Le plancher de Joachim – BOUDON (RH-USP)

BOUDON, Jacques-Olivier. Le plancher de Joachim: l’histoire retrouvée d’un village français. Paris: Belin, 2017. Resenha de: SANTOS, Jair. A micro-história debaixo do tapete. Revista de História (São Paulo) n.178 São Paulo  2019.

“Feliz mortal, quando você me ler, eu não existirei mais”. Essa é a frase, com ares de epitáfio, que abre o novo livro de Jacques-Olivier Boudon, professor na Sorbonne e importante estudioso da história político-religiosa francesa no século XIX. A obra intitulada Le plancher de Joachim, publicada na França em 2017, é um estudo notável e digno da atenção dos historiadores brasileiros, mais pela metodologia que adota e pelas fontes inusitadas que utiliza do que pelo seu clássico objeto de estudo (a história de um vilarejo francês). O livro de Boudon, contrariando a atual tendência historiográfica das análises globais, transnacionais e conectadas, tira debaixo do tapete da historiografia o velho método analítico da micro-história e mostra que ele não perdeu a utilidade nem a capacidade de abrir novos caminhos de investigação. Aliás, não era apenas o método que se encontrava esquecido: também as fontes do autor, conquanto estas no sentido denotativo. A documentação de indiscutível originalidade com que trabalha Boudon compõe-se de frases escritas a lápis em pequenos fragmentos de madeira escondidos debaixo do assoalho do castelo de Picomtal, situado no vilarejo de Crots, no sudeste da França. A identificação da autoria foi assegurada pelo próprio redator, que cuidou de se revelar à posteridade assinando e datando seus textos gravados no madeiro: trata-se do carpinteiro do vilarejo, chamado Joachim Martin, que nos anos de 1880 e 1881 realizou reparos no assoalho do castelo. As pranchas que serviram de diário ao antigo obreiro da carpintaria foram descobertas pelos proprietários do palacete durante uma reforma executada entre os anos 1999 e 2000. Por obra do acaso, Jacques-Olivier Boudon, ao longo de uma viagem de preparação de um livro sobre o retorno de Napoleão Bonaparte a Paris depois do exílio na Ilha de Elba (1815), pernoitou no castelo de Picomtal, atualmente transformado em hospedaria, e tomou conhecimento da inopinada descoberta. Mal se concluiu um livro, outro já estava a caminho.

O acervo encontrado constitui-se de 72 textos, totalizando cerca de 4.000 palavras. Não obstante a classificação cronológica dos fragmentos seja impossível, a indicação do ano pelo próprio autor mostra que os textos foram redigidos nas ocasiões em que Joachim Martin estivera trabalhando no castelo durante os verões de 1880 e 1881. Diversos são os temas tratados pelo carpinteiro: ele fala do vilarejo, de seus habitantes e representantes políticos; do padre Joseph Lagier (pároco da igreja local) cujo comportamento lascivo, agravado pela acusação de exercício ilegal da medicina, era duramente reprovado por parte da população; dos fatos da atualidade, como um episódio de infanticídio que o perturbou profundamente; da sexualidade de alguns moradores e até mesmo das investidas indecorosas feitas pelo espevitado vigário às piedosas senhoras na penumbra do confessionário. Em suma, Joachim Martin esboça um quadro detalhado do seu pequeno universo, geográfico e mental, no intuito de legar à posteridade (pressupondo que seus escritos viriam a ser descobertos no futuro, quiçá por outro carpinteiro) uma marca indelével da sua existência.

Foi a partir desse material, cujo caráter sucinto e fragmentário deixava inevitavelmente muitas questões no ar, que Boudon assumiu o desafio de elaborar um interessante exercício de micro-história, a fim de estudar uma pequena sociedade rural dos Alpes no despontar do regime republicano francês. As lentes através das quais o autor contemplou o seu fato histórico figuram entre as mais raras e relevantes para quem lida com a história social: textos escritos diretamente por um homem do povo com plena consciência do transcorrer do tempo, a despeito da origem humilde e da parca instrução, e que almejava inscrever o seu nome na história, mesmo que nenhum ato heroico ou excepcional lhe pudesse ser imputado, de modo a perenizar a própria memória. Essa consciência histórica do carpinteiro acrescenta ao estudo um elemento de ponderação muito pertinente para a história social: como os indivíduos de outras épocas lidavam com o passar do tempo? O senso comum tende a induzir-nos à conclusão de que pessoas iletradas vivem apenas o hoje, sem nenhuma preocupação com o futuro e menos ainda com a memória que deixarão depois de suas mortes. O caso de Joachim Martin é um exemplo expressivo que desmente essa ideia e mostra que a reflexão sobre o tempo e a história também pode fazer parte das inquietudes de um simples carpinteiro, como destaca Boudon:

À certains égards, Joachim Martin est un être exceptionnel par le rapport qu’il entretient au temps. Il est à mille lieues de ces gens simples décrits comme uniquement préoccupés du lendemain, vivant au jour le jour, incapables même de se souvenir de leur date de naissance. Au contraire, Joachim a l’obsession de dater les événements de sa vie. (BOUDON, 2017, p. 145)

A proposta de Boudon de analisar a história de um vilarejo por meio de um homem comum segue, em certa medida, a trilha aberta pelo trabalho de Alain Corbin (1998), o célebre historiador das sensibilidades, no qual se conta a história de Louis-François Pinagot, um artesão desconhecido que vivia nos rincões da Normandia, cujo nome foi escolhido aleatoriamente pelo autor nos inventários dos arquivos da municipalidade para ter a sua história investigada e a sua biografia reconstituída. Apesar disso, a diferença entre os estudos de Boudon e Corbin é bastante significativa: enquanto o segundo estuda um indivíduo praticamente invisível e esquecido pelo tempo, sobre o qual não havia nenhuma informação direta, o primeiro se baseia num acervo documental razoável produzido pelo próprio personagem que examina. Também é evidente a influência dos trabalhos clássicos de Carlo Ginzburg (2006) e Giovanni Levi (2000), pioneiros na aplicação do método da micro-história. Ademais, o livro dialoga de bom grado com a corrente da “história vista de baixo” (SHARPE, 1992), ao colocar em perspectiva um processo histórico, isto é, as transformações sociais de um vilarejo francês no fim do século XIX a partir da visão de um indivíduo de nível social inferior e sem participação direta nas mudanças em curso. No que diz respeito ao processo histórico propriamente dito, segundo Boudon, o testemunho de Joachim Martin ilustra a dinâmica descrita pelo historiador Eugen Weber num estudo acerca das mutações da França rural que acompanharam a chegada da República, marcadas pelo objetivo de integrar toda a população do país no corpo mais ou menos homogêneo da nação, sobretudo por intermédio da escola laica e do serviço militar obrigatório (WEBER, 1983).

Obviamente, o acervo textual de Joachim Martin não bastava para a escrita de um livro. Como toda fonte histórica, esta também deveria ser submetida à análise crítica mediante confrontação com outros documentos que permitissem preencher as lacunas factuais, bem como detectar eventuais erros, exageros ou imprecisões. Para tanto, Boudon colocou em prática o savoir faire do historiador e prospectou os arquivos nacionais, regionais e diocesanos, assim como algumas fontes impressas entre o fim do século XIX e o início do século XX que tratavam do vilarejo de Crots. Ao término da pesquisa, o autor concluiu que muitas das afirmações de Joachim eram, de fato, corroboradas por outras fontes. Cruzando as diferentes informações coletadas, foi possível escrever uma breve história daquele vilarejo a partir de alguns núcleos temáticos sugeridos pelo carpinteiro nas mensagens gravadas nas pranchas: biografia de Joachim Martin (capítulo I); descrição de Crots e da sua população (capítulo II); história dos proprietários do castelo de Picomtal (capítulo III); considerações sobre a agricultura no vilarejo (capítulo IV); contexto político local (capítulo V); moral sexual da época (capítulo VI); percepção do tempo e relação com o passado (capítulo VII); declínio da prática religiosa (capítulo VIII); e transformações no campo e êxodo rural (capítulo IX).

Impressiona nos textos de Joachim a franqueza com que ele se exprime sobre os diferentes assuntos, movido talvez pela convicção de que não seria lido (pelo menos não em vida), e a razoável habilidade com que o faz, dado curioso cuja explicação Boudon associa à fé protestante da mãe do carpinteiro que provavelmente conservava o hábito difuso no protestantismo de ler cotidianamente a Bíblia em casa. Esta é a hipótese levantada pelo autor para explicar o apego de Joachim à escrita:

La mère de Joachim était protestante. Certes, elle a accepté qu’il soit baptisé et élevé dans la religion catholique, mais on ne peut pas imaginer que son protestantisme n’ait pas eu une influence sur son éducation. En effet, les protestants sont particulièrement attachés à l’apprentissage de la lecture et de l’écriture qui permet de rentrer en contact avec les textes bibliques. Dans les temples réformés, les murs affichent pour l’essentiel des versets de la Bible. Il est peu probable que Joachim soit jamais entré dans un temple, mais il est fort possible que sa mère lui en ait parlé (BOUDIN, 2017, p. 152).

Embora sua linguagem seja simples, direta e às vezes confusa, o mero fato de utilizar a escrita como meio de reflexão, numa época em que ler e escrever ainda eram habilidades raras no campo, revela a peculiaridade do personagem e ressalta a excepcionalidade da fonte. Num trabalho de micro-história, é fundamental que o historiador encontre a individualidade do sujeito que estuda, ou seja, que saiba determinar com clareza aquilo que faz o seu relato e a sua existência dignos de interesse. O parâmetro para julgá-lo está ligado aos traços e indícios que, a partir de um ponto de vista singular, podem ser colhidos a fim de melhor decifrar a trama complexa, plural e opaca da história social, cujo intenso dinamismo dificulta uma compreensão sistemática imediata. Essa é a ideia por trás do célebre “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg, entendido como um princípio metodológico fundamental para evitar as distorções de estudos excessivamente generalizantes sobre determinados fenômenos sociais (GINZBURG, 1999). O estudioso que falhe nessa consideração preliminar correrá inevitavelmente o risco da banalidade e seu estudo poderá se tornar uma compilação de obviedades ou de frivolidades históricas que pouco acrescentam à compreensão de contextos ou processos históricos mais amplos. Se, por um lado, o livro de Boudon não cai nessa armadilha, por outro, são recorrentes ao longo do texto as afirmações de caráter puramente hipotético que não podem ser atestadas em virtude do silêncio das fontes ou simplesmente de sua insuficiência material, como aquela à qual se acenou acima relativa ao vínculo de causalidade entre uma certa cultura literária de Joachim e o protestantismo professado por sua mãe, que sequer é mencionada nos escritos do carpinteiro.

Apesar de se apoiar em alguns momentos em ideias meramente especulativas e sem base empírica, o livro de Boudon é um exemplo estimulante do grande potencial criativo da micro-história, reforçado pela impecável habilidade narrativa do autor. Como visto, também impressiona o caráter fortuito e extraordinário das fontes. Se, normalmente, uma pesquisa histórica começa com a importante escolha dos arquivos por parte do estudioso, nesta obra a situação foi bastante diversa: foram as fontes que escolheram o seu historiador, ansiosas por trazer à tona a história de Joachim, escondida sob o assoalho de um castelo por mais de um século. É relevante mencionar ainda que a excepcionalidade da história atraiu a atenção do grande público para o livro, ao qual o canal televisivo France 2 dedicou uma acurada reportagem de 47 minutos, no dia 3 de fevereiro de 2019. Baseando-se na visão de mundo de um “protagonista anônimo da história” (VAINFAS, 2002), revelada por uma fonte atípica de conteúdo substancial, e explorando uma temática cara às análises micro-históricas, a obra de Boudon consegue traçar com riqueza de minúcias uma história do vilarejo de Crots num período pleno de mudanças sociais e políticas que afetavam significativamente a sociedade rural na França.

