Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867- 1933) | Francis Manzoni

Quem eram os caipiras e quais os significados de ser um, na São Paulo, de fins do século XIX e inícios do século XX? Esse é ponto de partida do historiador Francis Manzoni para a consistente pesquisa de mestrado em História (UNESP) que resultou no livro Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867-1933). Ao nos conduzir por uma São Paulo diferente daquela dos imigrantes estrangeiros que trabalhavam nas lavouras de café, o autor nos apresenta uma gama variada de personagens e costumes que teimavam em resistir aos delírios da burguesia paulista pela (re)construção de uma metrópole moderna e europeizada.

Investigando as relações sociais presentes nos mercados e feiras livres da São Paulo, Manzoni opera na intersecção de campos como a História Social do Trabalho e a História Urbana, dialogando com uma série de estudos que foram realizados nos últimos anos sobre a importância das Praças de Mercado para as principais cidades brasileiras, e que tiveram como preocupação a compreensão das relações, conflitos e tensões sociais que tiveram nas Praças de Mercado o seu núcleo irradiador. Dentre esses estudos temos, por exemplo, o livro publicado por Martins (2010) sobre a Praça de Mercado de Campinas, em que o autor identifica e analisa as múltiplas faces e finalidades dos mercados na cidade do interior paulista, assim como os significados das articulações sociais, econômicas e culturais dos frequentadores daqueles espaços. Outra publicação é o livro de Richard Graham (2010) sobre as relações formadas, e vivenciadas, pelos trabalhadores e trabalhadoras do comércio de gêneros empenhados em alimentar a cidade de São Salvador, na Bahia. Cabe destacar também o livro de Juliana Barreto Farias (2015), sobre a forte presença de africanas nas Minas na Praça de Mercado do Rio de Janeiro, em que a autora iluminou uma série de estratégias de sobrevivências de trabalhadoras escravizadas e livres, assim como as dinâmicas sociais vivenciadas na Praça de Mercado da maior cidade brasileira.

Observando serem as Praças de Mercado e as feiras livres espaços que reuniam significativa parcela da população, em seu livro, Francis Manzoni busca compreender qual era a participação dos diferentes tipos de trabalhadores e trabalhadoras, nacionais e estrangeiros, na complexa tarefa de abastecer a população de São Paulo com gêneros alimentícios dos mais variados. Preocupado com aspectos pouco explorados em estudos clássicos sobre a São Paulo do período, condicionada a valorizar o trabalhador estrangeiro e o processo imigratório como responsáveis pela modernização e desenvolvimento urbano paulistano, o autor utiliza-se dos pressupostos da História Social de matriz inglesa, baseando-se particularmente nas reflexões do historiador Edward P. Thompson, para construir um intrigante mosaico que nos permite visualizar quem eram, bem como identificarmos os locais de moradia e trabalho daqueles que se dedicavam a produzir, transportar e comercializar os produtos consumidos diariamente pela população de São Paulo.

No texto introdutório à publicação o autor anuncia a seus leitores que buscará ao longo do texto abordar “algumas dimensões da experiência de imigrantes e brasileiros nativos pobres” (p. 11), contribuindo o enriquecimento de perspectivas que colaboram na compreensão das experiências de homens e mulheres em seus cotidianos, seja em seus locais de trabalho, em suas moradias, ou mesmo nas formas de lutas mais variadas em benefício da manutenção de suas sobrevivências.

Buscando recuperar a historicidade do termo “caipira”, Manzoni realiza um diálogo consistente e crítico a análises homogeneizadoras que desqualificavam esses sujeitos, ora os associando ao isolamento e à autossuficiência, ora tomando as representações da literatura e da música popular que desqualificava o protagonismo dos caipiras no processo de desenvolvimento da metrópole.

No primeiro, dos três capítulos em que o livro está organizado, Francis Manzoni realiza um detalhado mapeamento dos locais de moradia e de produção de gêneros alimentícios desses trabalhadores. Sob o olhar atento do autor, somos conduzidos por várzeas, sítios e chácaras nos arredores do centro de São Paulo, acompanhando intensos embates travados entre os sujeitos envolvidos nos diversos trabalhos ligados à produção de gêneros alimentícios e os investidores ligados aos setores de construção, que “percebiam o espaço urbano como páginas em branco para seus projetos de urbanização, como objeto de especulação imobiliária e fonte de renda” (p. 32).

