o clero derivavam da valorização da assistência aos enfermos. Na esteira dessas conclusões, o sexto capítulo explica a criação e organização da estrutura eclesiástica de amparo aos doentes a partir do século III, destacando o surgimento dos hospitais. Ferngren sublinhou a atuação dos cristãos no cuidado às vítimas durante a epidemia da praga de Cipriano no século IV e sua contribuição para a consolidação do poder episcopal.

Com base nessa análise, deve-se ressaltar os méritos de Gary Ferngren em Medicine & Health Care in Early Christianity. Primeiramente, a erudição que serve de base à elaboração dos seus argumentos: seu raciocínio é conduzido pelo estudo cuidadoso de uma ampla e diversificada documentação, permitindo que o autor teça conclusões bem fundamentadas. Também é importante destacar que o trabalho de Ferngren é permeado de críticas sólidas a hipóteses aceitas pela historiografia a respeito da medicina nos primeiros séculos do cristianismo.

Notas

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaborador do Programa de Estudos Medievais (PEM).

2 DRAPER, John Willian. History of the conflict between religion and science. New York: D. Appleton and Company, 1874.

3 WHITE, Andrew Dickson. A history of the warfare of science with theology in Christendom. New York: D. Appleton and Company, 1898.

4 Para um balanço da historiografia a respeito das relações entre ciência e religião, conferir os capítulos de David B. Wilson e Colin A. Russell no livro: FERNGREN, Gary B. (ed.). The history of science and religion in the Western tradition. An encyclopedia. New York, London: Garland, 200.

5 A ideia foi apresentada em: HARNACK, Adolf von. The mission and expansion of Christianity in the first three centuries. London: Williams and Norgate, 1908, 2v. V. 1. p. 127-151.

Bruno Uchoa Borgongino1 – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colaborador do Programa de Estudos Medievais (PEM).

FERNGREN, Gary B. Medicine & Health Care in Early Christianity. Baltimore: The Johns Hopkins University, 2009. Resenha de: BORGONGINO, Bruno Uchoa. Crítica Histórica. Maceió, v.4, n.7, p.357-360, jul., 2013. Acessar publicação original [DR]

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