1Tradução livre: “Sob certos aspectos, Joachim Martin é um ser excepcional pela relação que mantém com o tempo. Ele está a mil léguas dessas pessoas simples descritas como preocupadas unicamente com o dia seguinte, vivendo no dia a dia, incapazes até mesmo de se lembrar de suas datas de nascimento. Ao contrário, Joachim tem uma obsessão por datar os acontecimentos de sua vida”.

Editores responsáveis pela publicação:

Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos.

Referências

BOUDON, Jacques-Olivier . Le plancher de Joachim: l’histoire retrouveé d’un village français. Paris: Belin, 2017. [ Links ]

BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992. [ Links ]

CORBIN, Alain. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot: sur les traces d’un inconnu (1798-1876). Paris: Aubier, 1998. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006. [ Links ]

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. [ Links ]

LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. [ Links ]

REVEL, Jacques (org.). Jeux d’échelles: la micro-analyse à l’expérience. Paris: Gallimard, 1996. [ Links ]

VAINFAS, Ronaldo. Micro-história: os protagonistas anônimos da História. Rio de Janeiro: Campos, 2002. [ Links ]

WEBER, Eugen. La fin des terroirs: la modernisation de la France rurale, 1870-1914. Paris: Fayard, 1983. [ Links ]

Jair Santos – Ex-aluno da École Normale Supérieure de Paris, mestre em Teoria do Direito pela Universidade Paris Nanterre, mestre em História pela Universidade Paris-Sorbonne. É doutorando em História na Scuola Normale Superiore di Pisa. Contato: [email protected]

 

Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro – COWLING (RBH)

COWLING, Camillia. Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013. 344p. Resenha de: SANTOS, Ynaê Lopes dos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.

Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes poderiam ter sido heroínas dos folhetins e romances que enchiam de angústia e compaixão a alma dos leitores do final do século XIX. Negras, cativas ou ex-escravas, essas mulheres foram em busca do aparato legal disponível em Havana e no Rio de Janeiro, respectivamente, e fizeram de sua condição e do afeto materno as principais armas na longa luta pela liberdade de seus filhos na década de 1880. Todavia, a saga dessas mulheres não era fruto da vertente novelesca do século XIX e tampouco foi fartamente estampada nos jornais da época. Para conhecer e nos contar essas histórias, Camillia Cowling fez uma intensa pesquisa em arquivos do Brasil, de Cuba, Espanha e Grã-Bretanha, tecendo com o cuidado que o tema demanda a trajetória de mulheres negras – libertas e escravas – que entre o fim da década de 1860 e a abolição da escravidão em Cuba (1886) e no Brasil (1888) utilizaram o aparato legal disponível nas duas maiores cidades escravistas das Américas para lutar pela liberdade de seus filhos e filhas.

A fim de dar corpo a uma história que muitas vezes é apresentada como estatística, a autora examinou uma série de documentos legais produzidos a partir da década de 1860 para compreender os caminhos traçados por algumas mulheres em busca da liberdade. Em pleno diálogo com as importantes bibliografias sobre gênero e escravidão produzidas nos últimos anos, Camillia Cowling nos brinda com um livro sobre mulheres negras, maternidade, escravidão e liberdade, demonstrando como as histórias de Ramona, Josepha e outras tantas libertas e escravas, longe de serem anedotas do sistema escravista, podem ser tomadas como portas de entrada para a compreensão mais fina da dinâmica da escravidão no Novo Mundo nas duas últimas localidades em que essa instituição perdurou.

A complexidade do tema abordado e o ineditismo das articulações entre história da escravidão nas Américas, abolicionismo, dinâmica urbana, agência de mulheres negras, maternidade e processos jurídicos se expressam na forma como a autora organizou sua obra.

Na primeira parte de seu livro, Camillia Cowling trabalhou com a relação entre escravidão e espaço urbano naquelas que foram as maiores cidades escravistas das Américas, Havana e Rio de Janeiro. Analisando as dinâmicas de funcionamento da escravidão urbana, a autora sublinhou que as cidades não devem ser tomadas como mero pano de fundo dos estudos sobre escravismo nas Américas, e assim construiu uma narrativa que corrobora boa parte do que a historiografia aponta: a força que a escravidão exerceu sobre o funcionamento dessas urbes. Tal força poderia agir tanto nas especificidades geradas em torno das atividades executadas pelos escravos urbanos – sobretudo no que tange à maior autonomia dos escravos de ganho -, como nos sentidos e usos que essas cidades passaram a ter para a população escrava e liberta, a qual muitas vezes fez do emaranhado espaço citadino esconderijos e refúgios de liberdade. O engajamento jurídico das mulheres escravas e libertas frente às políticas graduais de abolição de cada uma dessas cidades é, pois, apresentado como mais uma característica da complexa dinâmica que permeou a escravidão urbana no Rio de Janeiro e em Havana.

A escolha pelas duas cidades não foi aleatória, muito menos pautada apenas por índices demográficos. Ainda que a autora tenha anunciado trabalhar com base na metodologia da micro-história, a abordagem comparativa que estrutura sua análise se pauta no diálogo com perspectivas mais sistêmicas da escravidão das Américas, principalmente com as balizas que norteiam a tese da segunda escravidão (Tomich, 2011). Como vem sendo defendido por uma crescente vertente historiográfica, a paridade entre Havana e Rio de Janeiro – pressuposto fundamental da análise de Camillia Cowling – seria resultado de uma série de escolhas semelhantes feitas pelas elites de Cuba e do Brasil em prol da manutenção da escravidão desde o último quartel do século XVIII até meados do século XIX, mesmo em face do crescente movimento abolicionista. Tal política pró-escravista (que também foi levada a cabo pelos Estados Unidos) teria permitido que a escravidão moderna se adequasse à expansão capitalista, criando assim um chão comum na dinâmica da escravidão nessas duas localidades, inclusive no que concerne às possibilidades legais que os escravos acionaram para lutar pela liberdade – possibilidades essas que se ampliaram após a abolição da escravidão nos Estados Unidos. Não por acaso, as capitais de Cuba e do Brasil transformaram-se em espaços privilegiados para que mulheres negras, apropriando-se do próprio conceito de maternidade e ressignificando-o, utilizassem as leis abolicionistas reformistas, nomeadamente a Lei Moret de Cuba (1870) e a Lei do Ventre Livre do Brasil (1871), para resgatar seus filhos do cativeiro.

Os caminhos percorridos pelas mulheres escravas e libertas e as muitas maneiras por meio das quais elas conceberam a liberdade (de seus filhos e delas próprias) passam a ser examinados pormenorizadamente a partir da segunda parte do livro. A pretensa universalidade do direito sagrado da maternidade foi uma das ferramentas utilizadas nos discursos abolicionistas do Brasil e de Cuba, os quais apelavam para um sentimento de igualdade entre as mães, independentemente de sua cor ou condição jurídica. Como destaca a autora, a evocação do sentimento de emoção transformou-se numa estratégia importante do movimento abolicionista que, a um só tempo, pregava a sacralidade da maternidade e ajudava a forjar um novo código de conduta da elite masculina, que começava a enxergar a mulher escrava de outra forma.

Camillia Cowling demonstra que a sacralidade universal da maternidade foi apreendida de diferentes formas nas sociedades escravistas. Se por um lado, a partir da década de 1870, tal assertiva ganhou força quando a liberdade do ventre ganhou status de lei, por outro lado a pretensa igualdade que a maternidade parecia garantir para as mulheres muitas vezes parecia restringir-se ao campo jurídico, mais especificamente, à luta gradual pela liberdade. Revelando uma vez mais a complexidade dos temas abordados, Camillia Cowling destaca que esses mesmos abolicionistas muitas vezes descriam na feminilidade das mulheres negras (brutalizadas pela escravidão), colocando-se contrários às relações inter-raciais, embora defendessem a manutenção das famílias negras.

Todavia, nesse contexto, o ponto alto do livro reside justamente no exame das estratégias empregadas pelas mulheres negras para lutar, juridicamente, pela liberdade não só de seu ventre, mas de seus filhos. A compreensão que essas mulheres tinham das leis graduais de abolição; o entendimento também compartilhado por elas de que as cidades do Rio de Janeiro e de Havana não eram apenas espaços privilegiados para suas lutas, mas também uma parte importante para a definição do que a liberdade poderia significar; e as redes de solidariedade tecidas por essas mulheres, que muitas vezes extrapolavam os limites urbanos, são algumas das questões trabalhadas pela autora.

Os desdobramentos dessas questões são muitos, a maioria dos quais analisada por Camillia Cowling na última parte de seu livro. As concepções que as mulheres negras desenvolveram sobre liberdade e feminilidade com base na maternidade merecem especial atenção, pois elas permitem, em última instância, redimensionar os conceitos de escravidão e, sobretudo, de liberdade nos anos finais de vigência da instituição escravista das Américas e nos primeiros anos do Pós-abolição. Se é verdade que, assim como aconteceu como Josepha Gonçalves e Ramona Oliva, a luta jurídica pela liberdade de seus filhos não teve o desfecho desejado e eles continuaram na condição de cativeiro, os caminhos e lutas trilhados por elas não só criaram outras formas de resistência à escravidão – que por vezes, tiveram outros desfechos -, como ajudaram a pautar práticas de liberdade e de atuação política que ganhariam novos contornos na luta pela cidadania plena alguns anos depois.

O tratamento dado pela autora sobre a luta de mulheres/mães pela liberdade de seus filhos e a forma por meio da qual ela enquadra tais questões naquilo que se convém chamar de “contexto mais amplo” faz que Conceiving Freedom possa ser tomado como uma importante contribuição nos estudos da escravidão urbana, não só por sua perspectiva comparada, mas também por trabalhar num território de fronteira da historiografia clássica, demonstrando que os limites entre o mundo escravista e o mundo da cidadania não podem ser balizados apenas pela declaração formal da abolição da escravidão. A luta começou antes dessas datas oficiais e continuou nos anos seguintes, sobre isso não restam dúvidas. Todavia, o protagonismo desse movimento não se restringiu às ações dos homens que lutaram pela abolição. Ao invés de fechar uma temática, o trabalho de Cowling indica novos caminhos num campo que poderá trazer contribuições promissoras para os estudos da escravidão e da liberdade nas Américas.

Por fim, vale ressaltar que num momento político como o atual, em que tanto se fala, se discute e se experimenta o empoderamento de mulheres negras, o livro de Camillia Cowling é igualmente bem-vindo. Não só por iluminar trajetórias que foram silenciadas ou tratadas como simples anedotas (demonstrando que a luta não é de hoje), mas igualmente por permitir repensar os moldes e os modelos por meio dos quais as histórias e as memórias da escravidão e da luta pela liberdade são construídas.

Referências

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011. [ Links ]

Ynaê Lopes dos Santos – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Adjunta de História da Escola Superior de Ciências Sociais CPDOC-FGV. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].

Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT; HÉBRARD (RBH)

SCOTT, Rebecca J. Hébrard, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. 296p. Tradução de Vera Joscelyne. Resenha de: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.  

Doze milhões de pessoas foram transportadas involuntariamente do continente africano para as Américas entre os séculos XV e XIX para serem vendidas como escravas. Em Provas de liberdade, Rebecca Scott e Jean Hébrard reconstituíram a trajetória de uma delas, Rosalie, de nação Poulard, e seguiram seus descendentes por cinco gerações historiando grandes temas da era contemporânea como a abolição da escravidão de africanos, a cidadania e as lutas contra o racismo.

