Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História | Ronaldo Vainfas

Em 1997, a Editora Campus lançou uma obra que reunia uma série de ensaios gerais sobre teoria e metodologia, analisando os percursos, os principais conceitos e o debate em diversos campos da prática historiográfica. O livro “Domínios da História”2 , organizado pelos professores da Universidade Federal Fluminense, Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, logo se tornou referência em cursos de Graduação e Pós-Graduação, 3 ao revelar-se um importante instrumento de trabalho para professores e pesquisadores.

Naquela obra, além da Conclusão, em que avaliava os “caminhos e descaminhos da história”, Ronaldo Vainfas foi também responsável pelo capítulo intitulado “História das Mentalidades e História Cultural”, texto no qual elaborou reflexões que, de certa forma, acabaria por retomar e ampliar neste seu “Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História”, lançado pela mesma Campus em 2002.

Se naquele momento o autor estava empenhado em “contextualizar a história das mentalidades no quadro maior da historiografia francesa filiada ao movimento dos Annales” (p. 128), analisar suas “potencialidades e insuficiências” (p.129) e, ainda, avaliar os campos que a sucederam “dela diferindo teoricamente ou simplesmente reeditando seus pressupostos com outras denominações, enfatizando especialmente a chamada história cultural” (p.129), nesta obra mais recente, o autor centra sua reflexão em torno dos estudos de micro-história.

Operando com uma escala de observação reduzida e valendo-se de uma exploração intensiva das fontes, entre outras características, estes estudos, como gênero historiográfico, têm sua origem nos inícios da década de 80 4 , como título da coleção Microstorie da Editora Einaudi, dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, dois de seus nomes mais consagrados. A iniciativa, recorda-nos Vainfas, localizava-se dentro dos quadros do debate historiográfico das décadas de 1970 e 1980, marcado, tanto pela “crise do paradigma marxista e de outros modelos de história totalizante”, quanto pela “ ‘solução’ das mentalidades que cedo se mostrou inconsistente no plano estritamente teóricometodológico”. (p. 68)

Apesar de uma relativa “tradição” de mais duas décadas, portanto, os estudos micro-históricos têm sido, de acordo com Vainfas, prisioneiros de “equívocos e malentendidos”, uma vez que são freqüentemente confundidos com a história das mentalidades ou do cotidiano e tomados como “exemplo maior de uma história que renunciou a seu estatuto de conhecimento científico, invadindo o território da literatura e rompendo de vez as fronteiras que mantinha com a narrativa ficcional”. (p. 10)

Neste sentido, o objetivo da obra que aqui apresentamos é, nas palavras de seu autor, justamente, “tentar esclarecer, afinal, o que é a micro-história, suas propostas, seus métodos, o lugar específico que ocupa na chamada Nova História”. (p.11) Para isto, ele apresenta inicialmente (capítulo 1) um panorama dos estudos históricos no século XX, especialmente no que se refere à contribuição francesa tributária do movimento dos Annales. Detendo-se especialmente na chamada “história das mentalidades”, Vainfas contextualiza a produção a ela associada, analisa seus pressupostos conceituais, insuficiências e potencialidades, para concluir a respeito de uma primeira diferença fundamental da microhistória em relação a esta: “sua renúncia à história geral, à contextualização sistemática, à explicação, à totalidade, à síntese” (p. 51)

Estabelecida esta diferenciação, o livro passa a analisar “O berço da microhistória” (capítulo 2), recuperando as origens desta vertente historiográfica praticada não apenas por historiadores italianos, mas também por franceses, ingleses e norte-americanos. A proposta do autor é aí, esclarecer que, se este “gênero de fazer e contar a história” surgiu no âmbito da história cultural, acabou por superá-lo, ao ser capaz de apresentar “formulações teóricas e metodológicas mais críticas”. (p. 74) A partir de então, a fim de “pôr a microhistória em cena, (…) expor seu estilo, (…) recortes preferenciais, suas opções conceituais” (p. 74), Vainfas passa apresentar algumas de suas obras mais emblemáticas. Estão aí O queijo e os vermes (Carlo Ginzburg), O retorno de Martin Guerre (Natalie Zemon Davies), Atos impuros (Judith Brown) e A herança imaterial (Giovanni Levi). A síntese destes verdadeiros clássicos da micro-história serve-lhe para analisar a escolha dos temas, a delimitação dos objetos de estudo e o aparato conceitual dos autores, colocando de relevo, justamente a sua maior consistência teórica em relação às mentalidades. Por fim, no quinto e último capítulo, o autor nos apresenta um rápido panorama do debate atual entre os defensores das escalas micro e macro na investigação histórica, apontando para um certo “arrefecimento dos ânimos” entre os defensores das duas vertentes de estudo, bem como as possibilidades e os limites de cada uma na produção do conhecimento histórico.

Embora não faça proselitismo em defesa das práticas de micro-análise, Vainfas – que esclarece que ele próprio apenas raramente incursionou pelo gênero – não deixa de mostrar-se simpático às potencialidades oferecidas por elas. É neste sentido que ele esquadrinha e responde as críticas mais severas que a micro-história recebeu, tais como a de fragmentar a história, de ser um gênero menor dentro dos estudos históricos ou de romper as fronteiras com a narrativa ficcional. A estas e outras críticas, Vainfas responde com um panorama das inúmeras possibilidades ensejadas pelos recortes microscópicos, ou pelo menos, daquilo que foi escrito pelo melhor da micro-história. Indo mais além, pondera, a nosso juízo, corretamente, acerca das necessárias relações que se devem estabelecer entre as diferentes escalas de observação dadas ao historiador. Reconhecê-las como complementares, afirma o autor, não significa desconsiderar que a sua conjugação seja fácil: “ambas possuem limitações e se poderia mesmo dizer que uma oculta o que a outra alcança e vice-versa” (p. 149) Permite contudo, identificar que os parâmetros da boa produção historiográfica (“pesquisa séria, problemática relevante e clareza expositiva”) podem situar-se além do debate entre o episódico e o estrutural.

Notas

2 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

3 Lançada em 1997, a obra logo alcançaria sua 12ª Tiragem ainda neste ano.

4 Vainfas sugere que “O queijo e os vermes” de Ginzburg, cuja primeira edição é de 1976, tenha sido o “livrochave e inspirador” da corrente.


Resenhista

Maria Cristina Bohn Martins – Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS.


Referências desta Resenha

VAINFAS, Ronaldo. Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História. Rio de Janeiro: Campus, 2002. Resenha de: MARTINS, Maria Cristina Bohn. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n. 3, p. 168-170, 2003. Acessar publicação original [DR]

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