Memória e Sociedade: lembranças de velhos | Ecléa Bosi

Cônjuge do crítico literário e historiador da literatura brasileira Alfredo Bosi, Ecléa Bosi nasceu em São Paulo e atualmente é professora de Psicologia Social na USP. Possui Graduação (1966), Mestrado (1970) e Doutorado (1971) nessa mesma área temática, por esta instituição. É coordenadora da Universidade Aberta à terceira idade e atua nos seguintes temas: psicologia, memória, cultura. Bosi é autora de Memória e sociedade, Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias, Velhos amigos, O tempo vivo da memória e da antologia Simone Weil. Recebeu o título de professora emérita em outubro de 2008, o prêmio internacional Ars Latina (2009) por Memória e sociedade e os prêmios Loba Romana e Averroes (2011). Mulher singular, Ecléa Bosi traduziu escritores de renome internacional como Leopardi, Ungaretti, Garcia Lorca e Rosália de Castro. Sua tese de livre docência intitulou-se Um estudo de psicologia social da memória, obtida em 1982 e apresenta a arguição teórica que deu base à Memória e Sociedade.

Recentemente incluída pelo Ministério da Educação entre as cem obras sobre o Brasil que devem compor as bibliotecas das escolas públicas e a do professor, Memória e Sociedade: lembranças de velhos apresenta-se seccionada em cinco partes: Introdução, Memória-sonho e memória-trabalho, Tempo de lembrar, Lembranças e A substância social da memória. Além de trazer um prefácio do crítico literário João Alexandre Barbosa, falecido em 2006, intitulado Uma psicologia do oprimido e uma apresentação nomeada Os trabalhos da memória, da filósofa Marilena Chauí.

Já no prefácio, João Alexandre Barbosa alerta-nos sobre ser esta uma obra onde a autora colhe memórias de velhos, dando-as existência, porque para ele narrar é sofrer, é apreender o ritmo da vida; sendo assim, é o lembrar que os permite viver. Da mesma forma, Marilena Chauí alerta-nos sobre a necessidade de encabeçar uma luta pela camada dos velhos, uma camada oprimida que não tem armas para lutar e que sofre opressão pelos mais diferentes meios, sejam eles institucionais, psicológicos, técnicos ou científicos. Apontando que ser velho é sobreviver, Chauí descreve que a sociedade contemporânea impede os rastros da memória; desse modo e nesse cenário, a conversa evocativa com um velho torna-se uma obra de arte.

Deixando essas partes iniciais, temos agora a voz, escrita e presença de Bosi. Na primeira parte, a autora apresenta as teorias de Bergson, Halbwachs, Bartlett e Stern. Henry Bergson trabalha com a ideia de cone da memória; segundo ele, as lembranças estariam em uma base e desceriam para um vértice, onde as ideias deixam passar as lembranças. Em conformidade com isso, discorre também que o passado se conserva e atua no presente, mas não de forma homogênea, pois a memória está heterogeinizada em memória-hábito e imagem-lembrança. Por outro lado, Maurice Halbwachs aponta a memória enquanto um fenômeno social. Em sintonia com este, Charles Bartlett diz que a recordação está envolta em um contexto cultural e ideológico, logo, para ele, a memória é uma construção social. Por outro ângulo, William Stern aponta que a unidade pessoal (subjetiva) conserva suas imagens do passado, mas pode alterá-las conforme seu desenvolvimento.

Na seção Tempo de lembrar, Ecléa Bosi discute aspectos recorrentes sobre o papel dos velhos na sociedade atual, apontando-os como agentes de socialização e aculturação. Para tanto, são indivíduos excluídos que diferentemente dos anciãos de Bali ou dos de algumas tribos antigas, são aqui marginalizados. Logo, o papel de indivíduos importantes destinado a eles no meio social é deixado de lado e o velho perde a sensação de ser ouvido. É nesse meio termo que se percebe quanto a arte de narrar e o seu narrador – o velho – foram afundindo em detrimento do triunfo da informação. A realidade atual perdeu a faculdade de escutar!

Na parte que tange às lembranças, a autora descreve memórias de oito velhos. O primeiro relato é de Dona Alice que diz ter se sentido muito honrada com a entrevista, refutando a importância do exercício de lembrar; relembrou com mais interioridade do que o senhor Amadeu, este que destacou suas experiências trabalhistas. O senhor Ariosto, por sua vez, enfocou que esse processo de rememoração o fez rejuvenescer; citou que os velhinhos merecem mais compaixão, pois usando as palavras do senhor Amadeu: “eles também trabalharam”. Contrastando com os demais, o senhor Abel é o que aparenta ter uma condição financeira mais elevada; o senhor Antônio, é o que não mora em abrigo, mas com a sua esposa, Rosa. Dona Jovina foi professora e hoje (entendido aqui como sendo o momento da entrevista), cuida de refugiados. Dona Brites, sua irmã, foi dos entrevistados, a mais intelectualizada, teve uma participação culturalmente política em sua juventude. Em conformidade com os (re) sentimentos de todos, Dona Risoleta, a menos abastada dos oito, expressou através de signos linguísticos simbólicos, que se sentiu feliz ao momento da “rememoração”, pois estava “burilando o seu espírito”.