Rebecca Scott, professora de História da América Latina e de Direito da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, é conhecida do público brasileiro por seu livro Emancipação escrava em Cuba, cuja abordagem da desintegração da escravidão na colônia espanhola deu poder explicativo para a mobilização de escravos e libertos e teve um impacto significativo na historiografia brasileira da escravidão. Jean Hébrard é um dos diretores do Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, e professor visitante de História da América Latina e Caribe na Universidade de Michigan. O livro, publicado em inglês em 2012, rendeu aos autores dois prêmios da American Historical Association concedidos a livros sobre a História das Américas e sobre História Atlântica, em 2012, e um da Sociedade Americana de Estudos Franceses e do Instituto Francês de Washington para livros sobre temas comuns à França e às Américas, em 2013. Como Papeles de libertad, foi publicado em Cuba pelas Ediciones Unión e na Colômbia pelo Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH). A edição brasileira, da Editora da Unicamp, contou com tradução de Vera Joscelyne e revisão técnica por equipe coordenada pelos autores e incluiu ilustrações, um mapa e um índice apenas onomástico – quando a edição original tinha índice remissivo onomástico e temático.

Provas de liberdade, como todo bom livro, tem diferentes camadas de entendimento e apreciação. Historiadores de qualquer área vão reconhecer a extensão da pesquisa e a originalidade da proposta metodológica; os especialistas na área de escravidão vão observar as contribuições historiográficas, e o público não especialista terá uma leitura prazerosa, emocionante e surpreendente.

Como relatam os autores, a pesquisa começou com a descoberta de uma carta no Arquivo Nacional de Cuba enviada da Bélgica por Edouard Tinchant ao general cubano Máximo Gomez no fim do século XIX. Nela, Tinchant declarava simpatia pela causa da independência de Cuba e associava a sua trajetória e a de sua família às lutas por cidadania e contra o racismo. Scott e Hébrard partiram, então, a verificar e reconstituir a história dessas pessoas que “personifica[vam] uma conexão entre três das maiores lutas antirracistas do ‘longo século XIX’: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos, e a Guerra Cubana pela independência” (p.17). O método, que os autores batizaram de “micro-história em movimento”, consistiu em seguir o rastro documental da família de Edouard Tinchant, duas gerações para trás e duas para a frente, por meio de documentos públicos e privados de todo tipo, garimpados em arquivos de oito países em três continentes e, na falta deles, preencher os vazios com dados que se associavam às trajetórias seguidas tanto por proximidade quanto por probabilidade. Sabendo, por exemplo, pela certidão de nascimento da mãe de Edouard, Elisabeth, que a mãe dela era Marie Françoise, conhecida por Rosalie, negra de nação Poulard, Scott e Hébrard puderam situar seu local de origem, a colônia francesa do Senegal, e o período aproximado de sua venda para o tráfico atlântico entre a Senegâmbia e Santo Domingo, o final da década de 1780. A falta de registros pessoais da primeira fase da vida da mulher que mais tarde se chamaria Rosalie foi então contornada pelos autores com o recurso a relatos contemporâneos de europeus, a documentos sobre a escravidão na colônia francesa do Senegal e à literatura secundária sobre a África Ocidental, o Islã na África e o tráfico atlântico do final do século XVIII.

No início da década de 1980, quando a área de estudos de escravidão começava a ganhar contornos e os especialistas ainda cabiam em um auditório, esboçava-se uma transição entre abordagens: de um lado, a do sistema de organização do trabalho e exploração dos trabalhadores, que dialogava com as teorias econômicas, e de outro, a das relações entre sujeitos históricos com autodeterminação, que abria o leque de influências disciplinares para incluir a sociologia, a antropologia e a linguística. Nessa fase, os historiadores passaram a observar mais de perto os mecanismos de reprodução do sistema, seus “segredos internos”, e com isso o comportamento dos grupos sociais, seus interesses e conflitos. O reconhecimento do protagonismo dos sujeitos históricos das camadas subalternas abriu espaço para que se multiplicassem as pesquisas em que a escala de análise dos diversos temas – trabalho, família, resistência, identidade étnica, práticas mágicas e religiosidade, entre outros – fosse a do indivíduo.

Depois de três décadas de grande florescimento e efervescência, a abordagem centrada nas pessoas escravizadas se vê às voltas com críticas acerca da representatividade dos sujeitos escolhidos e também da relevância dos seus achados para o entendimento dos grandes processos da História. Por isso, Provas de liberdade é ao mesmo tempo um libelo em defesa do jogo de escalas e uma demonstração de como proceder para incorporar o protagonismo dos sujeitos em uma análise dos processos históricos.

Os autores não trataram seus personagens como típicos ou excepcionais. A cada momento, na geração de Rosalie, de sua filha Elisabeth, de seu neto Edouard Tichant ou dos sobrinhos e sobrinhos-netos dele, Scott e Hébrard buscaram retratar momentos difíceis de tomada de decisão, de escolhas entre diferentes caminhos possíveis. Cada capítulo acaba com alguém embarcando rumo a uma nova fase na vida, sempre sob pressão ou ameaça. Foi assim quando Rosalie, já liberta, mas sem documento oficializado de sua liberdade, teve que fugir de Saint Domingue para Cuba com a filha Elisabeth em 1803, ou ainda quando a africana embarcou Elisabeth com sua madrinha para New Orleans, na Louisiana, em 1809 e voltou para o Haiti, agora independente. Foi ainda o caso da escolha feita por Elisabeth e seu marido, Jacques Tinchant, ele também filho de emigrantes haitianos de origem africana, de partir com quatro filhos para a França, país onde teriam direitos civis que não eram reconhecidos às pessoas livres de cor na Louisiana escravista da década de 1840. Foi igualmente a escolha de Edouard, nascido na França em 1841, de se juntar a dois de seus irmãos que trabalhavam em manufaturas de charutos em New Orleans. Na Louisiana, Edouard se engajou num batalhão de pessoas de cor durante a Guerra Civil, do lado da União, e depois entrou para a política, sendo eleito deputado da Assembleia Constituinte da Louisiana durante a Reconstrução, quando defendeu a igualdade de direitos civis, políticos e públicos para todos os cidadãos. Em cada trajetória e em cada momento vemos sujeitos fazendo escolhas em condições adversas, reagindo às limitações impostas pela conjuntura, protagonizando eventos e processos históricos como as transformações da escravidão e sua abolição, o pós-emancipação, ou mesmo a resistência ao nazismo na Segunda Guerra Mundial, história que antes víamos apenas de longe.

O diferencial metodológico do livro está na aproximação com o campo do Direito. Em primeiro lugar, os autores lançaram um novo olhar para os registros individuais. Sob a lupa do historiador cuidadoso, os documentos revelaram histórias complexas da aquisição e exercício de direitos (à propriedade, à liberdade, à nacionalidade, à cidadania), desnaturalizando-os e inscrevendo-os num campo de disputas. Assim, o direito à propriedade sobre escravos pode vir de uma apropriação ilegítima, posteriormente formalizada, como a que aconteceu entre milhares de ex-escravos de Saint Domingue que migraram para Cuba e depois para a Louisiana, onde a escravidão persistia: acabaram reescravizados. Em segundo lugar, Scott e Hébrard convidam os leitores a perceber como os protagonistas conferiam importância aos documentos escritos, mesmo que às vezes não pudessem ler. Essa consciência levou Rosalie a fazer questão de uma carta de alforria mesmo já sendo emancipada, pois nos territórios para onde iria ainda havia escravidão e ela sabia que precisaria provar sua condição. Nisso, percebemos que o entendimento sobre o significado e mesmo o conteúdo dos documentos sempre esteve em disputa entre as diversas forças sociais (incluindo as autoridades), e que as pessoas frequentemente se moviam na incerteza; não havia garantia plena de que uma pessoa livre de cor não fosse reescravizada, pois a fronteira entre escravidão e liberdade era bem mais porosa e cinzenta do que antes imaginávamos. Por último, é preciso ressaltar novamente a importância da abordagem simultânea em diferentes escalas, pois, ao narrar a história pelo fio condutor dos embates dessa família pelo reconhecimento de direitos – à liberdade, à respeitabilidade, à dignidade e igualdade perante a lei – os autores fizeram uma história social centrada na luta por direitos, sobretudo direitos humanos, no período entre a Revolução Francesa e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o protagonismo dos negros, mulheres e povos submetidos à colonização forçou sua ressignificação e ampliação até serem reconhecidos como universais.

Em suma, Provas de liberdade é uma obra acadêmica rigorosa e inovadora que os leitores terão o prazer de ler como um romance.

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. [email protected].

 

Histoire globale. Un autre regard sur le monde. Paris: éditions Sciences humaines – TESTOT (DH)

TESTOT, Laurent (éd.). Histoire globale. Un autre regard sur le monde. Paris: éditions Sciences humaines, 2015 (2e éd. revue et aug.), 288 p. Resenha de: BUGNARD, Pierre-Philippe. Didactica Historica – Revue Suisse pour l’Enseignement de l’Histoire, Neuchâtel, v.1, p.206-208, 2015.

Histoire globale, dans sa deuxième édition, renoue avec les approches et les objets lancés par la deuxième génération des nouveaux historiens, celle de l’école française des Annales, à partir des années 1970. Les meilleurs géo-historiens actuels renouvellent ici le genre en y greffant, notamment, la transdisciplinarité de l’espace-temps. L’ouvrage, entre « microstoria » et « histoire connectée », rassemble une série de monographies impliquant chacune leur propre histoire-monde. Voilà de quoi donner aux programmes scolaires toutes les raisons de s’ouvrir à une nouvelle histoire globale enseignée.

Le livre se conclut sur un chapitre consacré à l’enseignement de l’histoire globale par Vincent Capdepuy, géo-historien à l’Académie de La Réunion, invité au cours 2015 du GDH « L’Histoire-Monde, une histoire connectée ! ». Deux autres conférenciers de ce cours contribuent à Histoire globale: Bouda Etemad (« Empires coloniaux: essai de bilan global ») et Christian Grataloup (« Des mondes au Monde: la géohistoire »).

Nous livrons ici in extenso la recension et la table du site des éditions Sciences humaines: http:// editions.scienceshumaines.com/histoire-globale_ fr-559.htm (consulté le 5 mai 2015).

Recension La mondialisation nous impose aujourd’hui d’envisager une histoire du Monde pris dans son ensemble. Il est devenu urgent de concevoir une histoire ouverte, qui s’enrichit de comparaisons entre différentes sociétés, étudie les connexions entre civilisations, tisse des liens entre les parcours individuels et les destins des empires, ose s’attaquer à de nouveaux objets en mobilisant la géographie, l’économie, l’anthropologie, les sciences politiques, la sociologie… L’approche globale en histoire revêt deux visages.

D’abord celui de l’histoire mondiale, un récit englobant le passé commun de l’humanité, de son apparition en Afrique il y a plusieurs millions d’années à la globalisation contemporaine. Le second visage est celui de l’histoire globale. Elle propose une méthode d’analyse, à la fois transdisciplinaire, au long terme, sur longue distance. L’historien doit savoir jouer de la mobilité de son regard, varier les échelles d’approche, penser autrement le passé – ce passé qui aurait pu être autre, qui est aussi perçu différemment ailleurs.

Produire des histoires à parts égales, où l’humanité se découvre des passés et un futur communs. Tel est le projet de l’histoire globale. Depuis longtemps reconnue dans les pays anglo-saxons, cette histoire globale est restée dans le monde francophone l’apanage de quelques pionniers, de trop rares livres… Le présent ouvrage constitue une première exploration d’ensemble de ce champ de recherche en pleine émergence.

Laurent Testot est journaliste à Sciences humaines, il a dirigé plusieurs dossiers consacrés à cette nouvelle discipline qu’est l’histoire globale, dont le hors-série Sciences humaines Histoire n° 3 « La nouvelle histoire du Monde » (décembre 2014-janvier 2015).

Coordinateur du présent ouvrage, il a également coordonné, aux Éditions Sciences humaines, La Guerre. Des origines a nos jours (avec Jean-Vincent Holeindre), 2012 ; Une histoire du monde global (avec Philippe Norel), 2012 ; La Religion. Unite et diversite (avec Jean-François Dortier), 2006. Il administre, avec Vincent Capdepuy, le blog « Histoire globale »: http://blogs.histoireglobale.com.

