Memória e teoria da História: debate e prática historiográfica | Escrita da História | 2015

Em sua quarta edição, a Revista Escrita da História – REH vem buscando se consolidar como um espaço de debate e reflexão acerca dos diferentes tipos de abordagem da ciência de Clio. Assim, em consonância com o movimento dos Annales, que promoveu e insistiu na necessidade de alargar a noção de fonte histórica, trazemos o dossiê Memória e teoria da História: debate e prática historiográfica no intuito de congregar pesquisas que, ao explorar documentos nem sempre valorizados pela historiografia tradicional, apresentaram possibilidades de entrevermos “histórias dentro da História”, alusão comumente empregada por pesquisadores no campo da história oral.

Ainda que nem todos os textos inseridos no dossiê se apropriem desta metodologia – ou mesmo disciplina, como consideram alguns estudiosos –, seus autores, de modo geral, articularam memórias como objetos da História. Individual ou coletiva, a memória foi abordada como um processo de “construção social” e os pesquisadores investigaram este objeto evidenciando múltiplas histórias, memórias e identidades em diferentes contextos. Em certa medida, os estudos também atuaram como “a pequena ponta de um iceberg” – como observou Jacques Le Goff –, ou seja, revelaram uma ínfima parcela de toda uma conjuntura sociocultural, econômica e política.

O trabalho de André Oliveira Santos, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), apresenta esta característica. Ao perceber a musicalidade presente no cotidiano de jovens engraxates na São Paulo dos anos 1930 e 1940, o pesquisador investiga a relação entre o ofício e a formação de agremiações carnavalescas. Perscrutando fotografias e crônicas publicadas no início do século XX, o autor nos envolve com sua narrativa revelando os diferentes fatores sociais e culturais que influenciaram as escolhas musicais dos ex-engraxates e sambistas “Toniquinho Batuqueiro” e “Seu Carlão do Peruche”.

Em seguida, ao se apropriar de depoimentos encontrados nos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, Camilla Cristina Silva, doutoranda em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), busca entender aspectos do cotidiano e da luta política de brasileiros na condição de exílio durante o período da ditadura militar. A pesquisadora mostra que apesar de compartilharem traumas e sentimentos semelhantes, a situação econômica e o nível de estudo eram fatores determinantes na forma de inserção dos exilados nos países escolhidos. Quanto à militância política, houve uma ressignificação das práticas, com a adesão à novas ideias e a formação de redes de solidariedade e de representação transnacional.

Continuando na linha da denúncia às injustiças políticas, sociais e também culturais, Brena Costa de Almeida, doutoranda em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), confere voz aos remanescentes quilombolas da comunidade Rasa, localizada na cidade de Armação de Búzios, no Rio de Janeiro. Com uma trajetória marcada pela exploração da mão de obra escrava, as memórias coletivas revelam os desafios que seus habitantes enfrentam desde os anos 1940 com a expropriação de suas terras. Apesar da autoidentificação dos sujeitos com os espaços que ocupavam naquela localidade, prerrogativa que segundo a legislação brasileira seria suficiente para garantir seus direitos de propriedade, a comunidade ainda sofre com a resistência ao cumprimento dos dispositivos legais.

Concluindo as reflexões propostas pelo dossiê, José Francisco Guelfi Campos, doutorando em História Social da USP, alerta sobre as complexas relações entre arquivos e memórias, conceitos distintos, embora complementares. A despeito de recentes estudos acerca da memória coletiva que visam uma “promoção da justiça social” através dos arquivos, o texto aponta para a complexidade desta ideia, visto que, por característica própria, os documentos são produzidos com fins específicos no/para o presente. Isto não significa dizer, ressalta Campos, que os documentos não possam servir como “gatilhos” desencadeadores de lembranças. É nesta perspectiva, afirma o autor, que pesquisadores das áreas da Arquivologia e da História podem explorar os diferentes arquivos.

Este número conta com mais uma seção formada por quatro artigos livres e uma resenha. Dentre os artigos, Hugo André Flores Fernandes Araújo, doutorando em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realiza um estudo sobre o Brasil colonial onde se discute os conflitos entre o governo-geral e os ofícios militares, situação que permitiu ao autor entender o desenvolvimento de algumas das práticas de governação na Bahia e em Pernambuco. Em seguida, ao analisar o periódico A Ilustração Luso-Brazileira, Lucas Schuab Vieira, mestrando em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), apresenta os diferentes textos que, publicados entre 1856 e 1859, nos permitem conjecturar sobre a visão de mundo dos autores da revista.

O terceiro artigo livre é de Reverson Nascimento Paula, mestrando em História da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Nele, o pesquisador discorre sobre o modo como os Estados Unidos da América influenciaram diferentes aspectos do cotidiano cearense durante o período da Segunda Guerra Mundial. Quase encerrando esta seção, temos o trabalho de André Jobim Martins, mestrando em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Apropriando-se da obra autobiográfica Minha formação, de Joaquim Nabuco, o autor perscruta as temáticas da política imperial, escravidão e abolição nas reflexões narrativas do ativista político pernambucano.

Embora não tenham sido incluídos ao dossiê, percebemos que os dois últimos artigos tangenciaram, em certa medida, o debate entre história e memória, na medida em que depoimentos orais, no texto de Paula, e uma obra memorialística, no de Martins, foram utilizados como fontes. Esta situação ilustra bem a atualidade e importância do tema proposto, evidenciada, inclusive, na resenha que fecha esta edição. A leitura da obra Arquivos pessoais: reflexões disciplinares e experiências de pesquisa, organizada por Luciana Heymann, Isabel Travancas e Joelle Rouchou, realizada por Karla Simone Willemann Schütz, mestra em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), revela um espaço de discussão cujo foco nos permite repensar a utilização dos arquivos pessoais. Enfim, desejamos a todos, uma boa leitura!


Organizador

Aaron Sena Cerqueira Reis


Referências desta apresentação

REIS, Aaron Sena Cerqueira. Apresentação. Escrita da História, v.2, n.4, p.10-12, set./dez. 2015. Acessar publicação original [DR]

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