No segundo capítulo, Manzoni investiga os perfis socioculturais dos trabalhadores e trabalhadoras envolvidos no comércio de gêneros em São Paulo na transição para o novecentos. Seja nas praças e ruas da metrópole, seja nas Praças de Mercado e em seu entorno, o autor nos permite acompanhar esse cotidiano de lutas e de desafios enfrentados pelos trabalhadores no comércio de gêneros da terra. Ao iluminar os esforços incisivos do poder municipal na tentativa de regulamentação das atividades ligadas à venda desses gêneros, Manzoni nos indica como se dava o funcionamento desse que era um comércio fundamental para a manutenção diária da cidade. Elaborando um rico panorama sobre o modo com que se tentou organizar a prática de comércio de gêneros alimentícios em São Paulo, o autor nos apresenta os entraves criados a partir da inauguração da nova Praça de Mercado da cidade, em 1933, especialmente para os trabalhadores mais pobres que foram submetidos a maior controle e aumento nas taxas de ocupação das bancas e compartimentos para instalação de seus comércios. Esse processo de organização com elevados custos de locação, argumenta o autor, aliado à adoção de normas rígidas para o trabalho desses comerciantes na nova Praça de Mercado, instrumentalizou a tentativa de exclusão dos trabalhadores mais pobres, que lançaram mão de recursos informais, como a ocupação de praças públicas e das ruas das regiões centrais, nas proximidades da nova Praça de Mercado, colocando-se à margem dos pressupostos de ordenamento urbano.

O tenso cotidiano dos comerciantes de gêneros alimentícios é fio condutor do terceiro capítulo, nele o autor acompanha as relações tumultuadas entre os próprios comerciantes, ou ainda entre os agentes do poder público, como fiscais dos órgãos de Higiene e Saúde Pública, na tentativa de ordenar o comércio, ou de reprimir as tentativas de trabalho tidas como clandestinas. Ao acompanharmos a ação dos fiscais, o autor nos permite perceber uma série de ações por parte dos trabalhadores na tentativa de resistir a taxação de produtos e ao pagamento de impostos para a realização desse comercio. Além de estratégias utilizadas por grupos de trabalhadores na intenção de obter maiores lucros eliminando a concorrência apresentada pelos comerciantes caipiras, ou seja, os trabalhadores que eram identificados pela municipalidade como pequenos comerciantes, que na maioria das vezes vendiam o excedente de suas produções agrícolas.

Lançando mão de um conjunto variado de fontes, Manzoni mobiliza escritos de memorialistas, fotografias, mapas, relatórios oficiais emitidos pelo poder municipal, além da legislação que regulava a atuação dos trabalhadores envolvidos no comércio de gêneros alimentícios, de modo a estabelecer conexões pautadas em ricas análises teóricas sobre a atuação desses caipiras. Sua sensibilidade particularmente apurada nos permite acessar uma série de saberes populares, como o conhecimento dos ervanários, que eram amplamente utilizados pela população de São Paulo, e reforçavam a forte presença de traços da “cultura caipira” (p. 90-91) na metrópole que se pretendia moderna e civilizada.

Selecionando fotografias e mapas que nos introduzem ao cotidiano desses trabalhadores, Manzoni articula essas imagens a textos que produzem um painel diversificado sobre quem eram os vendedores ambulantes de vassoura, de galinhas e verduras, dando rosto a engraxates, cesteiros e carregadores, nos introduzindo na sonoridade de verdureiras e tantos outros trabalhadores e trabalhadoras que, além de enfrentar a dura rotina de trabalho, ainda tinham que correr dos fiscais dos órgãos municipais, mobilizar recursos para o pagamento de multas e impostos e, em muitas situações expostas pelo autor, articular argumentos para tentar obter a liberação de mercadorias apreendias.

O grande mérito de Francis Manzoni em Mercados e feiras livres em São Paulo (1867-1933) está na abordagem lúcida permeada por rigor metodológico e pesquisa empírica, em texto envolvente capaz de transportar os leitores, sejam eles paulistanos ou paulistas, como de qualquer lugar, para o dia a dia de uma cidade em transformação frenética, sob a égide de progresso e modernização arbitrariamente excludente, em que os seus moradores, comerciantes e trabalhadores lutavam pela defesa de seus costumes e práticas sociais fundamentais para suas sobrevivências.

Referências

FARIAS, Juliana Barreto. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830- 1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Cidade, 2015.

GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal (Salvador, 1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MARTINS, Valter. Mercados urbanos, transformações na cidade: abastecimento e cotidiano em Campinas (1859-1908). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.


Resenhista

Vitor Leandro de Souza Correio – Professor do curso de Aperfeiçoamento UNIAFRO da Universidade Federal Fluminense. Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0002-9869-8907


Referências desta Resenha

MANZONI, Francis. Mercados e Feiras Livres em São Paulo (1867- 1933). São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2019. Resenha de: CORREIO, Vitor Leandro de Souza. Mercados e Feiras livres da Paulicéia e seus trabalhadores. Anos 90. Porto Alegre, v. 28, e2021502, 2021. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.