Avec les contributions de: Frédéric Barbier, Jérôme Baschet, Philippe Beaujard, Roy Bin Wong, Lucette Boulnois, Vincent Capdepuy, Dipesh Chakrabarty, Gérard Chaliand, David Cosandey, René-Éric Dagorn, Frédéric Denhez, Marcel Detienne, Caroline Douki, Bouda Etemad, Christian Grataloup, Olivier Grenouilleau, Catherine Halpern, Nicolas Journet, Jacques Lévy, Régis Meyran, Philippe Minard, Philippe Norel, Jean- Pierre Poussou, Benoît Richard, Pierre-François Souyri, Bernard Vincent.

Table

Préface

Introduction

L’histoire au défi du monde (L. Testot)

Les sources de l’histoire globale (R. Meyran)

I. Restituer des dynamiques

Commerce et conquêtes… sur les routes de la soie (L. Boulnois)

Les racines médiévales de l’expansion occidentale (J. Baschet)

Le monde à l’envers: un Moyen Âge japonais? (Rencontre avec P.-F. Souyri)

1492: année cruciale (Rencontre avec B. Vincent)

Empires coloniaux: essai de bilan global (B. Etemad)

L’onde de choc des révolutions (J.-P. Poussou)

La société-Monde, une histoire courte (J. Lévy)

II. De nouvelles perspectives

Un espace mondialisé: l’océan Indien (P. Beaujard)

Comment les peuples guerriers ont façonné le monde (Rencontre avec G. Chaliand)

La naissance de l’imprimerie et la globalisation (F. Barbier)

Les raisons du « miracle européen » (Rencontre avec D. Cosandey)

Jalons pour une histoire globale de l’esclavage (O. Grenouilleau)

La Chine face à l’Occident (R. Bin Wong) Les enjeux d’une histoire du climat (F. Denhez)

III. Les approches méthodologiques

Pour un changement d’échelle historiographique (C. Douki et P. Minard)

La dimension globale en histoire économique (P. Norel)

Big history et histoire environnementale (R.-É. Dagorn)

Des mondes au Monde: la géohistoire (C. Grataloup)

Des Grecs aux Iroquois, une démarche comparative (Rencontre avec M. Detienne)

Les postcolonial studies: retour d’empires (N. Journet)

Quelle histoire pour les dominés? (Rencontre avec D. Chakrabarty)

Conclusion

Enseigner l’histoire globale (V. Capdepuy)

Pierre-Philippe Bugnard – Université de Fribourg

 Acessar publicação original

[IF]

 

Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave Trade – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave TradeNova York: Cambridge University Press, 2012, 282 p. CORRÊA, Carolina Perpétuo. Varia História, Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

No início do século XIX, uma mulher negra livre chamada Francisca da Silva foi escravizada em Benguela depois de ser acusada de ter se utilizado de feitiçaria para assassinar Diniz Vieira de Lima, comerciante de escravos que, apesar de ser natural daquela cidade, falecera no Rio de Janeiro. Assim se inicia o livro de Roquinaldo Ferreira, que integra a prestigiosa série African Studies, publicada, desde 1968, pela Cambridge University Press.

Biografias de pessoas comuns, como Francisca da Silva, elaboradas a partir de documentos oficiais da época, associadas à análise de memórias e relatos de viagem, formam a base da obra, fruto de uma abordagem micro-histórica. Aliando profundo domínio dos estudos históricos recentes sobre o tema, lúcida reflexão metodológica e extensa pesquisa documental realizada em arquivos angolanos, brasileiros e portugueses, o historiador brasileiro radicado nos Estados Unidos tece um rico panorama do mundo atlântico nos séculos XVIII e XIX. O maior desafio metodológico, a feitura de generalizações a partir de exemplos reveladores – estudos de caso de indivíduos cujas vidas foram registradas para a posteridade justamente por serem, de algum modo, atípicas – é solucionado por meio da descrição densa e da atenção ao contexto. O historiador, atento, procura conectar sempre os eventos que se desenrolam no nível micro com o processo maior do qual fazem parte.

Além disso, a adoção de um recorte espacial inspirado na História Atlântica, constructo analítico segundo o qual os acontecimentos da era moderna são organizados a partir do entendimento da Bacia Atlântica como um lugar onde ocorriam intercâmbios demográficos, econômicos, sociais e culturais entre os continentes por ela banhados, permite dar ênfase a aspectos dinâmicos que transcendem as fronteiras administrativas ou nacionais.1 Essa combinação de redução da escala de análise e ampliação do recorte geográfico traz contribuições importantes tanto para a História do Brasil quanto para a História da África Centro-Ocidental.

Apesar do impacto do comércio de escravos para o Brasil, a historiografia pátria guardou silêncio quase absoluto até a década de 1990 sobre as relações entre as duas regiões. A África foi frequentemente encarada como um continente primitivo, homogêneo, estático no tempo e destituído de história, e os africanos, associados automaticamente aos escravos. Por essa razão, o trabalho de Ferreira aparece àqueles familiarizados com a produção historiográfica nacional sobre a escravidão e o tráfico de escravos como a peça faltante para que o quebra-cabeça adquira seu pleno sentido. Vem, portanto, ao revelar a face africana do negócio negreiro, somar novos conhecimentos aos importantes trabalhos que pensam o tráfico do ponto de vista do Brasil, como os de Manolo Florentino e Jaime Rodrigues.

Entretanto, só teremos uma percepção adequada do alcance da obra, se a analisarmos sua contribuição para a História da África Centro-Ocidental. Em 2004, Boilley e Thioub2 argumentavam que, durante o século XX, a escrita da história da África, influenciada, por um lado, pelos combates anticoloniais e, por outro, por modelos eurocêntricos, tendeu a considerar que, depois do contato com o ocidente, a África e os africanos se tornaram vítimas de um sistema que, rompendo com o curso normal da história, constitui a causa principal, senão exclusiva, do lugar subalterno que o continente ocupa nos negócios contemporâneos do mundo. Pensando em como a produção acadêmica sobre o comércio de cativos poderia superar essas limitações, os autores sugeriam que era preciso compreender as implicações dos africanos nos processos históricos, analisando a arquitetura social, bem como os sistemas locais de produção, de troca, de dominação e de exploração da força de trabalho. A chave seria explorar as dinâmicas internas sem silenciar quanto aos interesses e ao envolvimento de atores autóctones no negócio negreiro.

Ferreira desempenha tal tarefa com maestria, mergulhando na sociedade centro-africana durante o período do comércio de escravos. Filia-se, assim, a uma tradição historiográfica inaugurada na década de 1970 por estudiosos como Jill Dias, Beatrix Heintze, Isabel Castro Henriques e Joseph Millerque procura superar o caráter etnocêntrico das análises sobre as regiões africanas engajadas no comércio atlântico e abordar a política, a economia e a sociedade locais em sua historicidade e em sua complexidade.

Esses autores pioneiros, muitas vezes mesclando métodos e abordagens próprios da história, da antropologia e da etnografia, abriram novas possibilidades para o estudo da África Centro-Ocidental, desenvolvendo trabalhos com fontes inéditas encontradas em arquivos angolanos e portugueses. Ademais, elaboraram sofisticadas reflexões teóricas sobre o lugar da África na História Mundial, o papel do historiador ao se relacionar com fontes de natureza diversa (tradição oral, achados arqueológicos, documentos escritos) e os métodos para lidar com os filtros por meio dos quais estrangeiros (os autores da documentação consultada e os próprios pesquisadores) apreenderam a realidade africana. Inovaram ao abordar temas que, durante o período colonial, eram tabus difíceis de serem rompidos, como a fragilidade da dominação portuguesa na região e a participação dos africanos no comércio de escravos, atribuindo a eles um protagonismo em sua história que lhes foi frequentemente negado.

Na contemporaneidade, uma nova geração de historiadores veio se juntar a esses pesquisadores já consagrados, desvendando novos aspectos da sociedade centro-africana no contexto do comércio atlântico. Um bom exemplo é Mariana Cândido3 que empreendeu um estudo sobre Benguela entre 1780 e 1850, argumentando que o tráfico negreiro ajudou a fundar ali uma sociedade crioula, na qual pessoas oriundas de culturas diversas acabaram forjando uma identidade comum.

Em sua dissertação de mestrado, Ferreira já havia se ocupado de Angola, mas investigando os impactos econômicos da proibição do tráfico negreiro para o Brasil entre 1830 e 1860. Em Cross Cultural Exchange in the Atlantic World, o historiador recua no tempo, analisando aquela sociedade durante o auge do comércio atlântico, tecendo para Angola uma análise em muitos sentidos equivalente a que Law e Mann dedicaram à Costa dos Escravos.4 Como esses autores, chega a conclusões abrangentes a partir de histórias individuais, enfatizando as conexões culturais e sociais transatlânticas.

A primeira seção se inicia com a narrativa de uma expedição comandada pelo ex-capitão de navios negreiros Francisco Roque Souto, em 1739, ao Reino de Holo, cujo intento era proporcionar à administração portuguesa contatos comerciais diretos com essa região fornecedora de escravos. A análise do episódio possibilita o exame da intensificação do comércio itinerante no interior de Angola, no contexto do aumento da demanda por cativos no Brasil no século XVIII, decorrência das descobertas de ouro na região das Minas. Tal comércio, conduzido nos sertões africanos por intermediários conhecidos como pumbeiros e sertanejos, consistia na troca de mercadorias importadas por escravos, que eram então conduzidos até os portos de embarque no litoral.

São os impactos do incremento dessa atividade comercial nas estruturas sociais e econômicas de Angola que o autor se propõe a desvendar, e o faz narrando vários casos retirados das fontes, como o de três africanos que tinham chegado a Benguela em 1789, fugidos após todos os outros 25 carregadores da caravana na qual trabalhavam terem sido embebedados e posteriormente escravizados pelo sertanejo Jerônimo Corrêa Dias. Partindo desses estudos de caso, o autor analisa o aumento de formas de escravização não militar, decorrentes de endividamento ou de acusações de feitiçaria, o desvirtuamento de formas de dependência temporária tradicionais e a ampliação progressiva da esfera de atuação dos Tribunais de Mucanos, cortes competentes para conhecer casos de escravização injusta, oriundas das práticas legais Mbundu.

A segunda seção é dedicada ao panorama cultural, religioso e político de Angola durante o período estudado. O historiador explora a demografia e a economia de Luanda, expondo uma sociedade dinâmica, na qual eram fluidas as fronteiras entre escravidão e liberdade e frequentes as oportunidades de convivência entre indivíduos de condições sociais e origens diversas. Nesse mundo cosmopolita, no qual a administração portuguesa tinha dificuldades de se impor, europeus e outros forasteiros acabavam aculturados pelos locais, conforme atestam a prevalência do quimbundo sobre o idioma português.

Especial atenção é dada à religião e à cultura africanas, exploradas a partir da fascinante história de Mariana Fernandes, uma mulher negra livre acusada de feitiçaria e presa em Luanda em 1726. O estudo do processo movido contra Mariana pela Inquisição revela uma mulher dotada de grande autonomia, poder e influência, decorrentes de sua atuação como ganga, autoridade religiosa de Angola. Da leitura emerge a força da religiosidade africana, que perpassava todas as camadas sociais, unindo indivíduos oriundos de realidades muito diversas.

O autor analisa, a seguir, a vida social de Luanda e de Benguela tomando como ponto de partida a história do escravo Manoel da Salvador, que, criança, fora enviado ao Rio de Janeiro, retornando, já adulto, a Luanda, onde, em 1771, é acusado de assaltar a casa de um taberneiro. Para rebater a acusação, Salvador alega que a elevada soma de dinheiro encontrada em sua posse não era produto do roubo, mas fruto da venda de mercadorias enviadas a ele pelo irmão, que continuava a residir no Brasil. Embora boa parte da versão de Salvador pareça ter sido uma mentira, o crédito dado às suas alegações, em um primeiro momento, pelas autoridades, ajuda

a revelar a grande mobilidade geográfica no mundo Atlântico. O estudo de dezenas de outros casos mostra que pessoas livres e escravas atravessavam o oceano em razão de punições por crimes e comportamentos inadequados, mas também para aprender uma profissão, buscar instrução, conduzir negócios e visitar parentes.