Perpassando por essas lembranças é que a autora chega à quinta parte do livro: A substância social da memória. É aqui onde Bosi deixa clara a sua influência halbwachiana. Conforme já falado, Halbwachs atribui ao coletivo um poder de influência muito forte sobre o individual, de forma que a memória do indivíduo é conhecida e reafirmada a partir de uma interação coletivizada. Diante disso, os indivíduos são apenas testemunhas de suas recordações, recordações que necessitam de socialização para serem recontadas. É aqui também onde as lembranças de Bosi se mesclam às lembranças narradas.

Percebe-se que cada indivíduo apreendeu o compasso social do tempo, o “seu tempo”, de forma peculiar. Cada narrador descreveu um ponto de vista sob acontecimentos coletivizados ou que perpassaram as suas gerações, como o da gripe espanhola, a ascensão do governo Vargas, o Centenário da independência… As lembranças da família se desenrolaram a ponto de grupos externos, como os vizinhos, também serem associados a esse berço. A casa, objetos, locais de sociabilidade, sons; todos esses elementos são apontados como espaços de lembrança por esses narradores vitais. As lembranças políticas não deixaram de ter seu espaço.

Os entrevistados chegaram a fundir o trabalho com a própria substância da vida. Viram esse elemento da vida social como algo natural e inerente ao ser humano, uma necessidade. Deste modo, “a memória do trabalho é o sentido, é a justificação de toda uma biografia” (BOSI, 1994, p. 481). É dessa forma, portanto, que Bosi conclui sua obra, tendo por base os estudos sobre memória social de Maurice Halbwachs e narrativas de velhos paulistas, com idade superior aos 70 anos, que juntos estavam praticando um uníssono exercício: o de relembrar.

Conforme já apontava o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, Memória e Sociedade “é um livro manancial de ensinamentos sobre a participação política e o mundo do trabalho no Brasil”. Desse modo, Ecléa Bosi dá uma contribuição tamanha para os que pretendem estudar vidas que fazem do trabalho um apêndice de sua virtualidade e porque não dizer dela própria – a vitalidade – em seus aspectos mais totais?!

Poucos são os memorialistas que ousam apresentar os estudos de Bergson devido a complexidade de suas teorias. A autora ousa; e ousa para além disso, apresentando as teorias de Bartlett e Stern. Para tanto, ela se apossa da teoria halbwachiana e trabalha com a mesma de forma feliz. Contudo, a ideia de um condicionamento total dado por um grupo parece fechar, elucidar o indivíduo, circunscrevendo-o a percepções alheias. Afirmar que o sujeito é “totalmente” condicionado ou influenciado pelo coletivo/grupal é de certa forma, negar a capacidade de percepção e a própria subjetividade do homo sapiens sapiens.

Os recursos imagéticos utilizados poderiam apresentar referências mais complexas, datadas, para assim, possibilitar uma localização histórica mais precisa. Por outro lado, a proposta de Bosi de trabalhar com memórias e lembranças de velhos é uma tarefa fascinante e de alta inteligibilidade nessa realidade fluida, excessiva, que produz vazios de sentido. Bosi aborda aspectos vitais, apreendendo narrativas nesse mundo imemorável, permitindo ao sujeito publicizar ou externalizar seus traumas, dobras e afetos. Como disse o jornalista Flávio Rangel, a autora inaugurou uma “sociologia da emoção”, traçando fios narrativos quase poéticos que nos (co) movem, (re) montando-nos.

Trago agora considerações no limiar daquilo que vem no início da obra: o título. Bosi opta por manter o termo velho(s). Quão justa escolha! Sobre o velho hoje são direcionados uma série de discursos que nos levam a chamá-los por hábito, de idosos. Eufemismos como esse foram naturalizados, não obstante, apenas servem para reforçar preconceitos. A utilização dessas mitigações leva a um caminho que vê a velhice sob um aspecto negativo, a começar pela criação dessas novas palavras. Assim falar de “velhos” é não perpetuar prénoções consensuais; contudo, se mostra como uma tarefa hercúlea já que essas novas definições perpassam todo o inconsciente de forma sutil e quase homogeneizadora.

É assim que a obra traz uma “carga enorme de poesia” como disse Carlos Drummond de Andrade; fazendo-nos prestar atenção no dizer do outro, cativando em nós traços de sensibilidade e vitalidade nesse real superficial e tecnicista.


Resenhista

Dayane Nascimento Sobreira – Graduanda em História – Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: dayanesobreira26@gmail.com


Referências desta Resenha

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Resenha de: SOBREIRA, Dayane Nascimento. O ar da vida: memória social e histórias de velhos. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 145-148, jan./jun. 2013. Acessar publicação original [DR]

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