Os laços culturais, políticos e comerciais que uniam essas regiões africanas ao Brasil eram tão robustos, que, em 1824, prósperos comerciantes de Benguela, liderados por um homem negro nascido no Rio de Janeiro, de nome Francisco Ferreira Gomes, iniciaram um movimento rebelde que pretendia romper os laços com Portugal e anexar a província ao Brasil recém-independente. A tentativa de secessão, longe de ser uma empreitada fantasiosa, era coerente com a conjuntura da época, sendo mesmo esperada pelas autoridades portuguesas.

Ao enfatizar a organicidade entre as possessões portuguesas, o autor evidencia a esterilidade dos embates em torno dos conceitos “crioulo” e “crioulização”, rótulos estáticos que, segundo ele, dificilmente são capazes de abarcar toda a complexidade dessas mutáveis sociedades, nas quais os indivíduos manipulavam as diferentes esferas culturais, religiosas e jurídicas existentes de acordo com suas necessidades momentâneas.

A obra, inspirador exercício de erudição e imaginação histórica, adiciona mais uma peça ao intrincado quebra-cabeças do Atlântico Português, dando rara ênfase à dimensão humana das sociedades africanas setecentistas e oitocentistas, contribuindo, como sugere Miller, para que “a história atlântica se apoie solidamente em três pernas”,5 e que os africanos, como os outros, assumam o seu lugar como “atores inteligíveis” na trama do passado.

1 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, São Paulo, v.28, n.1, p.17-70, 2009.         [ Links ] 2 BOILLEY, Pierre; THIOUB, Ibrahima. Pour une histoire africaine de la complexité. In AWENENGO, Séverine; BARTHÉLÉMY, Pascale; TSHIMANGA, Charles (eds.). Écrire l’histoire de l’Afrique autrement?. Paris: L’Harmattan, 2004, p.23-45.
3 CÂNDIDO, Marina P. Enslaving frontier: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-1850. Toronto: York University, 2006 (História, Tese de Doutorado).         [ Links ] 4 LAW, Robin; MANN, Kristin. West Africa in the atlantic community: the case of the Slave Coast. The William and Mary Quarterly,Third Series, v. 56, n.2, p.307-334, apr. 1999.         [ Links ] 5 MILLER, Joseph. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v.104, n.1, p.1-32, feb. 1999.         [ Links ]

Carolina Perpétuo Corrêa – Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil, e-mail: [email protected].

O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (CTP)

FAUSTO. Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: ROSALBA, Patrícia Salvador Moura. O Crime do Restaurante Chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.

São Paulo, década de 1930, carnaval, festas, copa do mundo, crimes e justiça, são alguns dos temas retratados por Boris Fausto no livro O Crime do Restaurante Chinês. O autor faz um estudo detalhado sobre um episódio criminoso que acometeu o casal de chineses Ho-Fung e Maria Akiau e mais duas vítimas, dois homens que trabalhavam no estabelecimento comercial do casal. Para a produção do livro, Fausto recorre aos arquivos da história e da memória pessoal. Esmiúça os jornais publicados durante o marco temporal mencionado e o prodigioso processo criminal que detalha um dos fatos policias que mais chamou atenção da opinião pública paulistana na década de 1930. Resgata em sua memória a beleza e a mestria do carnaval de 1938, vivenciada sob a companhia da família por meio da participação do corso da Avenida São João, sempre ao cair da noite no domingo e terça-feira de carnaval. Relembra como o tal crime marcou a sua infância através das imagens estampadas nos jornais e que aterrorizaram suas noites, dos comentários que escutava nas ruas e no ambiente familiar sobre o episódio. Boris vivia, sentia, sofria com os fatos que conhecia sobre o crime na época de sua infância. As lembranças, a curiosidade do excelente pesquisador e sua trajetória profissional no campo acadêmico, contribuíram para que Boris Fausto construísse um enredo envolvente e misterioso com revelações que surpreendem o leitor a cada página e capítulos. Trouxe a baila discussões importantes que marcaram e ainda estão presentes na cultura brasileira como a importância da imprensa na formação da opinião pública, os dispositivos técnicos utilizados pelo sistema de justiça criminal para solucionar crimes, teorias raciais, a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados nas grandes cidades e, sobretudo, a grande euforia provocada por dois momentos importante de exacerbação da cultura brasileira, o carnaval e a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França em 1938, aliás, rituais cristalizados nacionalmente que, em suas várias versões, continuam a movimentar os espaços culturais brasileiros provocando momentos de euforia coletiva.

A perspectiva teórico-metodológica utilizada pelo autor está ancorada nos estudos denominados de micro-história. Com base em autores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Le Roy Ladurie, a micro- história se constituiu como um gênero muito estudado que influenciou e influencia a construção de diversos estudos históricos. Portanto, Fausto ainda nos presenteia com detalhes metodológicos desta forma de fazer história, na medida em que evidencia em sua escrita as principais características dessa metodologia. Reduziu a sua escala de observação, com a narração do crime do restaurante chinês, no qual buscou significados importantes que falam da cultura paulistana e que passariam despercebidos na leitura ampla de grandes episódios. Concentrou a observação em pessoas comuns como Arias de Oliveira, Ho-Fung, Maria Akiau, José Kulikevicius e Severino Lindolfo Rocha, ambos marcados socialmente através dos estereótipos de algoz e vítimas. Extraiu dos discursos presentes nos jornais e nos processos, dos fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão social muito importante para entender e explicar a cidade de São Paulo dos anos 30 e suas peculiaridades, utilizando-se do estilo narrativo para contar a história. O livro está dividido em dezesseis capítulos, acrescentados de uma breve explicação e de uma introdução, nos quais a autor narra o acontecimento policial de 1938 em detalhes, com imagens ricas, fotos que apresentam São Paulo nos anos de 1930, manchetes dos jornais relatando o crime, além das fotografias das pessoas envolvidas no processo criminal, desde as vítimas, acusado e autoridades do Sistema criminal e médico. São fotos surpreendentes acompanhadas de explicações que envolvem o/a leitor/a na teia dos acontecimentos e os/as deixa com vontade de não parar de ler. Uma trama que envolve o debate entre saber, poder e ciência, esmiuçado em laudos periciais, testes psicológicos, teorias científicas, interrogatórios, depoimentos, confissões, relatórios, denúncia e sentenças, e coloca na cena principal o acusado Arias de Oliveira, negro, pobre, analfabeto e interiorano, cujo corpo e mente são analisados, estudados, destrinchados pelo Estado, numa ação que evidencia as interfaces da biopolítica. Para aguçar a curiosidade de quem ainda não teve o privilégio de tal leitura, recorro ao estilo descritivo e informo que em uma manhã da quarta-feira de cinzas de 1938, foram encontrados quatro corpos em um restaurante chinês, situado à Rua Wenceslau Braz nº 13. Os corpos espalhados no chão dividiam espaço entre mesas e cadeiras, e foram identificados como sendo de Ho-Fung, chinês, imigrante e proprietário do restaurante e de sua mulher Maria Akiau. Além do casal, também compuseram a cena do crime mais dois corpos de homens que foram identificados como o lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Rocha, ambos trabalhavam no restaurante havia pouco tempo antes do crime. Os assassinatos contra os dois empregados do restaurante foram cometidos com diversos golpes de um cilindro de madeira, que era usado como pilão na cozinha do estabelecimento comercial. O dono do restaurante, além de ser espancado e ter várias fraturas na cabeça, também foi asfixiado, aparentemente, numa tentativa de não deixar dúvidas sobre sua morte. Maria Akiau, que foi assassinada por último, lutou com o criminoso, como demonstrou o laudo, através da constatação de marcas de unha em partes de seu corpo, e foi esganada com um laço de tecido apertado em seu pescoço. A partir da cena encontrada, a apuração dos assassinatos se desenrola e várias questões brotam, sem respostas imediatas. A principal delas se dirigia ao responsável pelo crime, ou seja, quem teria sido o assassino monstruoso? É nessa teia de acontecimentos que se chega ao principal suspeito, Arias de Oliveira. A história se desenvolve, de maneira rica em resgate de fatos históricos, e por meio de uma verdadeira aula de metodologia e análise de fontes documentais. Além do mais, coloca o/a leitor/a em contato com a memória pessoal de Boris Fausto em plena década de seu nascimento, revelações sobre sua família, seus medos, o marcante carnaval de 1938 e relatos indiciosos e inesperados sobre esse fato que lhe marcou e que ficou registrado, segundo o próprio Fausto “nas ilusões da memória” p.217 como “o mais aterrorizante elemento da cena do crime” p. 217, mas que não aparece registrado em nenhuma fonte analisada pelo autor. O livro em questão trata da história de São Paulo, e porque não dizer da História do Brasil, ligando acontecimentos culturais importantes a um crime que tomou as páginas dos jornais paulistanos em uma década marcada por importantes mudanças em âmbito nacional. Destaco que, uma das principais contribuições do autor é reflexão sobre as formas de se fazer história, através de uma discussão pertinente com a memória. Recomendo ao leitor a se debruçar sobre as páginas do Crime do Restaurante Chinês, certamente será uma prazerosa leitura, repleta de enigmas e descobertas.

Nota

Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa – Aluna do Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Pesquisadora do Grupo de Estudos do Tempo Presente -GET e do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades-NIGS da UFSC.

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Exercícios de micro-história | Carla M. C. Almeida e Mônica R. Oliveira

Não há dúvidas de que atualmente a micro-história desfruta de grande ressonância no âmbito historiográfico brasileiro. Contudo, o sucesso desta perspectiva metodológica carrega consigo uma considerável dose de incompreensão. Para grande parte dos acadêmicos brasileiros o termo “micro-história” esteve (ou ainda está) se tornando sinônimo da figura de Carlo Ginzburg, ou da figura de Menocchio, moleiro do século XVI estudado pelo proeminente historiador italiano em seu livro O queijo e os vermes. No Brasil, muitas vezes tomada como teoria, a micro-história também é freqüentemente confundida com a história das mentalidades praticada, sobretudo, pelos franceses dos Annales.

Todas estas confusões são, em grande medida, frutos do percurso trilhado pela historiografia brasileira nos últimos trinta anos. Com a crescente ampliação do público acadêmico consumidor, durante a década de 1980 um amplo conjunto de leituras historiográficas estrangeiras foram traduzidas quase que simultaneamente para o português. Entre as principais traduções podemos citar: a historiografia produzida pelo grupo dos Annales, especialmente autores como Jacques Le Goff, Georges Duby e Michel Vovelle; os historiadores ingleses e anglo-americanos, como Edward P. Thompson, Natalie Zemon Davis e Eugene Genovese; discussões que surgiam do âmbito filosófico e sociológico francês, como Michel Foucault e Pierre Bourdieu; além dos frutos da micro-história italiana, quase que exclusivamente com Carlo Ginzburg. Portanto, a recepção desta massa de textos, idéias e sugestões de pesquisa (que não raramente caminham em direções divergentes, claro sintoma do desmoronamento dos paradigmas estruturalista e marxista) foi mediada – como talvez não pudesse deixar de ser – por leituras parciais e apressadas. Leia Mais

O crime do restaurante chinês – FAUSTO (H-Unesp)

FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 246 p. Resenha de: PEREIRA, Vantuil. Uma “outra” São Paulo da década de 1930. História [Unesp] v.29 no.1 Franca  2010.

A década de 1930 sempre exerceu certo enlevo para quem estuda a História do Brasil Contemporâneo. Em grande medida, a Revolução de 1930 pautou tanto as ações políticas, quanto as ações acadêmicas. Assim, no campo acadêmico, olhar para aquele decênio significa tentar compreender fenômenos como o populismo, o estudo das “modernas” formas de fazer política, o estilo constituinte dos partidos contemporâneos.

É resultado deste período a estruturação daquilo que Wanderley Guilherme dos Santos denominara “cidadania regulada”, isto é, uma inserção social controlada pelo Estado, no qual os direitos inerentes de cidadania são constituídos de forma parciais e com uma clara intenção homeopáticas.

A essa época consta também os traços ou resquícios de um tempo não muito distante. Pertencem a mesma década as principais formulações racistas e autoritárias, expressas na eugenia ou na proposição de que não haveria um sentimento de povo no Brasil, apenas visões parciais e localistas. Por seu turno, a sociedade não estaria preparada para o exercício político; não estava acostumada com instituições democráticas. Do mesmo modo, o pensamento científico ganhava terreno, ampliando suas relações socais concretas.

Diferentemente de verificar como um Estado autoritário impactou na vida de um militante comunista ou sindicalista, esta historiografia deixa de olhar como estas instituições impactaram no cotidiano das pessoas comuns. Embora as ideias racistas não tivessem sido introduzidas no Brasil naquela época, foi em 30 que as discussões raciais ganharam terreno. Elas resultaram de uma articulação entre a academia e a vida cotidiana da população através dos aparelhos repressivos que, mediado pelo Estado, interferiram no dia-a-dia da população.

Ao lançar vistas para os anos de 1930, tem-se pelo menos dois outros aspectos instigantes. O primeiro se refere a uma preocupação principal com a construção do edifício e as bases do Estado moderno nacional, seja pelo viés industrial e urbano, seja pelo pensamento político e jurídico daí emanado. Em segundo lugar, dá-se ênfase a compreensão do fenômeno político que foi Getulio Vargas, uma espécie de mito moderno o qual, ao longo das décadas seguintes à sua chegada ao poder, acabou por instituir uma espécie de paradigma político e social na história recente do país.

Desse modo, frequentemente a história política dos anos 30 esteve às voltas com as narrativas das grandes personalidades que, obviamente, não se restringiam à persona de Getúlio, podendo-se falar em figuras como Gustavo Capanema, Juarez Távora, Francisco Campos, etc. Portanto, tratar-se-ia de um enfoque histórico a partir dos grandes homens ou, no mais das vezes, de uma história política renovada que procurava construir uma releitura das ações, padrões políticos, mentalidades e culturas políticas dentro de uma lógica motivada “pelo alto”.

Raros são os estudos deste período que versam sobre a compreensão do mundo das camadas populares, dos homens e mulheres comuns, embora sejam tocados pela construção do Estado, pelos discursos de Getúlio Vargas e toda carga simbólica que ele representara. Ao mesmo tempo, podemos perguntar como a urbanização acelerada, o fortalecimento e consolidação de uma opinião pública, calcada no rádio, moldaram as vidas ou como esses elementos repercutiram no cotidiano da gente comum, pois coadjuvado com a imprensa escrita, irradiavam valores de um “novo” momento nacional.

Em grande medida, a impossibilidade de se alcançar os impactos das transformações daquela década se deveu, por um lado, pela própria perspectiva histórica de valorização da história política tradicional, pela resistência em ver na gente comum uma cultura ou capacidade de reação às ações do Estado. Por outro lado, inexistiam métodos capazes de perceber tais nuances específicas das camadas sociais mais pobres.

Esses limites começam a ser quebrados no Brasil a partir da década de 1980 quando, sob influência da micro-história, ocorre uma junção das análises com a eleição do cotidiano como campo de observação com o enfoque sociocultural. A preocupação aqui está em examinar como a classe operária (e não seus dirigentes) é formada, ou como ocorrem resistências populares a partir de uma “outra historia”. O cotidiano é visto a partir do contraditório, revela tensões, desconexões aparentes, conflitos com os poderes e das resistências a esses poderes.

Henrique Espada (2006) argumentaria que seria importante o historiador olhar com atenção para as paisagens que aparentemente não se transformam. Sugere-se, portanto, que se tome, se não um procedimento, ao menos a qualidade de uma observação ou de uma perspectiva frente aos objetos da análise. Assim, a metodologia ou as fontes disponíveis para se chegar às pessoas comuns não são as mesmas que para se compreender o modo de pensar das grandes personalidades.

Como afirmavam E. P. Thompson, George Rudé e Eric Hobsbawm, as pessoas comuns – quase que invariavelmente -, não deixaram documentos escritos para a posteridade e não tinham arquivos disponíveis para guardar as suas memórias. Dessa forma, um procedimento para auscultar este segmento social se faz através de um tratamento intensivo das fontes, ao seu modo peculiar de ler os indícios, isto é, a atenção do historiador deverá ser redobrada, ele deve estar atento a todos os detalhes, aos não ditos. Em diversas oportunidades ele está trabalhando ao nível das trajetórias individuais, da realidade cotidiana e de ardis recorrentes nas extensas redes de pequenos poderes onde os atores sociais se revelam em toda a sua humanidade.

Ao valer-se da metodologia e do enfoque micro-histórico, O crime do restaurante chinês de Boris Fausto, vem cobrir parte desta lacuna do período do Estado Novo. O autor traz contribuições valiosas para o entendimento do modo de pensar e de como as pessoas comuns sobreviviam no interior de uma cidade de São Paulo em transformação.

O autor se relaciona com a micro-história ao considerar aspectos determinantes daquela metodologia, tais como a redução da observação do historiador. Fausto não se preocupa em tratar, por exemplo do Estado como ente privilegiado, ele busca apreciar ações humanas e significados que passam despercebidos quando se lida com grandes quadros

Do mesmo modo, para dar consubstanciação à sua proposta, ele concentra sua escala em pessoas comuns e não em grandes personagens, buscando ouvir suas vozes. Aqui, entra um terceiro elemento, pois há uma preocupação em extrair de fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão sociocultural relevante.

Embora reconheça que sua obra possa ser lida como uma “boa história”, Fausto marcará sua posição de historiador ao revelar dois aspectos imprescindíveis de seu trabalho. Embora apele para o recurso da narrativa, contraria a história das grandes estruturas, sem se confundir com o estilo das narrativas tradicionais, predominantes no século XIX. E, por fim, mas não menos importante, situa sua obra no terreno da história, o que significa apoiar-se nas fontes, delimitando assim, claramente, a obra ficcional.

No último ponto, Fausto retoma alguns ensinamentos de Carlo Ginzburg e suas preocupações em distinguir seu modo de construção narrativo da corrente que propugna por um ataque cético à cientificidade das narrações históricas (GINZBURG, 2007, p.10-13). Afirma que as narrações históricas não falariam da realidade, mas sim de quem as construiu. O crime do restaurante chinês tem um estilo preferencial pela narrativa, admite Fausto, mas não a narrativa ficcional, pois a trama se apoia em fontes históricas, conclui o autor.

Em seu lugar, Fausto atuará mais como um camponês arando um terreno árido, procurará se situar mais como um “vasculhador” de testemunhos históricos a contrapelo, como Walter Benjamin sugeria, isto é, contra as intenções de quem os produziu.

Uma das grandes forças de O crime do restaurante chinês é que sua escala de observação é reduzida. Vários personagens são pessoas comuns, invisíveis no plano dos grandes acontecimentos, que não figuram na galeria dos grandes mitos da história nacional. Contudo, dentro da proposta micro-histórica, o modo de pensar, as vidas e as interações das pessoas comuns servem para inseri-las em um amplo contexto social que serve como chaves de entendimento de ângulos ignorados do contexto da época. São “fachos de luz, capazes de alcançar lugares escuros de uma sala que a luminária do teto não alcança”, dir-nos-ia Boris Fausto.

O autor argumenta que a problemática só poderá ser entendida se compreender o contexto geral em que a vida das pessoas está envolvida. Assim, ele situará suas análises ao longo da repercussão do próprio crime do restaurante chinês, isto é, na São Paulo da década de 1930, ou, com maior incidência, nos anos que vão de 1938 a 1942. Naquele momento, a cidade não era a megalópole dos dias atuais. Todavia, ela já vivia os problemas dos grandes centros urbanos, sobretudo se considerarmos que nela já habitavam mais de 1 milhão de pessoas. Os vestígios do passado insistiam em não desaparecer, ainda que os meios de informação estivessem bastante disseminados, pela via dos jornais e das emissoras de rádio, que alcançavam não só a classe média como setores das classes populares. Outro aspecto da cidade era a presença de uma multiplicidade étnica, em grande medida resultante da imigração em massa de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX. “Em meados dos anos 1930, nela conviviam imigrantes e seus descendentes, velhos paulistanos em crescente minoria e migrantes internos que começavam a chegar em grande número, de Minas Gerais e do Nordeste” (FAUSTO, 2009, p.10).

Fausto reconhece que a obra está envolta de elementos de sua própria memória, pois parte do que ele retira dos relatos e da narrativa é decorrente das lembranças da sua infância, do carnaval de 1938, dos encontros familiares, das desgraças, etc. A memória reconstruída por Fausto é como uma fotografia de sua infância. O que foi lembrado é interessante na medida em que nos revela parte da trama.

O escritor admite que na sua memória “ficaram apenas as imagens do último carnaval [em família], do mistério sem rosto da morte da minha mãe. Ficaram também as imagens do crime do restaurante chinês, na versão em que Arias de Oliveira era considerado o autor da chacina” (FAUSTO, 2009, p.217), motivadas pelas cenas estampadas nos jornais, pelos comentários repercutindo o massacre.

No presente, ocorre um confronto entre o historiador e sua memória. A memória reconstruída do autor procura não o julgamento, mas a compreensão daquelas cenas, a partir das evidências, das fontes. O “juiz” transforma-se em historiador. Lembrar agora pode ser visto não como algo inocente, pois, olhando por trás dos ombros do delegado e nas tintas da imprensa que repercutia o crime, fica consciente de que, a autoridade depositada nestas instituições são elas mesmas apenas vozes contraditórias que se juntam ao processo.

As cenas que atormentavam um pequeno menino não deixavam de ser as da exposição de uma memória coletiva. As percepções de Boris Fausto, ainda que aparentemente passem à margem dos acontecimentos daqueles anos, implicam nas tramas que circundavam a sociedade: o crime, o futebol, o carnaval, as leituras que a imprensa construía sobre os envolvidos nos acontecimentos do carnaval de 1938 e a primária ideia de justiça.

O crime do restaurante chinês é uma chave de abertura dos caminhos mais amplos, seja ele o funcionamento do aparelho policial e judiciário – aqui estariam ausentes o uso da força como mecanismo de dominação e a obtenção da confissão do acusado negro Arias de Oliveira – , ou os novos mecanismos propugnados pela ciência criminológica, auxiliada pela psicologia e pelas técnicas desenvolvidas pelo professor positivista italiano Cesare Lombroso. Portanto, recorrentemente, estão contidas as teorias racistas, que procuravam demonstrar os tipos de homens capazes de cometer crimes e, consequentemente, a discussão da natureza da criminalidade e do perfil dos infratores.

Dividido em 16 capítulos curtos e objetivos, o livro é de fácil compreensão e acessibilidade (tanto para um leitor leigo quanto para um acadêmico). A obra conta o desenrolar do crime (ou chacina, como afirma o autor) do restaurante chinês, ocorrido no carnaval de 1938. No morticínio morreram o proprietário do restaurante, sua mulher e dois empregados do casal. Auxiliado pela riqueza de detalhes produzidos por jornais como o Estado de São PauloFolha da Manhã e Correio Paulistano, Fausto constrói a trama procurando problematizar e relativizar cada detalhe do crime. Coadjuvado pela imprensa, será na friúra do inquérito policial que ele procurará reconstruir a personalidade de todos os envolvidos. Contudo, o que o mundo da chacina revela, ao contrário de um mundo glamourizado, é a vida de “migrantes pobres, analfabetos ou semianalfabetos”, alguns que com esforço vinham escalando alguns degraus da ascensão social (FAUSTO, 2009, p.41-43).

Seguindo uma ordem cronológica dos acontecimentos – que permite a compreensão do desenrolar dos acontecimentos -, não deixa de tocar nas intrigas e emaranhados que envolvem a trama, desde a existência de uma possível máfia chinesa, passando pela contrariedade de familiares do proprietário do restaurante chinês, as pressões “desatinadas” da imprensa sensacionalista, a busca pelos culpados, chegando ao negro Arias de Oliveira – o acusado de ter cometido o crime do restaurante chinês.

No ínterim da narrativa, Fausto percebe uma disputa política envolvendo, de um lado, a polícia que, pressionada pela repercussão popular de um grande crime, isto é, episódio que se destaca pela exuberância sangrenta, por envolver paixões amorosas, na importância dos protagonistas, ou por tudo isso junto (FAUSTO, 2009, p.39) que, na atualidade, se encontra banalizado não só pela generalização dos acontecimentos, mas, sobretudo, pela capacidade da imprensa em torná-los corriqueiros. De outro lado, ao chegar ao preto Arias, a ação da polícia desencadeia uma ação por parte da chamada burguesia “de cor”, responsável por atividades culturais e pela criação de entidades como a Frente Negra Brasileira, que se propunha a lutar contra a discriminação racial. A Frente se colocara na defesa de Arias de Oliveira, evitando que ele ficasse desamparado ou nas mãos de um defensor público. Entra em cena, o jovem advogado Paulo Lauro, importante para as três absolvições que Arias receberia ao longo de três anos.

Ao lermos O crime do restaurante chinês, a riqueza de fotografias nos transporta para os acontecimentos, permite que nos envolvamos cada vez mais na trama. Ao nos depararmos com a acusação de Arias de Oliveira, perguntamo-nos a cada momento qual será o desfecho dos acontecimentos.

O que podemos antecipar é que Arias de Oliveira volta à obscuridade, sem que o crime deixe de figurar na memória coletiva da cidade de São Paulo. Ele é memória coletiva para os militantes negros.

Do mesmo modo, pode ser compreendido como uma memória não rememorada de mil outros “Arias de Oliveira” que não tiveram o mesmo destino de se verem fora das prisões e suas vidas transformadas pelas agruras da justiça. Diante deste possível desfecho, fica cada vez mais provocativo pensarmos o potencial da construção historiográfica a partir de homens e de mulheres comuns que foram impactados pela nova ordem de coisas, pela ética do trabalho, pelo racismo, pela exclusão disseminada a partir da consolidação do capitalismo no Brasil, na São Paulo que era o seu exemplo mais concreto já a partir da década de 1920.

O livro de Boris Fausto é uma obra que contempla um jeito novo de fazer história: não perde a perspectiva de se construir conhecimento. Articula a relação entre o contar uma boa história (científica, porque baseada nas fontes) e uma outra (narrativa), ao gosto do leitor comum, que procura os prazeres de uma boa estória.

Vantuil Pereira – Professor Doutor – Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História – UFRJ – Univ. Federal do Rio de Janeiro – Av. Pasteur, 250, CEP: 22290-240, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected].

Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição – VAINFAS (Tempo)

VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 384 p. Resenha de: SANTOS, Maria Cristina dos. Lições da Traição: a redução da escala na análise histórica. Tempo v.14 no.27 Niterói  2009.

Desde a década de 1980, a quantidade de traduções e publicações acerca das discussões sobre os novos paradigmas teóricos e metodológicos da pesquisa histórica supera em muito os títulos resultantes de pesquisas que ousaram aplicar os novos paradigmas em discussão, indicação clara de que, na produção do conhecimento histórico no Brasil, muito se discute sobre como fazer, mas pouco se arrisca ao realizar uma pesquisa documenta. Esta particularidade pode ser observada no boom editorial que ocorreu nas publicações sobre a História das Mentalidades, História Cultural, de Gênero, da Vida Privada, entre outras.

Algo semelhante ocorria, até então, com a metodologia da redução da escala de análise histórica. Entre as inúmeras discussões realizadas, alguns autores tentaram vincular à metodologia da microanálise os restritos resultados de suas pesquisas locais e/ou regionais. Nada mais distante. Essas tentativas cômodas, oriundas de leituras superficiais, foram usadas para justificar pesquisas, ou melhor, recopilação de documentos, sem alcance analítico para ultrapassarem os limites locais onde foram realizadas. O impulso metodológico da microhistória não é small is beautifull; não é a pequenez do gesto, mas a análise, a escala de observação.1 Conforme Medick, é importante destacar a perspectiva de conhecimento microanalítica como um, mas de forma alguma o único, método específico de investigação. Mas só ele permite – partindo das ações, experiências e condições de vida de pessoas individuais – localizar, de uma maneira nova, seu envolvimento em redes sociais, culturais e econômicas, incluindo seus efeitos e limites nos contextos globais.2

Não foi por mera coincidência que Vainfas iniciou seu ensaio sobre Os Protagonistas Anônimos da História, apresentando de forma crítica a micro-história em meio a uma “teia de equívocos”, evidenciando, assim, o que ela “não é”.3

Entre os inúmeros debates realizados no âmbito acadêmico, Sandra Pesavento não titubeou ao afirmar: “realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste recorte de escala”.4 A peremptória afirmação beira o desafio: dizer mais sobre um recorte do real. Isso pressupõe que realizar uma pesquisa documental, conforme os paradigmas conceituais e metodológicos da micro-história, não é tarefa fácil, tampouco para principiantes. Tal constatação fica demonstrada na forma, no conteúdo e nos enlaces descortinados por Vainfas na Traição.

A construção da narrativa seduz o leitor, quer pela forma, quer pelo conteúdo. Sobre a forma, cabe salientar que Vainfas subverte o formato da narrativa histórica clássica, ao começar pela descrição do ambiente das cenas finais da trama urdida por Manoel de Moraes, tal como num romance policial. A realização de uma exaustiva pesquisa histórica não é, nesse caso, justificativa para apresentar os resultados em textos longos, aborrecidos e recheados de um vocabulário hermético. As aventuras e desventuras desse protagonista, até então quase anônimo, são apresentadas numa sequência de quarenta capítulos, em sua maioria, curtos e construídos literariamente de maneira a prender o leitor e desconcertar o historiador, sobretudo aquele mais tradicional. Mas, o que parece inusitado na forma avança ainda mais no conteúdo.

Vainfas reconstituiu a história de Manoel de Moraes em uma narrativa envolvente que não abandona em nenhum momento o necessário rigor acadêmico. O prazer da leitura de um texto literariamente sedutor traz consigo vários questionamentos teóricos e metodológicos sobre a historiografia do período colonial.

Manoel de Moraes nasceu em São Paulo, tornou-se jesuíta e atuou como missionário em Pernambuco. Participou de forma ativa, junto com Felipe Camarão, das guerras entre Portugal e Holanda, na primeira metade do século XVII. No posto de Capitão do Gentio, Manoel atuou, com armas em punho e em uso, na frente de batalha. “O lado paulista de Manoel de Moraes veio à tona com força máxima nos combates contra o holandês […] na verdade, lutava e matava com garra, agindo como autêntico paulista nos matos, esquecido dos mandamentos de Deus e de suas obrigações como sacerdote”(p. 43-45). Mas, ao perceber a iminente derrota, Manoel cruza o campo de batalha e se oferece aos holandeses. O limite entre a rendição e a traição no final da guerra da Paraíba é quase invisível – o que, segundo Vainfas, dá quase no mesmo. Manoel de Moraes passou para o lado dos holandeses e levou consigo todos os índios que comandava. “No mínimo salvou a própria vida e logo vislumbrou novos horizontes”(p.65).

A partir daí, o leitor, seja alheio ao assunto ou um especialista, será levado a caminhos inimagináveis, traçados tanto pela trajetória oblíqua do personagem, como pela habilidade de Vainfas como narrador. Manoel de Moraes passa, então, a protagonizar uma sequência de traições – que estão para muito além de gregos, troianos e pernambucanos.

Depois de trair os princípios contrarreformistas do Concílio de Trento, onde havia começado sua formação religiosa, mudou-se do Brasil para a Holanda. Foi aí que se casou por duas vezes, dentro dos rituais calvinistas. O primeiro casamento foi por conveniência política e econômica; já o segundo, nosso Manoel acabou por ceder “às fraquezas da carne e aos excessos contra o sex[t]o mandamento”(p.126-154). Foi também na Holanda que ele se escondeu do primeiro processo da Inquisição portuguesa, quando foi julgado e condenado à fogueira. Na ausência do réu, uma estátua deste foi queimada em praça pública (p.180), conforme as determinações do Santo Ofício. Tornou-se um informante privilegiado dos holandeses contra os portugueses, inclusive na questão da forma de como atuar junto aos indígenas no Brasil. Entre as várias obras que produziu, elaborou um “Plano para o Bom Governo dos Índios”, utilizando o modelo jesuítico, porém sem jesuítas (p.121). Trocou uma Companhia (de Jesus) por outra (a das Índias Ocidentais), como um padre troca de batina.

missa de Manoel, no entanto, não está nem na metade. Surpreendentemente, ele faz o caminho de volta. Atormentado pelos dramas de consciência, talvez resquícios de sua formação jesuítica, empreende uma viagem de retorno ao Brasil e ao catolicismo, porém não à vida sacerdotal strictu sensu. Nesta circunstância é que Manoel de Moraes se converte num traidor perfeito.

Traiu os jesuítas, traiu os portugueses na guerra de resistência; voltou a traí-los, prometendo servir a D. João IV em troca de mercês e perdões, enquanto arrancava dos holandeses o contrato do paubrasil; traía, ao mesmo tempo, a WIC [West International Company], oferecendo-se aos embaixadores portugueses para combater os holandeses no Brasil; traiu Adriana Smetz, não nos esqueçamos dela [e de sua beleza estonteante], ao abandoná-la com três crianças em Leiden. Não haveria de ser como brasileiro que Manoel honraria algum contrato (p.230).

De volta a Pernambuco, com um empréstimo da WIC, Manoel torna-se senhor escravista, negociante de pau-brasil, e passa a viver provavelmente amancebado à “negra Beatriz”, que desempenhava nada menos do que a função de feitora [!] (p.232). Durante seus últimos anos no Brasil, consegue algumas outras façanhas, tais como: enriquecer como negociante, passar o calote na Companhia das Índias e ainda conceber “a peculiar e absurda perspectiva de vir a ser uma espécie de predicante católico. Católico na fé, com direito a pregar e oficiar missas, mas sem o voto de obediência (exceto a militar), muito menos os de pobreza e de castidade. Uma espécie de mescla entre o predicante calvinista e o padre católico”(p.259). Tanto fez que, por fim, foi preso e levado ao Tribunal do Santo Ofício da metrópole lusitana.

Em Lisboa, encarcerado na Casa Negra do Rocio, Manoel de Moraes começa uma terceira e derradeira etapa de suas estratégias. Será durante seu segundo julgamento que as habilidades retóricas e as artimanhas mais audaciosas desse memorável personagem terão mais espaço.

Atitudes, propósitos e convicções, aparentemente contraditórias, são constantes na tortuosa vida de Manoel de Moraes. Pelo texto de Vainfas, tais contradições convertemse em luzes sobre um passado cristalizado pela historiografia tradicional, como blocos homogêneos, quase sempre antagônicos. De um lado está o Ocidente católico e civilizador; de outro, os nativos a serem cristianizados e cooptados pelas forças colonizadoras. Nesta historiografia de antagonismos, não há espaço para fraturas, para desvios de comportamento ou para qualquer exceção.

Não foi pouco o esforço teórico e metodológico que a academia empreendeu, em particular, na última década para demonstrar as diversidades internas de supostos conjuntos sócio-religiosos-econômicos e culturais dos nativos, com os quais um Ocidente se enfrentou. Vainfas apresenta muito além da vida de altos e baixos de Manoel de Moraes e ressalta a importância de uma pesquisa séria como base de uma análise histórica consistente. Por meio das traições de Manoel de Moraes, Vainfas constrói uma audaciosa trilha até então minoritária na academia. Ao longo do texto, são apontados inúmeros elementos para relativizar a suposta constância do Ocidente nas Américas. Em particular, a pretensa homogeneidade de uma instituição como a Companhia de Jesus, criada com o intuito de atuar como elemento de coesão do mundo católico ameaçado pelas fraturas provocadas pelos diversos movimentos reformistas, tais como o Luteranismo, Anglicanismo e Calvinismo.

Ao leitor leigo, as peripécias de Manoel como Capitão dos Gentios, Fantasma, Calvinista, Delator, Pertinaz Valentão, ou entre Paixões Flamengas, despertará curiosidades e dúvidas no conhecimento sobre a América Portuguesa, o Brasil Holandês e as disputas europeias do século XVII, disseminadas no senso comum. Ao leitor acadêmico, a trajetória deste personagem, aliada ao refinamento teórico-metodológico de Vainfas, evidencia por que e como a rigorosa pesquisa documental ainda se mantém como o grande diferencial entre o pensar, fazer e escrever História e o escrever sobre História.

Todas as afirmações estão documentalmente comprovadas e a cronologia incluída no final da obra contextualiza os eventos narrados. Se para alguns leitores tais informações podem servir como bússola das intrigas na qual Manoel esteve inserido, para outros servirá também para evidenciar que o período moderno, tanto na Europa Ocidental quanto em suas ramificações coloniais, não pode ser explicado somente como a transição do feudalismo ao capitalismo, ou como a época de ouro do pensamento mesti ço. Manoel de Moraes é tudo isso e muito mais.

Ao longo do texto, no século XVII, Espanha, Portugal, Holanda e Brasil aparecem formando complexas redes de poder e de conflito que possibilitaram circunstâncias nas quais as lealdades eram naturalmente volúveis. Manoel de Moraes, com suas aventuras e dramas pessoais, é utilizado para expor os conflitos religiosos, os ambientes em que viviam os personagens e os processos de mediação cultural que desenham uma conjuntura colonial muito mais complexa do que aquelas estabelecidas pelas macroanálises.

No ofício da pesquisa, o historiador deve questionar suas fontes e estabelecer conexões, por meio do cruzamento de informações. Se o momento vivido por Manoel de Moraes assim o exige, Vainfas não se abstém de ampliar a escala de análise, demonstrando, assim, como esse exercício é fundamental na pesquisa histórica.

Em contrapartida, o Santo Ofício desconhecia completamente o que se pode alcançar noutras fontes, a exemplo das preciosas informações que Manoel dera aos holandeses logo depois de se render na Paraíba, as quais, sem dúvida, adensavam suas culpas. Se soubessem disso, ou do que Manoel tinha contado ao irlandês O’Brien em Amsterdã, em junho de 1635 (!), os inquisidores talvez estreitassem a relação entre traição e heresia, percebendo essa última já nas ações do ex-padre desde fins de 1634. Não deixa de haver, portanto, alguma semelhança entre o mameluco paulista e o irlandês aventureiro, seja na audácia das atitudes, seja no ânimo irrefreável de romper fronteiras, seja ainda na fluidez das lealdades e compromissos (p.186).

Nesta ocasião, entre outras, Vainfas evidencia as particularidades da aplicação metodológica na pesquisa, pois

é próprio do método da microhistória estabelecer esta rede de relações […] na medida em que estas relações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria um método que jogaria com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto5 .

Portanto, seja qual for o intuito do leitor ao se aproximar da mais recente obra de Vainfas, encontrará muito mais que os caminhos da construção/compreensão das intrigas do passado, tal como já advertiu Paul Veyne, no clássico texto Como Escrever História.6 Com toda a certeza, entenderá que o mérito de o verdadeiro métier do historiador pode ser tão, ou mais, encantador que o do curioso que se apropria de temas históricos com o intuito de popularizar a História. As constantes traições cometidas por Manoel de Moraes foram utilizadas também para mostrar como a produção do conhecimento histórico tem avançado na forma e no conteúdo. É bem verdade que nosso Manoel não chegou a questionar as origens do Universo como Menocchio.7 Entre este último e Manoel de Moraes há mais de um século e um oceano que os separa. Mas, os resultados apresentados por Vainfas são exemplares para demonstrar como fazer a redução da escala de análise, constituindo-se assim, numa referência historiográfica made in Brazil. Como oposição complementar, Vainfas manteve-se fiel a sua vinculação acadêmica e transformou uma rigorosa pesquisa documental num texto sedutor. A Traição traz várias lições; basta tentar aprendê-las.

1 Brad S. Gregory, “Is small beautiful? Microhistory and the history of everday life”, History and Theory Studies, Middletown, Wesleyen University, vol. 38, nº 1, p. 100 -110, 2002.         [ Links ] 2 Hans Medick, “Quo Vadis Antropologia Histórica? A pesquisa histórica entre a ciência histórica da Cultura e a Micro-História”, Aula Inaugural na Faculdade de Filosofia de Erfurt, 03 jul. 2000. Tradução René Gertz, Métis: história & cultura, Caxias do Sul, EDUCS, vol. 2, nº 3, p. 199-216, 2003, p. 209.         [ Links ] 3 Ronaldo Vainfas, Micro-história: Os Protagonistas Anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus, 2000, p. 07-51.         [ Links ] 4 Sandra Jatahy Pesavento, “O corpo e a alma do mundo. A micro-história e a construção do passado”, História Unisinos. Dossiê: Teoria e metodologia da História, São Leopoldo (RS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos, vol. 8, nº 10, 179-189, 2004. p. 180.         [ Links ] 5 S. J. Pesavento, op. cit. 2004, p.183.
6 P. Veyne, Comment on écrit l’histórie, Paris, Editions du Seuil, 1971.         [ Links ] Tradução portuguesa: Como escrever História, Lisboa, Edições Anos 70, 1987, p. 107-136.         [ Links ] 7 Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pel a Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Edição original: 1976.         [ Links ]

Maria Cristina dos Santos – Professora Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

Os protagonistas anônimos da História: micro-história – VAINFAS (RBH)

VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. 115pp. Resenha de: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.23, n.45, july 2003.

No Brasil, o ensino universitário de história ainda carece de boa bibliografia teórica produzida por autores nacionais, em que pese o número crescente de traduções de especialistas estrangeiros. A boa repercussão alcançada pelo livro Domínios da História (org. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, Campus, 1997), certamente deve ter estimulado o professor Ronaldo Vainfas a fazer uma nova incursão na área de teoria e metodologia da história. Melhor dizendo, a aprofundar algumas reflexões que deixara encaminhadas ao concluir aquela obra, que nos últimos anos tornou-se referência no ensino da disciplina. Refiro-me ao recém-lançado Os protagonistas anônimos da História: micro-história, onde Vainfas examina esse gênero historiográfico surgido na Itália, a propósito da coleção dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988. Vale lembrar que a micro-história opera com escala de observação reduzida, exploração exaustiva de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária. Neste sentido, contempla, sobretudo, temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas — referidas geográfica ou sociologicamente —, às situações-limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente vultos anônimos, figuras que por certo passariam despercebidas na multidão. O certo é que essa corrente historiográfica foi muito mal compreendida, ora tomada como história cultural, ora confundida com a história das mentalidades e com a história do cotidiano. Ou, então, percebida como expressão típica de uma história descritiva, de viés marcadamente antropológico, que renunciou ao estatuto científico da disciplina, invadiu o território da literatura, rompendo de vez as fronteiras da narrativa histórica com o ficcional. Não seria exagero afirmar que ainda hoje a micro-história carrega o estigma de história menor, atacada principalmente pelos defensores dos modelos macrossociais de análise. Mas, como afirma Hans Medick, rebatendo tais críticas, se small is beautiful isto não significa banalizar a história, nem desconectá-la de contextos mais amplos.

Ronaldo Vainfas dispõe-se a desfazer essa intrincada teia de equívocos. E, de fato, alcança seu intento. Assim, no primeiro capítulo, apresenta um panorama da trajetória dos estudos históricos no século XX, detendo-se especialmente na historiografia francesa tributária do movimento de Annales. Dialoga com este quadro conceitual para demonstrar o que a micro-história não é, evidenciando as razões pelas quais a prática microanalítica não pode ser definida apenas em função dos temas de pesquisa, mas sim em relação a seus objetos e às metodologias por ela utilizadas. Desfeito didaticamente o imbroglio, o autor parte para identificar O berço da micro-história (capítulo 2), mostrando as linhagens dessa vertente historiográfica praticada por historiadores italianos, franceses, ingleses e norte-americanos, com ênfase no papel desempenhado pelos italianos e na importância da revista Quaderni Storici e da mencionada coleção Microstorie. Resgatadas as origens teóricas, o autor parte para exemplos concretos. No capítulo terceiro — A micro-história em cena, resume alguns enredos de livros emblemáticos do gênero, a começar pelo clássico O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, seguindo-se de O retorno de Martin Guerre, de Natalie Zenon Davis; Atos impuros, de Judith Brown, e A herança imaterial, de Geovannni Levi. Essas breves sínteses servem de mote para o exame do modo como se opera a narrativa microanalítica e a discussão das fronteiras que a separam da narrativa ficcional. Em seguida, no capítulo quarto, sugestivamente denominado A micro-história nos bastidores, privilegia o estudo do aparato conceitual empregado pela micro-história, a escolha de temas, a problemática da redução de escala na descrição densa, bem como a delimitação dos objetos de estudo em termos de espaço e de temporalidade. Finalmente, à guisa de conclusão, o professor Vainfas aponta os contrastes entre as abordagens macrossociais e as microanalíticas, discute as possibilidades e os limites de compatibilização entre ambas, oferecendo ainda uma extensa bibliografia comentada, com tudo já que se publicou no País a respeito da microanálise, inclusive trabalhos de historiadores brasileiros que fizeram incursões no gênero.

Longe de fazer proselitismo em defesa do gênero, Vainfas aproxima-se dos encaminhamentos propostos pela historiadora norte-americana Natalie Zenon Davis, um dos ícones da micro-história. Segundo Davis, é inquestionável a natureza complementar dos dois tipos de análise. A tarefa que se impõe aos estudiosos consiste, pois, em investigar métodos de interpretação e de narrativa que possam dar conta no texto escrito do entrecruzamento e das tensões entre o pequeno e o grande, entre o social e o cultural. Ou, que venham a explorar as conexões possíveis entre esses dois níveis de experiência historiográfica, conforme sugere Georg Iggers na sua mais recente contribuição, Historiography in the twentieth century: from scientific objectivity to the postmodern challenge. Seja como for, estudantes e pesquisadores, sem dúvida, irão se beneficiar da leitura dessa obra assentada em sólida argumentação teórica, mas de exposição agradável, repleta de exemplos e de comentários bem-humorados.

Lucia Maria Paschoal Guimarães – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História | Ronaldo Vainfas

Em 1997, a Editora Campus lançou uma obra que reunia uma série de ensaios gerais sobre teoria e metodologia, analisando os percursos, os principais conceitos e o debate em diversos campos da prática historiográfica. O livro “Domínios da História”2 , organizado pelos professores da Universidade Federal Fluminense, Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, logo se tornou referência em cursos de Graduação e Pós-Graduação, 3 ao revelar-se um importante instrumento de trabalho para professores e pesquisadores.

Naquela obra, além da Conclusão, em que avaliava os “caminhos e descaminhos da história”, Ronaldo Vainfas foi também responsável pelo capítulo intitulado “História das Mentalidades e História Cultural”, texto no qual elaborou reflexões que, de certa forma, acabaria por retomar e ampliar neste seu “Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História”, lançado pela mesma Campus em 2002. Leia Mais